1. Introdução
Diversos fatores têm levado brasileiros a tentarem a sorte no exterior em busca de uma vida melhor: problemas econômicos e políticos, falta de perspectiva de trabalho, violência urbana e a baixa qualidade de educação, dentre outros (Margolis, 2013; Cruz et al., 2019a).
A questão da diáspora brasileira não passou despercebida pelo Governo que, em 2005, propôs uma Comissão Parlamentar Federal que identificou um contingente entre 1,8 e dois milhões de brasileiros vivendo apenas nos EUA - quase a metade do total do contingente de brasileiros morando fora do país. O relatório desatacava ainda que, devido à grande ocorrência de situações migratórias irregulares, seria difícil estimar o exato tamanho da “diáspora brasileira”, com exceção do contingente de imigrantes do Japão, devido ao fato do país controlar o quantitativo de seus imigrantes por meio dos contratos de trabalho (Brasil, 2006).
Tal Comissão representava, já naquela época, uma preocupação do Estado Brasileiro em entender as razões da saída de cidadãos brasileiros e seu perfil, caso quisesse criar políticas públicas para endereçar tanto a criação de oportunidades locais, visando tanto a retenção de talentos, quanto a atração de investimentos destes brasileiros migrantes.
Mais recentemente, destacam-se ainda trabalhos a respeito da emigração brasileira para Alemanha como os de: (i) Portugueis (2016), a respeito de imigrantes de origem italiana que trabalhavam em sorveterias alemãs; (ii) o relato de imigração estudantil de Carnicer (2019) e o artigo de (iii) Batista, Ciscon-Evangelista e Tesche (2013), que discute a identidade social de imigrantes através de fóruns online. Além desses trabalhos, foram escritas duas dissertações de mestrado de 2017. A primeira em Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento, que avaliou o estresse, a resiliência e o processo de adaptação de 224 respondentes. Já a segunda, apresentada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações que buscou entender o processo de aprendizagem no trabalho, tanto de profissionais alemães no Brasil, quanto de profissionais brasileiros na Alemanha, coletando dados por meio de 12 entrevistas em profundidade. No entanto, nenhum dos trabalhos relatados acima havia se dedicado à identificação e classificação do perfil do imigrante brasileiro na Alemanha, de uma maneira mais abrangente.
Já aspectos específicos da comunidade brasileira na Alemanha foram relatados por Lidola (2013), a qual evidencia uma perceptível feminização, especialmente no contexto alemão. A autora relata que, na Alemanha, as mulheres brasileiras enfrentaram barreiras à sua assimilação no mercado de trabalho e na sociedade, com práticas socioculturais excludentes e significantes, entremeadas por aspectos de gênero e nacionalidade, o que as levaram a formalizarem uma parceria binacional via casamento para 'ficar' e 'trabalhar'. Seu trabalho ainda evidencia a interseccionalidade da migração brasileira na Alemanha, incluindo aspectos da racialização, gênero e nacionalidade, o que também corrobora com o de Piscitelli (2008). Corroborando com Lidola (2013), Stelzig-Willutzki (2012) enfoca também na investigação da migração de mulheres independentes, na qual a rede de relações sociais dessas mulheres é vista como crucial para o desenho de todo o processo migratório. Bahia (2015) evidencia também a transnacionalização das religiões de matriz africana e espíritas na Alemanha, onde os centros kardecistas, os terreiros de umbanda e candomblé e o santo-daime, fundados por brasileiros em Berlim, Hamburgo, Munique, reavivaram práticas pagãs entre os alemães.
Ainda um trabalho mais recente de Fürstenau (2019), evidencia como os migrantes participam ativamente na construção de espaços educativos transnacionais, sendo as redes familiares transnacionais o ponto de partida para um estudo de caso etnográfico “multissituado”. É apontado como se forma um significado particular da educação para mulheres “trabalhadoras de cuidados” do Brasil na Alemanha. Ainda é evidenciado como a proteção social informal se torna importante para as carreiras educacionais de migrantes transnacionais oriundos de contextos sociais desfavorecidos.
Visando-se enfocar no objetivo do presente trabalho, parte-se das premissas do sociólogo e pesquisador da imigração Portes (1997), o qual propõe três grandes interrogações relativas às migrações contemporâneas: (i) Que fatores determinam as diferenças entre Estados-nação nos fluxos migratórios internacionais? (ii) Que fatores determinam a propensão para a emigração nos países emissores? (iii) Que fatores determinam os modos de incorporação dos imigrantes nos países de acolhimento?
Diante dessas questões apresenta-se a seguinte lacuna de pesquisa: enunciar os perfis de imigrantes brasileiros na Alemanha, incluindo dados sociodemográficos (como idade, gênero, formação acadêmica), sua forma de chegada na Alemanha, o tempo pretendido de permanência no país, o tipo de visto de entrada e ocupação. Dessa forma, propõem-se as seguintes perguntas de pesquisa: quais as características sociodemográficas dos que migram do Brasil para a Alemanha? Quais as motivações e dificuldade enfrentadas por esses migrantes?
O presente estudo permite avançar no entendimento das interrogações (ii) e (iii) propostas por Portes (1997). Isso porque o mesmo propõe-se a trazer para o debate (acadêmico e/ou governamental) como minimizar prejuízos causados pela perda de quadros qualificados, quer seja em empresas privadas ou na esfera pública. Essa questão também foi identificada por Coutinho, Bijos e Ribeiro (2018), os quais ressaltaram o cenário de aumento de fluxos migratórios internacionais e de desafios crescentes para os policy-makers, que se propõem a enfrentar essa questão. Esses autores destacam ainda a necessidade de se conhecer o que vem sendo discutido no tocante ao fenômeno migratório e à estrutura da administração e de prestação de políticas públicas. Ademais, evidencia-se conforme já apontado por Lidola (2013), Stelzig-Willutzki (2012) e Fürstenau (2019), feminização das migrações para Alemanha e a criação de redes de integração e mecanismos de apoio entre essas mulheres.
Para realização do presente estudo foi conduzida uma survey com 652 respondentes, parte de uma amostra por conveniência obtida por convocações nos principais grupos que congregam brasileiros na Alemanha da plataforma Facebook. Os dados foram também triangulados com relatos, debates e temas presentes nos mesmos grupos do Facebook, os quais evidenciavam questões relativas à imigração brasileira na Alemanha, sendo utilizada para tal, a técnica da netnografia (Kozinets, 2010).
Destaca-se que o caráter exploratório e descritivo do presente texto pode servir para levantar novas perguntas de pesquisas a serem respondidas por outros pesquisadores, ou pelos responsáveis por políticas públicas em países que acolhem bem como os que cedem pessoas, sendo esta uma das principais contribuições dessa pesquisa exploratória (Snyder, 2019).
2. Tipologias de imigração
Migrante refere-se tanto a aquele que se desloca no espaço interno quanto externo ao território nacional (Brito, 2016). Nolasco (2016) apresenta uma análise histórica dos diferentes tipos de migrantes, sobretudo no contexto internacional. O autor propõe um mapa tipológico que se insere em duas dimensões, comuns a todas as referências de migrações - espaço e tempo x expressão social. Dada a grande diversidade de categorias migratórias (algumas das quais apresentadas nos parágrafos que seguem) que vai desde os migrantes econômicos a refugiados, passando por solicitantes de asilo, cria-se a necessidade de tipificar os vários migrantes (Cassarino, 2013).
A Comissão Mundial de Migrações Internacionais (CMMI, 2005) destaca a complexidade do fenômeno, ao apresentar as diversas formas de migração: temporárias ou permanentes; legais ou irregulares; espontâneas ou forçadas, de trabalhadores indiferenciados, especialistas altamente qualificados; a modalidade do reagrupamento familiar, da mobilidade estudantil, dos migrantes em trânsito e dos migrantes retornados, dentre outras.
Numa conceituação mais clássica de movimentos migratórios, Petersen (1958) propõe dois eixos de análise para categorizar as modalidades de migrações, que também se relacionam com fatores e motivações. O primeiro eixo refere-se às forças determinantes da propensão para emigrar, as quais incluem: a pressão ecológica, as políticas migratórias, as aspirações individuais e o âmbito social. Já o segundo eixo refere-se à intencionalidade por parte do migrante, quer seja ao assumir uma atitude conservadora - ao se propor recuperar ou manter determinadas condições de vida, ou uma atitude inovadora - ao se propor melhorar de vida diante de sua decisão de migrar (Petersen, 1958).
É possível também classificar a imigração por temas: (a) motivação: causa atrativa (imigração) ou causa repulsiva (emigração) (Brito, 2016); (b) duração: temporárias (trabalhadores, qualificados ou não, mobilidade estudantil, migrantes em trânsito etc) ou definitivas (Cassarino, 2013); (c) forma: voluntária ou forçada (cônjuges, solicitantes de asilo por guerras e perseguições, etc); e (d) controle: legais (trabalhadores, reagrupamento familiar, saída por ancestralidade - cidadania) ou irregulares (CMMI, 2005).
Nesse sentido, Nolasco (2016) destaca que ao se enquadrar um migrante em uma perspectiva unidimensional, tipificando-o de forma isolada em apenas uma categoria em particular, o pesquisador reduz a realidade e perde capacidade de análise. Outrossim, o migrante ou seu processo migratório devem ser enquadrados de forma multidimensional, sendo transversal à várias categorias.
2.1. Migração brasileira
A emigração brasileira para Europa e Estados Unidos foi acentuada pelas frequentes crises econômicas dos anos 1980 e 1990, o que gerou um fluxo de imigrantes de classe média. Este fluxo inicial foi seguido também por outro composto por imigrantes menos endinheirados e menos qualificados, que por meio de entrada ilegal nos países receptores, buscaram estabelecer-se no exterior (Margolis, 2013).
As primeiras ondas migratórias de brasileiros começam a ser descritas por pesquisadores nos anos 1990. Trabalhos pioneiros como os de Goza (1992), Martes (2000) e de Margolis (2013), relativos à imigração brasileira para América do Norte foram seguidos pelos de Sasaki (2006) que pesquisou o movimento migratório dos decasséguis (ou descendentes de japoneses) que emigraram para o Japão.
Recentemente, outros pesquisadores também se engajaram em pesquisas relativas aos movimentos migratórios brasileiros para Austrália e Canadá (Rocha, 2006; Spears, 2014), estudando a intermediação de agências de intercâmbio estudantil (sobretudo de cursos de inglês e pós-graduação), para o Reino Unido (Martins Junior & Dias, 2013) e para França (Almeida & Baeninger, 2016). Outro grande fluxo migratório brasileiro relatado recentemente é o destinado a Portugal, com suas histórias de sucesso e frustrações (Coutinho & Oliveira, 2010; Egreja & Peixoto, 2011; Cruz, Falcão, Barbosa, & Paula, 2020).
Outros países que são destinos menos comuns dos brasileiros na Europa também vêm sendo estudados, embora poucos trabalhos acadêmicos acompanhem esses fluxos (Margolis, 2013). Um exemplo desses países é a Estônia, onde Cruz, Falcão e Raatz (2019) identificaram um fluxo migratório recente ligado à arte, futebol e a indústria de tecnologia. Já a migração de brasileiros para Alemanha e sua crescente feminização, foi relatada em estudos já citados na introdução deste artigo (ver Lidola, 2013, Stelzig-Willutzki, 2012, Fürstenau, 2019).
O esforço de tentar identificar o perfil dessa emigração brasileira é enorme, ensejando estudos específicos a respeito dos diversos países onde há a presença de brasileiros. Por exemplo, Cruz et al. (2016) demonstraram que o imigrante brasileiro na Austrália é prioritariamente jovem, valendo-se do visto de estudante como primeiro passo de uma estratégia de imigração definitiva. Segundo o estudo, fatores repulsivos e atrativos promovem esse fluxo migratório, tais como a falta de perspectiva no Brasil e a busca de um lugar mais seguro para se viver, com clima ameno, praiano e similar ao Brasil.
Ainda mais recentemente, Barbosa e Lima (2020) analisaram motivações e influências, bem como fatores de atração e repulsão de brasileiros em Portugal, apresentando dados sobre o perfil desses brasileiros. A pesquisa que sustenta este trabalho foi similar à realizada por Evans et al. (2011) com os brasileiros em Londres, bem como a de Cruz et al. (2019a) que identificaram que os brasileiros que emigram para o Canadá buscam um ambiente mais seguro e com qualidade de vida. Em ambos os casos, o perfil etário também é mais jovem (entre 21 e 40 anos) e bem qualificado em termos educacionais, sendo que a grande maioria não demonstrava interesse em retornar ao Brasil.
2.2. A colonização alemã no Brasil e a emigração para a Alemanha
A colonização alemã no Brasil, iniciada no século XIX (Santana, 2010), é um fator fundamental para explicar, no presente trabalho, a emigração brasileira para a Alemanha, uma vez que uma parte dos brasileiros fazem o caminho de retorno dos seus ancestrais alemães. Grande parte dos imigrantes alemães no Brasil instalou-se nos estados do Rio Grande do Sul (50%) e Santa Catarina (20%), embora também eles tenham imigrado para São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais (Seyferth, 1997). A colonização foi marcada por três grandes fluxos migratórios com diferentes perfis de imigrantes: (i) um que se inicia em 1824, com a chegada de campesinos e agricultores; (ii) o que chega em meados do século XIX, oriundo do fracasso das revoluções de 1848 e 1849 e composto por militantes liberais e representantes da intelectualidade de alguns estados alemães e da Áustria; e (iii) uma terceira onda composta de artesãos e operários que deixam Europa em função das marcadas crises econômicas do começo do século XX e do período entre guerras (Santana, 2010).
De acordo com o Seitenfus (1985), o Brasil tornou-se o segundo destino migratório dos alemães nas Américas devido à propaganda maciça das companhias responsáveis pelos assentamentos coloniais.
Mesmo sabendo da herança cultural e dos laços históricos entre Brasil e Alemanha, evidenciados na perspectiva migratória do Sul do Brasil, a literatura acadêmica é escassa no tocante à descrição das populações de emigrantes brasileiros que residem na Alemanha. Alguns artigos evidenciam pontualmente casos e aspectos de cunho antropológico e sociológico desses contingentes de emigrantes, embora estejam longe de traçar um panorama mais abrangente de seu perfil, de suas motivações para emigrar ou para se estabelecer no país de acolhimento (Portugueis, 2016; Carnicer, 2019; Batista, Ciscon-Evangelista, & Tesche, 2013).
A pesquisa de Portugueis (2016) aponta para o mecanismo de “dupla cidadania” de alguns brasileiros, que possuem passaporte “europeu” devido à sua origem étnica italiana, portuguesa ou alemã, descrevendo os descendentes de italianos que trabalham na Alemanha durante a temporada da venda de sorvetes, e que retornam ao Brasil no inverno europeu. Esses indivíduos nem falam o idioma alemão, tampouco o italiano. O autor ressalta a discussão levantada por Piscitelli (2008), a respeito da tradução cultural relativa à posição subalterna ocupada pelos brasileiros em suas relações transnacionais, ponto também apontado por Margolis (2013) nos EUA. Segundo Costa (2012) há poucas pesquisas relacionadas ao fenômeno de coexistência interétnica entre brasileiros e alemães. Os relatos presentes na pesquisa de Portugueis (2016) evidenciam a diferença entre as expectativas romantizadas e a realidade do trabalho na Alemanha, que se configura em uma jornada de trabalho dura. Esses trabalhadores em geral moram no próprio local de trabalho. Aliada à barreira linguística, há também a falta de tempo hábil para frequentarem um curso de idiomas, o que melhoraria suas possibilidades de comunicação com os clientes alemães.
Evidencia-se, portanto, lacunas a serem pesquisadas dentro desse tema específico, a exemplo de estudos relativos ao perfil do imigrante brasileiro na Alemanha, de questões relativas às relações de trabalho ou a uma possível intenção empreendedora, do perfil do estudante brasileiro na Alemanha, de suas motivações para emigrar, seja por situação econômica, matrimonial, acadêmica ou profissional, ou ainda questões relativas à sua assimilação, discriminação, aspectos de gênero, dentre outros. Portanto, pode-se seguir o percurso de estudos como o de Tedesco (2014), visando entender as dimensões de matrimônios entre brasileiros (as) e alemães, ou mesmo o de Batista, Ciscon-Evangelista e Tesche (2013), cujos objetivos específicos incluíam enunciar a concepção de ser um imigrante brasileiro residente na Alemanha, analisar o espaço que a cultura brasileira ocupa no cotidiano destas pessoas, e analisar como a cultura alemã se interpõe na construção de seu processo identitário.
Os autores mostram como os padrões de beleza no Brasil e na Alemanha diferem, sobretudo no quesito gordura corporal. O atendimento ao consumidor é também relatado como bem menos atencioso do que no Brasil, além das dificuldades com a língua, que podem gerar discriminação pela forma como se expressam ou como se comportam (calor humano, fatores culturais, respeito às leis e pontualidade). Verificaram também uma aproximação maior de alguns brasileiros aos costumes alemães do que de outros, o que pode revelar estratégias pessoais de adaptação ou de assimilação pela sociedade receptora. Outros trabalhos que também complementam o acima são as dissertações de mestrado de Torres (2017) intitulada “Brasileiros na Alemanha: processos de adaptação, estresse e resiliência” e a de Haemer (2017), intitulada “Aprendizagem (in) formal de profissionais alemães no Brasil e brasileiros na Alemanha”.
Lidola (2013), Stelzig-Willutzki (2012) e Fürstenau (2019) também trouxeram sua contribuição ao evidenciar aspectos da interseccionalidade da migração brasileira feminina para Alemanha, onde se evidencia a importância da formação de redes informais para assimilação na sociedade, integração e obtenção de emprego. Bahia (2015) ainda destaca a transnacionalização das religiões de matriz africana na Alemanha.
3. Metodologia
Para a realização do presente trabalho, foi realizada uma pesquisa multi-métodos (quantitativa e qualitativa) de caráter exploratório e descritivo (Snyder, 2019). Assim, para se ‘desenhar’ um quadro sobre a imigração brasileira na Alemanha fez-se necessário (i) identificar tanto o perfil sócio econômico desse imigrante, quanto os (ii) fatores motivacionais e as (iii) principais questões ou necessidades dessa comunidade.
Para se atingir ao primeiro propósito foi realizada uma survey veiculada em grupos do Facebook de brasileiros na Alemanha. Relativo ao segundo e terceiro propósito, realizou-se uma análise netnográfica (Kozinets, 2010), baseada em observação de postagens e comportamentos dos membros dos mesmos grupos, estratégias metodológicas detalhadas a seguir.
A determinação do contingente de brasileiros que vivem no exterior apresenta desafios para os pesquisadores das migrações brasileiras. Alguns autores destacam claramente essa dificuldade no contexto de sua pesquisa (exemplos: Pamplona, 2018; Tortato, 2020).
De acordo com dados oficiais do Ministério das Relações Exteriores - MRE (2015), haviam 113.716 brasileiros na Alemanha à época do levantamento. Anos depois, o Departamento das Nações Unidas para Assuntos Econômicos e Sociais (DESA) estimava a população de brasileiros na Alemanha em 59.082 indivíduos (UN, 2019). Desde essa época, não houve mais nenhum levantamento ou estatística oficial pelo Ministério de Relações Exteriores (MRE).
Ainda acerca da confiabilidade dos dados oficiais, Pamplona (2018) destaca algumas declarações da antropóloga e pesquisadora de imigração brasileira Maxine Margolis, professora emérita da Universidade de Flórida, a qual destaca que os números do MRE são superestimados e que não se tem números precisos de quantos brasileiros saem e quantos retornam ao país. Nesse sentido, a seguir são declarados os protocolos utilizados para se chegar a uma amostra confiável.
Em primeiro lugar, destacam-se os quadros mais recentes disponíveis com dados das Nações Unidas e do Itamaraty.
Nações Unidas - ano base 2019 | Itamaraty - ano base 2015 | |||
Local | População | Local | População | |
Estados Unidos | 459 876 | Estados Unidos da América | 1 315 000 | |
Japão | 189 735 | Paraguai | 349 842 | |
Portugal | 136 526 | Japão | 179 649 | |
Itália | 115 970 | Portugal | 166 775 | |
Espanha | 109 552 | Espanha | 128 638 | |
China | 78 301 | Reino Unido | 120 000 | |
Paraguai | 75 626 | Alemanha | 113 716 | |
França | 63 208 | Suíça | 81 000 | |
Alemanha | 59 082 | França | 70 000 | |
Argentina | 49 647 | Itália | 69 000 | |
Reino Unido | 47 487 | Bélgica | 48 000 |
Fonte: MRE (2015); UM (2019).
Vale ser ressaltado que em estatísticas oficiais não estão incluídos os imigrantes em situação irregular ou cujo ingresso no país aconteceu nos últimos três anos. Devido à dificuldade de se estimar o número total de imigrantes, bem como de se atualizar os dados para a corrente data, arbitrou-se duplicar as maiores estimativas oficiais para se ter um número base de população a ser trabalhada para um cálculo amostral mínimo. Essa busca de um número conservador (o mais alto possível, dentro de evidências aceitáveis) leva a uma população estimada de 227.432 brasileiros na Alemanha, o que representa o dobro do dado oficial de 2015 do MRE.
Arbitrou-se também para o cálculo amostral um nível de confiança de 95% e margem de erro de 4%, chegando-se a um tamanho de amostra mínimo de 599, para brasileiros na Alemanha (Hair et al., 2006). A descrição detalhada da amostra é apresentada na seção de Resultados (Quadro 3), sendo ela não probabilística, por conveniência e definida por acessibilidade.
Baseado no trabalho de Baltar e Icart (2013) foram identificados grupos de Facebook para veicular o questionário da survey aos potenciais respondentes. Visando minimizar vieses nas respostas são descritas algumas estratégias utilizadas. Primeiro, o cadastramento em 19 grupos de Facebook de brasileiros na Alemanha que totalizavam, à época da pesquisa, 195.107 membros. Destaca-se que nem todos os membros dos grupos eram de brasileiros residentes e que as postagens revelaram que muitos estariam interessados em imigrar, ou que ao menos seriam simpatizantes da ideia. O Quadro 2 apresenta os cinco maiores grupos.
Nome do GRUPO | Link | Membros |
Brasileiros na Alemanha - Deutsche in Brasilien (sic) | https://www.facebook.com/groups/219955888186833/ | 70151 |
Brasileiros na Alemanha | https://www.facebook.com/groups/Brasilerada/ | 31028 |
Brasileiros e Brasileiras em Berlim | https://www.facebook.com/groups/brasileiros.brasileiras.berlim/ | 18039 |
Trabalho / Emprego na Alemanha | https://www.facebook.com/groups/1821152048096815/ | 10053 |
Brasileiros em Hamburg /Deutschland | https://www.facebook.com/search/groups/?q=brasileiros%20em%20hamburgo&epa=SERP_TAB | 9146 |
O questionário contava com 15 perguntas fechadas e quatro abertas sobre o perfil sócio econômico do respondente. Além disso, ainda propunha cinco questões abertas sobre a vida do brasileiro no exterior: ‘Por que deixou o Brasil? ’, ‘Por que a Alemanha te atraiu? ’, ‘Qual é o seu propósito na Alemanha? ’, ‘Quais as principais dificuldades enfrentadas quando chegou? ’ e ‘Quais as principais dificuldades enfrentadas HOJE? ’. O link ficou aberto para respostas entre os meses de julho de 2019 e março de 2020, obtendo o pico de respostas em novembro de 2019 com 262 respostas apenas neste mês.
Além disso, a pesquisa contou com o apoio e as parcerias locais fundamentais de lideranças comunitárias. Os Conselho de Cidadãos Brasileiros em Colônia, Munique e Berlim postaram os links em suas páginas oficiais. Por fim, o Consulado-Geral do Brasil em Frankfurt e a Embaixada Brasileira em Berlim ajudaram na divulgação da pesquisa via e-mail e durante os eventos consulares itinerantes, realizados em diversas cidades de suas jurisdições. Adicionalmente, o apoio de brasileiros empreendedores se deu por meio do coordenador da Mesa de Empreendedorismo e Trabalho do “Conselho de Representantes de Brasileiros no Exterior” - CRBE e do website ‘empreenderdoexterior.org’.
Buscando-se realizar uma triangulação de dados relativos às respostas do questionário, foram observados também os grupos mais numerosos e ativos do Facebook (Quadro 2), assim como as postagens de seus membros com maior participação, sendo selecionado o grupo mais numeroso e ativo. Dessa observação foram extraídas as postagens ou participações ilustrativas de aspectos relevantes ou muito discutidos e, sobretudo, os relativos à imigração brasileira para Alemanha, sempre se respeitando os princípios éticos de pesquisa netnográfica (Kozinets, 2002).
Destaca-se o uso da técnica baseada em protocolos de Kozinets (2002), referentes à netnografia de grupos de indivíduos. Muitos antropólogos e sociólogos já apontavam para necessidade de se adaptar técnicas de pesquisa etnográfica para o uso em comunidades virtuais, o que culminou com a criação dessa técnica (Kozinets, 2002), onde a escolha das comunidades a serem pesquisadas deve ser criteriosa: (i) devendo possuir um tópico ou tema relevante para a pesquisa; (ii) apresentando grande número de postagens; (iii) um número significativo de indivíduos que ‘postem’ mensagens; (iv) informação detalhada ou descritiva abundante; e (v) um maior número de interações relacionadas à(s) pergunta(s) de pesquisa.
Assim sendo, a coleta de dados se deu por duas fontes: (i) dados copiados diretamente das comunicações e (ii) dados descritivos de suas observações das comunidades e de seus membros, suas interações e significados. Uma utilização da netnografia para estudo de comunidades online de imigrantes foi proposta por Falcão, Cruz e Amaral (2018), investigando atividades de negócios e fluxos de informação. Os autores apresentaram e testaram uma codificação de temas debatidos nos grupos conforme a Figura 1.
Partindo-se desta codificação as postagens foram catalogadas, classificadas e analisadas. Utilizou-se também a contagem de frequência (Sampaio, Assumpção & Fonseca, 2018) e a análise do conteúdo (Bardin, 2011) das mensagens para tentar encontrar sentido em alguns outputs da survey.
Destaca-se que o grupo com o maior número de participantes, ‘Brasileiros na Alemanha - Deutsche in Brasilien’ (sic) foi o escolhido para verificação das postagens, sendo elas coletadas em janeiro de 2020, durante uma semana, entre os dias 24/08/2019 e 30/08/2019 (compatível com o início da survey).
Alguns cuidados éticos foram tomados em relação à coleta de dados. Primeiramente, os questionários do tipo survey seguiram os protocolos do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD - UE 2016/679) e Lei Geral de Proteção de Dados do Brasil (LGPD 13.709 de 2018).
Em segundo lugar seguiu-se os protocolos éticos de Kozinets (2010) no tocante à metodologia da netnografia, as postagens individuais e originais foram analisadas e reescritas para que não fosse possível rastrear por meio de mecanismos de busca. Ademais, para condução de pesquisas de forma ética nos grupos de Facebook foi obtido o consentimento dos gestores dos grupos e o “de acordo” das comunidades online selecionadas para participar, garantindo-se o anonimato das postagens extraídas.
Por fim, buscou-se realizar uma análise estatística das palavras citadas nas respostas por meio do software de análise de dados Nvivo®.
4. Apresentação e Análise dos Dados
O resultado da análise descritiva dos respondentes é discutido à luz das tipologias de imigrantes, e realizada em seção posterior.
Idade (anos) | ||
---|---|---|
Até 20 | 1,40% | |
21 a 30 | 31,10% | |
31 a 40 | 39,80% | |
41 a 50 | 19,30% | |
Mais de 51 | 8,50% | |
Sexo | ||
Masculino | 24,40% | |
Feminino | 76,90% | |
Tempo na Alemanha | ||
Menos de 1 ano | 25,30% | |
Entre 1 e 4,9 anos | 44,10% | |
Entre 5 e 9,9 | 13,50% | |
Mais de 10 anos | 18,30% | |
Pensa em abrir um negócio? | ||
Não | 49,10% | |
Sim | 50,90% | |
Como chegou na Alemanha? | ||
Visto de estudante | 13,80% | |
Visto de trabalho | 17,50% | |
Visto de turista | 23,50% | |
Já tinha cidadania europeia | 16,30% | |
Para reivindicar cidadania - direto para a Alemanha | 2,10% | |
Para reivindicar cidadania - primeiro em outro país Europeu | 2,30% | |
Visto de au pair | 2,10% | |
Visto de reunião familiar | 22,40% | |
Formação | ||
Ensino médio | 17,50% | |
Ensino fundamental | 3,50% | |
Graduação | 49,10% | |
Pós-Graduação - Lato Sensu | 8,80% | |
Mestrado | 19,30% | |
Doutorado | 1,80% | |
Como está morando atualmente? | ||
Alojamento fornecido pelo trabalho/casa do contratante | 1,80% | |
Com a família | 70,70% | |
Dividindo apartamento com amigos | 12,90% | |
Sozinho | 14,60% | |
Quanto tempo pretende ficar? | ||
Entre 1 e 5 anos | 3,40% | |
Mais de 5 anos - pretendendo voltar | 13,70% | |
Menos de 1 ano | 7,00% | |
Para sempre | 45,20% | |
Não sei | 32,00% | |
Onde se formou? | ||
Universidade privada do Brasil | 46,40% | |
Universidade pública do Brasil | 47,80% | |
Em universidade no exterior | 5,80% | |
O que está fazendo atualmente? | ||
Buscando oportunidades para abrir um negócio | 2,10% | |
Buscando oportunidades para trabalhar | 7,20% | |
Cuidando da casa e/ou da família | 12,00% | |
É empresário | 3,80% | |
Fazendo turismo | 0,20% | |
Só estudando | 16,00% | |
Só trabalhando | 39,60% | |
Trabalhando e estudando | 18,70% | |
Vivendo de renda | 0,50% |
O perfil sociodemográfico da amostra caracterizou-se, sobretudo, por indivíduos de perfil etário mais jovem, estando 39,8% deles entre 31 e 40 anos, denotando uma faixa economicamente ativa, o que corrobora com estudos similares realizados com brasileiros no Canadá, Austrália e Portugal (Cruz et al., 2016; Cruz et al., 2019a; Cruz et al., 2019b; Cruz, Falcão, & Raatz, 2019). No entanto, ao se indagar se essa informação seria fruto de uma limitação do método (postagens no Facebook), ou de um viés de qualificação do respondente usuário desta rede, calculou-se então o coeficiente de correlação (Kremer, Deina, & Siqueira, 2019) entre os respondentes da survey e: (i) o perfil do brasileiro de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD 2019 (IBGE, 2019); e (ii) o perfil do brasileiro no Facebook (Cuponation 2019). O resultado do teste indicou que o perfil etário da survey guarda maior similaridade ao perfil do brasileiro, apresentando correlação de 0,89 com o perfil do IBGE e de 0,66 com o perfil do brasileiro no Facebook.
Outros estudos evidenciam uma mudança do perfil do imigrante brasileiro para um perfil mais jovem em todo mundo. Por exemplo, Tashima e Torres (2016) destacaram uma mudança para um perfil de jovens universitários dos emigrantes brasileiros no Japão, a partir do ano 2000. Masanet e Santos (2018) discorreram sobre o novo perfil (jovem e qualificado) do brasileiro na Espanha a partir de 2015. Também Siqueira, Fonseca, Santos e Genovez (2017) identificaram uma predominância de jovens (entre 18 a 40 anos) dentre os brasileiros nos EUA e em Portugal. Isso sugere que o perfil encontrado na Alemanha acompanha a realidade da atual emigração brasileira.
Já quanto ao sexo dos respondentes, a amostra teve predominância feminina, com 76,9% dos indivíduos nessa categoria. Diferente dos outros países onde dados relativos à essa questão foram cientificamente coletados recentemente (Austrália, Estônia, Portugal e Canadá), o número de mulheres brasileira na Alemanha excede o de homens em uma proporção significativa. Isso faz os pesquisadores voltarem-se para a questão da imigração feminina brasileira, sobretudo no que foi apontado nos trabalhos de Lidola (2013), Stelzig-Willutzki (2012) e Fürstenau (2019).
Queiroz, Cabecinhas e Cerqueira (2020) destacam que os textos seminais sobre o tema têm como foco as jovens brasileiras (20 a 40 anos). As autoras apontam para os preconceitos sofridos pelos estereótipos das mulheres imigrantes e descrevem a inserção das mulheres no mercado laboral, ressaltando o fato delas principalmente desempenham funções de limpeza, de cuidadoras de crianças e idosos e outros serviços relacionados à domesticidade. No entanto, devido ao elevado perfil de escolaridade da presente amostra, composta majoritariamente por indivíduos com graduação completa (51,2% da amostra) ou pós-graduação (34,9%), o perfil das respondentes se distancia daquele anteriormente descrito por Queiroz, Cabecinhas e Cerqueira (2020). Já Piscitelli (2008), Lidola (2013), Stelzig-Willutzki (2012) e Fürstenau (2019) ressaltam a interseccionalidade da assimilação de mulheres na sociedade alemã, que além de serem “mulheres” tem a questão racial e da nacionalidade como camadas da assimilação na sociedade.
Mesmo assim, ao se investigar as respostas para a pergunta aberta ‘Quais as principais dificuldades enfrentadas quando chegou? ’, nenhum respondente destacou ter sofrido com preconceitos. Para eles (ou elas) as principais dificuldades foram o idioma, a adaptação ao clima da região e à cultura local, além de aspectos da burocracia:
Falar o idioma; rede de apoio para recém mamãe; solidão e solidário materna; família e amigos deixados no Brasil: saudades; alto custo de vida e sem condições de trabalhar por não falar o idioma e por não ter condições financeiras de colocar os filhos em creche para buscar emprego; falta de apoio e de informações sobre os costumes locais e sobre trabalho/ renda (mulher, 41 anos, nascida em Fortaleza - CE). Idioma (possuía apenas nível intermediário), encontrar moradia sem ter renda, custeio dos primeiros meses sem trabalho, burocracias relacionadas ao registro no sistema de saúde (necessário estar trabalhando), encontrar trabalho em minha área de formação sem falar alemão fluente (homem, 31 anos, nascido em Curitiba - PR).
Detalhando um pouco mais as respostas das mulheres à pergunta aberta ‘Por que deixou o Brasil?’, as diversas respostas foram categorizadas em sete motivos: (i) casamento com um alemão (ou outro europeu); (ii) acompanhar o marido expatriado; (iii) buscar melhor qualidade de vida para os filhos: (iv) descontentamento com o Brasil; (v) para trabalhar; (vi) para estudar; e (vii) buscar melhor qualidade de vida (para si). A razão que apresentou o maior número de respostas foi o primeiro (matrimônio) com 27% das respostas. Exceto pelo terceiro motivo (melhor qualidade de vida para os filhos), todos os demais variaram entre 10% e 16% dos respondentes, o que evidencia um certo equilíbrio entre as motivações.
Os dados sugerem um caminho para a continuação dessa pesquisa, qual seja, a ocupação (empresarial ou laboral) dessas esposas imigrantes. Brettell (2017) avança bastante no debate sobre a migração matrimonial registrando que a mesma está intimamente ligada aos processos de globalização. A autora destaca que estudar as conjunturas de casamento e migração ilumina os preconceitos e estereótipos de gênero inerentes não apenas às categorias analíticas, mas também a políticas como as que visam casamentos de conveniência ou que promovem o multiculturalismo. Um aprofundamento também pode ser feito no sentido de evidenciar a configuração das redes informais de apoio, a exemplo do trabalho de Stelzig-Willutzki (2012) e de Fürstenau (2019).
Uma triangulação com dados do Escritório Federal de estatísticas alemão (Statistisches Bundesamt, 2020) mostra que das 1.170 solicitações de cidadania aceitas pelo governo local em 2018 (último ano com informações disponíveis), 860 (73,5%) foram concedidos a mulheres. Para se promover um desfecho da discussão da imigração feminina brasileira para a Alemanha, destaca-se que, diferentemente da colonização alemã no Brasil, descrita por Gertz (2008), observou-se muitos casamentos interétnicos, entre brasileiras e alemães, sugerindo uma tendência à assimilação cultural e às tipologias de migração voluntária e definitiva (Cassarino, 2013; CMMI, 2005).
A alta escolaridade dos respondentes corrobora com os achados citados anteriormente nesse artigo, relativos ao grau de educação da amostra (Cruz et al., 2016; Cruz et al., 2019a; HYPERLINK \l "mkp_ref_020" ; Cruz, Falcão, & Raatz, 2019). Segundo Morais e Queiroz (2017), a migração de cérebros (ou brain drain) é uma tendência cada vez mais dominante das migrações internacionais, sobretudo, porque os países desenvolvidos são os que auferem maiores rendimentos para profissionais qualificados, atraindo os melhores profissionais de países menos desenvolvidos. As autoras ressaltam que são três os fatores determinantes para esse tipo de migração: (i) relacionados às desigualdades entre as localidades de naturalidade e de destino dos indivíduos, (ii) falta de possibilidades de pessoas qualificadas serem inseridas no mercado de trabalho dos seus países de origem, e (iii) os relacionados às características de qualificação, influência e círculo social.
Em relação ao primeiro aspecto, sobressaem as respostas à pergunta, ‘Por que a Alemanha te atraiu? ’. Elas variavam em torno da busca por melhores condições de vida, perspectivas de uma vida mais segurança, com conforto e bem-estar. Como exemplo a resposta de um homem de 29 anos, nascido em Fartura - SP: “Baixo custo de vida em Berlim, salários atrativos e possibilidade de vivência num ambiente multicultural”. O Segundo fator pode ser analisado através das respostas à pergunta ‘Por que deixou o Brasil?’. Pode-se destacar a busca por melhores oportunidades de emprego e estudo (indicando que no Brasil não havia oportunidades interessantes), o casamento (retomando a questão da imigração feminina), a decepção política e instabilidade econômica. Não foram identificadas respostas especificamente relativas ao terceiro fator. Ainda no tocante à escolaridade, os respondentes, em sua maioria, cursaram universidades públicas (47,8%) no Brasil, o que sugere, mais uma vez, a falta de oportunidades locais.
A relação entre o capital humano com o tipo de emprego e renda do imigrante é evidente, conforme aponta Cuadros, Martín-Montaner e Paniagua (2019). Seu estudo teórico e empírico destaca a relevância das habilidades no trabalho, em uma análise de como a migração afeta os fluxos de investimentos diretos estrangeiros (IDE), evidenciando a relação direta entre empregos que envolvem a tomada de decisão (como cargos gerenciais) a investimentos diretos estrangeiros.
A survey identificou também que 58,3% dos brasileiros na Alemanha estão trabalhando, estando a maioria engajada em trabalhos qualificados, como engenheiros, advogados, pessoal de TI, administração, consultoria e área médica. Os dados reforçam a tipologia de uma migração legal (CMMI, 2005) e sobretudo qualificada.
A literatura acadêmica que versa sobre a imigração para a Alemanha volta-se para o estudo acerca do impacto da chegada dos refugiados na economia local (Weber & Weigand, 2016), nas migrações dentro da União Europeia (Wagner & Hassel, 2016) e das migrações internas (Bauer & Rulff, 2019), mais ainda eram incipientes na investigação de aspectos das populações latino-americanas e/ou brasileiras e seus efeitos na geração de recursos.
Relativo ao tempo de permanência no país, a grande maioria dos respondentes declarou estar há menos de cinco anos na Alemanha (69,4%), reforçando a constatação de que a imigração brasileira é recente. O Escritório Federal de estatísticas alemão (Statistisches Bundesamt, 2020) não detalha os dados de tempo de permanência de estrangeiros por país da América Latina. Isso não permite um aprofundamento do debate sob a ótica alemã. Nesse caso, é de se esperar que, aos poucos, os brasileiros na Alemanha passem de ‘invisíveis’ para ‘visíveis’ (Margolis, 2013). Já existe um grupo nos Estados Unidos que pode ser chamado de Brasileiros-Americanos (Oliveira & Tosta, 2020), devido ao seu nascimento em solo americano e origens brasileiras. Em breve, futuras pesquisas poderão aferir os impactos dos nascimentos de brasileiros na Alemanha, que fará parte de uma geração que será fruto de uma interação cultural inter-étnica.
Os dados também mostram que 32% dos respondentes não têm um prazo definido para retorno ao Brasil e que 45,2% deles pretendem ficar para sempre. Tortato (2020), ao analisar informações das Declarações de Saída Definitiva registradas pela Receita Federal brasileira, destaca que em 2019 o número de pessoas que optaram por deixar o Brasil e se mudar definitivamente para o exterior foi mais do que o dobro (crescimento de 125%) do registrado em 2013.
Diante dos achados apresentados e segundo os critérios descritos por Nolasco (2016) e pela CMMI (2005) nota-se que o perfil da amostra aponta para uma imigração em geral permanente e legal, embora inicialmente muitas mulheres passem por uma fase temporária (visto de turista ou de união familiar) até requererem sua cidadania (ou estarem legalmente aptas pelo matrimônio). A imigração por vezes pode ser dita forçada, quando o cônjuge de um(a) expatriado(a), por exemplo, se vê obrigado(a) a se mudar com seu parceiro(a). Há também parte da imigração caracterizada como temporária e estudantil, sendo que essa seria a de menor ocorrência.
Retomando a pergunta aberta ‘Por que deixou o Brasil?’, emergem diversas respostas ligadas a contextos temporais, como falta de oportunidades no Brasil, violência, instabilidade política, economia, etc. Além dessas, o que também aparece em questionários desse tipo de forma recorrente, chamando atenção, são as respostas como “nunca gostei do Brasil”, “nasci no país errado”, ou “nunca gostei de viver no Brasil”. A pergunta aberta ‘Qual é o seu Propósito na Alemanha?’ também é um importante achado no que diz respeito às motivações dos brasileiros. Uma análise estatística das palavras contidas nas respostas abertas, feita por meio do software de análise de dados Nvivo®, identificou que a palavra ‘trabalhar’ apareceu 131 vezes (20% de frequência entre os respondentes), seguida de ‘viver’ (122 vezes, ou 19% de frequência) e ‘vida’ (79 vezes, ou 12% de frequência). Isso remete a aspectos relativos à vida, trabalho, estudo e família, reforçando o ponto já ressaltado de um perfil qualificado de imigrantes que se casam para viver no país, e que buscam qualidade de vida. Como ilustração, um respondente de 35 nos, nascido em Petrópolis - RJ afirma que quer “ser feliz. Viver uma vida estável, próspera junto de minha esposa e filhos sem ter um infarto aos 40 anos. Possibilitar melhores condições de educação e trabalho para a meus filhos num país que leva a educação a sério”.
Relativo ao seu status de chegada ao país, a maioria dos respondentes declara ter utilizado o visto de turista ou de reunião familiar. De fato, o direito à vida em família perpassa o direito de os Estados decidirem soberanamente sobre a entrada, a permanência legal e a expulsão de imigrantes em seus territórios. Nesse sentido, deve ser relevada a visão legal sobre relação familiar e o matrimônio (UNHCR, 2020). Família, para um imigrante, denota segurança e bem-estar, o que é corroborado pelos dados da presente pesquisa.
Garcia e Weber (2006) destacaram o caráter irregular do fluxo migratório brasileiro, fundamentado em documentações fraudulentas. Este não parece ser o caso dos imigrantes brasileiros na Alemanha. No entanto, sabe-se da ocorrência de diversas redes de aliciamento ilegal de mulheres na Europa, embora na presente pesquisa não tenham sido coletadas evidências das mesmas (Renó Machado, 2005). De toda maneira nota-se a questão da feminização da migração, a qual está relacionada a matrimônio e relacionamentos amorosos (ver Stelzig-Willutzki, 2012; Fürstenau (2019).
O Quadro 4 confronta a frequência de respostas entre os motivos declarados na pergunta aberta ‘Por que deixou o Brasil?’ com os vistos utilizados para migrar.
Casamento | Acompanhar conjugue | Qualidade vida para filhos | Descontentamento com Brasil | Trabalho | Estudo | Qualidade vida | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Visto estudante | 3,20% | 0,00% | 0,00% | 2,70% | 1,40% | 6,60% | 2,10% |
Visto trabalho | 0,50% | 2,10% | 0,00% | 4,60% | 9,30% | 1,40% | 2,30% |
Visto turista | 10,20% | 2,00% | 0,20% | 5,50% | 2,00% | 4,60% | 2,90% |
Já tinha cidadania | 1,60% | 1,40% | 0,90% | 5,50% | 3,40% | 1,60% | 4,50% |
Para reivindicar cidadania | 1,10% | 0,20% | 0,00% | 2,10% | 0,40% | 0,20% | 1,20% |
Visto Au pair | 0,90% | 0,00% | 0,00% | 0,00% | 0,00% | 0,70% | 0,90% |
Visto reunião familiar | 7,80% | 8,00% | 0,70% | 3,40% | 2,10% | 0,00% | 3,70% |
Os que deixaram o Brasil por motivos profissionais (trabalho) deveriam ter chegado à Alemanha com visto de trabalho, entretanto, conforme a demonstra o Quadro 4, alguns chegaram com visto de estudante (1,4%) ou com visto de turista (2%). Dentre aqueles que informaram que motivação era o matrimônio, alguns também chegaram com visto de estudante (3,2%) ou com visto de turista (10,2%). O Quadro 4 aponta para uma estratégia comum a diversas comunidades brasileiras, sendo a entrada com vistos temporários, de estudante ou turista uma forma de se testar a adaptação no novo ambiente, até se conseguir uma ocupação mais fixa ou situação legal (por meio de matrimonio ou trabalho) mais permanente.
5. Pesquisa Netnográfica
Destaca-se que a utilização desse método foi adicional e complementar à survey. Portanto, utilizou-se a analise netnográfica (Kozinets, 2010). Recordando que foi seguido o protocolo de pesquisa e categorias disponibilizadas por Falcão, Cruz e Amaral (2018) para grupos de imigrantes no Facebook, escolheu-se o grupo com o maior número de participantes - ‘Brasileiros na Alemanha’ - Deutsche in Brasilien. As postagens foram coletadas em janeiro de 2020, durante uma semana.
Corroborando com os dados apontados na seção direita do Quadro 4, a análise estatística das postagens, seguindo as categorias propostas por Falcão, Cruz e Amaral (2018), gerou as seguintes informações: 57 postagens nessa semana feitas por 56 diferentes pessoas (apenas uma fez duas postagens). Os temas (categorias) que mais apareceram foram ‘dúvidas sobre imigração’ e ‘dúvidas sobre produtos e serviços locais’ com 25% do total de postagens cada. As postagens foram respondidas 1.829 vezes e atingiram 822 reações (quando membros mostram interesse pelo assunto). Segue um exemplo de postagem.
Apenas uma postagem se referia a um suposto golpe relacionado às informações sobre carteira de motorista. Em outra postagem, uma brasileira faz um desabafo sobre um mau atendimento que recebeu em uma unidade de saúde alemã. Aliás, essa foi a segunda postagem com mais comentários (180) e a postagem com mais reações (142). Nesse relato, a maioria das respostas à publicação sugere uma diferença cultural entre brasileiros e alemães, sendo que outras pessoas informam ter passado por situações semelhantes, o que corrobora com os estudos de Batista, Ciscon-Evangelista e Tesche (2013), Margolis (2013), Tedesco (2014) Portugueis (2016). Na Alemanha a orientação primeiramente é busca por um Hausarzt (clinico geral - médico de família). A emergência hospitalar é local para problemas mais graves. Relatos de profissionais da saúde na Alemanha confirmam essa explicação. O tratamento menos afetuoso (comparado ao brasileiro) reflete também as diferenças culturais existentes. Segue um exemplo de postagem.
A postagem com o maior número de comentários foi uma pergunta: ‘o que tem na Alemanha que poderia ter no Brasil?’. Algumas opiniões se repetiram, como a segurança, o sistema de coleta e reciclagem de lixo, além do salário e da valorização de profissões subestimadas no Brasil (diarista, garçonete, profissionais de limpeza, por exemplo). Questões políticas e sociais também emergem. Foram ressaltadas características positivas do país como uma Democracia forte, a baixa desigualdade social, o nível de qualidade educacional elevado, além de acessível, baixa criminalidade, o respeito e o cumprimento das leis.
Não foram relatados casos de dificuldades com o idioma ou de preconceito por serem jovens ou mulheres (maior perfil dos respondentes). Ao contrário, ao se julgar pelas postagens, sugere-se que morar na Alemanha traz muitas vantagens e que os sentimentos de decepção com o Brasil (demonstrados com os resultados da survey) parecem ser minimizados pela vida em ‘um país que funciona’. Não se buscou identificar o perfil dos membros do grupo, uma vez que muitos deles moram no Brasil - tendo apenas interesse em tópicos relativos à Alemanha. A assimilação das mulheres na sociedade alemã pode ser aprofundada em futuras coletas de dados que tenham como método as entrevistas em profundidade. Ademais, como é evidenciado por Renó Machado (2005), em muitos países europeus há redes ilegais de aliciamento que perpetuam os preconceitos e estereótipos relativos às mulheres brasileiras, e que, por limitações do método utilizado, não foram possíveis ser evidenciadas.
6. Considerações Finais
Retomando a proposição de pesquisa (exploratória), que optou por um viés mais generalista ao enunciar os perfis de imigrantes brasileiros e brasileiras na Alemanha, incluindo dados sociodemográficos (como idade, gênero, formação acadêmica), evidenciou-se um perfil etário mais jovem - condizente com o perfil dos emigrantes brasileiros em outros países da Ásia, Europa e América do Norte, a seguir são enunciados os principais achados.
A amostra da pesquisa é composta majoritariamente por mulheres, com alto grau de escolaridade, que deixaram o Brasil para ir a Alemanha, em sua maioria, por motivos sentimentais (matrimônio ou acompanhar cônjuge), não tendo prazo definido para retornar, e que saíram com visto de turista ou de reunião familiar, corroborando com os trabalhos de Stelzig-Willutzki (2012) e Fürstenau (2019), os quais evidenciam a feminização da migração, por sua vez relacionada a matrimônio e relacionamentos amorosos. . No mundo contemporâneo, conforme destaca Jardim (2009), o gênero feminino “se converteu em potente símbolo de identidade de sociedades e nações”. Esses indivíduos, também foram motivados a saírem do país dado a falta de oportunidades, violência, instabilidade política e econômica. Futuramente pode-se buscar investigar as relações das mulheres brasileiras e suas redes no seio da sociedade alemã (a exemplo de Stelzig-Willutzki, 2012; e de Fürstenau, 2019), e de como propõe Jardim (2009) ao estudar as mulheres palestinas. Destaca-se também a proposição de Assis e Kosminsky (2007), de se implantar uma etnografia feminista das migrações internacionais. Pode-se também buscar aprofundar questões relativas às redes ilegais de aliciamento feminino (Renó Machado, 2005) e como estas se interpõem à imigração legal e qualificada apontada pelos dados deste artigo.
O corrente artigo também reforça o fenômeno da imigração qualificada, o que corrobora com outros trabalhos a respeito da imigração brasileira para outros países de acolhimento, como Austrália, Estônia e Canadá (Cruz et al., 2016; Cruz et al., 2019a; Cruz et al., 2019b; Cruz, Falcão, & Raatz, 2019).
Como o presente artigo faz parte de um conjunto de trabalhos pioneiros, como o de Piscitelli (2008), Stelzig-Willutzki (2012) e de Fürstenau (2019), ao abordar o perfil recente da imigração brasileira na Alemanha, não é de se esperar que fosse capaz de responder a todas as questões. Aliás, essa é uma limitação que o próprio método impõe: como criar um formulário abrangente o suficiente para responder às diversas inquietações dos pesquisadores e que não ficasse cansativo de responder? Devido também às limitações de se realizar um trabalho de campo mais profundo, os dados (mesmo que coletados remotamente), sugerem caminhos para a continuação dessa pesquisa, quais sejam:
a discussão sobre a ocupação (empresarial ou laboral) dessas esposas imigrantes;
o estudo do impacto dos brasileiros na economia alemã ou na economia de determinadas regiões do país;
estudos relativos à sua assimilação x discriminação na sociedade.
Outras sugestões para futuros estudos incluem os que versem sobre o efeito do idioma do país receptor, diante de uma possível facilidade/ou dificuldade de assimilação devido ao domínio do idioma. Isto pode ser ilustrado por situações vividas por imigrantes brasileiros em Portugal (facilidade com idioma e cultura) versus as dificuldades enfrentadas por brasileiros na Alemanha (relatadas no presente estudo).
Sugere-se em uma fase de aprofundamento da pesquisa referente a imigração brasileira na Alemanha a inclusão de métodos qualitativos presenciais, como entrevistas em profundidade, observações de campo e a etnografia, sobretudo investigar aspectos específicos da inserção da mulher brasileira como empregada e empreendedora, e questões relativas à sua assimilação na sociedade.
Uma vez divulgada e debatida a realidade destes brasileiros, bem como de outros residindo em diversos países do globo, é possível pensar na criação de políticas públicas que permitam a manutenção destes brasileiros no país, bem como na atração do capital gerado por esses migrantes em forma de investimentos em negócios no Brasil - o que Drori, Honig e Wright (2009) classificam como empreendedores transnacionais.