Introdução
A perplexidade caracteriza o olhar impactado pelas violências dos tempos contemporâneos, causadas por enormes catástrofes naturais, intensos conflitos políticos, predatórios interesses econômicos e as diversas guerras. Entre as quais, ganhou destaque a invasão da Ucrânia pela Rússia ocorrida em fevereiro de 2022, violando de modo acintoso acordos, declarações, pactos convenções, toma de assombro grande parte da população mundial.
A observação dos crescentes fatores de risco impacta desde os indivíduos até às organizações internacionais e nações, entre assombro, consternação e indignação de um lado, e a insegurança, o medo, a indiferença e a intolerância, por outro lado.
A gênese dessas violências, profundamente enraizadas no modelo econômico excludente, nutridas pelo neoliberalismo, são mantidas por políticas e programas de garantia dos direitos humanos em risco, em uma situação humanitária ampliada em escala global. O modelo econômico excludente produz um enorme contingente populacional em situação de pobreza e pobreza extrema, entre os quais estão as crianças e adolescentes que necessitam especial cuidado e atenção, face as suas características peculiares de sujeitos em desenvolvimento. Nessas circunstâncias, as crianças e adolescentes se encontram em risco, em virtude da pobreza infantil.
Os direitos humanos propõem a proteção da dignidade humana, e quando essa proteção falha, há necessidade de medidas especiais, implicadas na garantia dos direitos humanitários (Eyng & Cardoso, 2021, p. 23).
Na análise que apresentamos sobre as tensões produzidas pela fragilidade da efetivação dos direitos no cenário contemporâneo, trazemos para a discussão um recorte sobre três caracterizadores: pobreza infantil, direitos humanos e direitos em situação humanitária. No estudo de tais categorias, o percurso metodológico de revisão narrativa integra fontes bibliográficas e documentais, na perspectiva da abordagem qualitativa de análise. “A revisão da literatura narrativa, apresenta uma temática mais aberta [...]. A seleção dos artigos é arbitrária, provendo o autor de informações sujeitas a viés de seleção, com grande interferência da percepção subjetiva. (Cordeiro et al., 2007, p. 429-430).
Nessa perspectiva, situamos brevemente, o entendimento sobre os três caracterizadores com base nnas fontes selecionadas e discutidas, segundo a percepção interpretativa da autora. Iniciamos, por situar as concepções sobre pobreza infantil, referendada nos estudos de Sarmento (2010), Bastos et al. (2008, 2011), Bastos e Veiga (2016), cujos estudos a situam em duas perspectivas, conforme as metodologias de análise a que recorrem: a unidimensional e a multidimensional. A visão unidimensional, expressa o pensamento mais clássico e a mais presente no senso comum, segundo a qual a pobreza infantil é entendida na perspectiva dos recursos monetários, ou seja, se referenda no aspecto econômico. Por outro lado, a perspectiva multidimensional, concebe a pobreza infantil como resultante da violação dos direitos da criança, se trata portanto, de uma perspectiva mais contemporânea e alinhada ao campo de estudo dos direitos da Infância.
Assim, a pobreza infantil que implica na violação de direitos em várias dimensões, é multifatorial, pois atinge diferentes dimensões das vidas de crianças e adolescentes. Por essa razão, se denomina pobreza infantil multidimensional, uma vez que acarreta violações dos direitos materiais e imateriais da infância, atingindo o conjunto de direitos previstos para crianças e adolescentes, conforme afirma a convenção Internacional dos direitos da criança - CDC (ONU, 1989).
Portanto, a pobreza infantil está circunscrita, principalmente aos contextos subsumidos à governança social e política frágeis e ou inadequados, principalmente nos territórios periféricos, nos quais o conjunto de direitos de criança e adolescentes são violados. Assim, os requisitos essenciais na configuração da dignidade dos sujeitos da infância são nulos ou estão em sérios riscos, não provendo o necessário suprimento da provisão, proteção e participação para crianças e adolescentes, previstos na CDC. Os direitos de provisão preveem a satisfação das necessidades básicas que propiciem o desenvolvimento pessoal e social da criança e do adolescente, incluindo os direitos: alimentação, brincar, educação, família, moradia e a saúde. Os direitos de proteção preveem as condições que garantam a segurança e proteção física e emocional, das crianças e dos adolescentes, entre as quais se destaca o direito à proteção contra todas as formas de violência e a proteção contra trabalho ilegal e exploração econômica. Os direitos de participação, pautados na concepção da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, garantindo a liberdade e oportunidade de manifestação e emissão dos seus posicionamentos e escolhas em questões que afetem os seus interesses, a sua vida. E, os direitos de prevenção abrangem as condições de compreensão, discernimento e autocuidado, implicados sobretudo, o direito à informação e à orientação para os direitos humanos.
Nessa perspectiva, os cotidianos da infância nas periferias caracterizadas e marcadas pela desigualdade e pela exclusão, os riscos das violações extremas que afetam as crianças e os adolescentes, as situam em quadros de situação humanitária. Em tais cenários a vulnerabilidade das condições de vida, requer a garantia e reparação dos direitos da infância via ações intersetoriais e concomitantes do campo dos direitos humanos e dos direitos humanitários. Assumimos, aqui, o entendimento sobre direitos humanos presente no artigo primeiro das Diretrizes Nacionais para a educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2012).
Os Direitos Humanos, internacionalmente reconhecidos como um conjunto de direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sejam eles individuais, coletivos, transindividuais ou difusos, referem-se à necessidade de igualdade e de defesa da dignidade humana. (BRASIL, 2012)
Entretanto, enfatizamos que os riscos sobre os direitos da infância, em virtude pobreza que atinge a infância de modo intergeracional, inviabilizam as condições mínimas de dignidade e bem-estar, roubando-lhes perspectivas de um futuro. Pois, “Além de serem afetadas por situações humanitárias, as crianças estão particularmente expostas aos seus impactos (ONU, 2017, p. 02), assim, o contexto contemporâneo é
[...] claramente um contexto de crise humanitária a escala global. Uma situação humanitária (às vezes chamada catástrofe ou crise) é definida como uma perturbação imprevisível que constitui uma ameaça à vida ou às bases do funcionamento de uma comunidade (Eyng & Cardoso, 2021, p. 22).
O diálogo necessário para viabilizar ações intersetoriais capazes de efetivar a garantia de condições materiais e imateriais que sustentam a vida digna é, portanto, uma demanda histórica não resolvida, e ainda, mais agravada e ampliada nos cenários humanitários.
Na sequência do desenvolvimento do texto, são tecidos argumentos organizados em torno de três itens de análise: no primeiro são apresentadas cenas dos direitos violados e em risco nos contextos humanitários; no segundo são apresentadas rotas de fuga embrenhadas na mixofobia; no são consideradas as vias do diálogo nas linhas de conexão da mixofilia.
1. Cenas dos direitos violados e em risco nos contextos humanitários
Os direitos violados e em risco nos contextos humanitários, em virtude do agravamento dos fatores de risco contemporâneos, tanto em contextos evidentemente perigosos, como os territórios em guerra, as zonas atingidas por desastres naturais, as endemias e pandemias, aos quais se junta a pobreza extrema e a pobreza infantil, requerem atenção e proteção humanitária.
O termo ‘situação humanitária’ se entende num sentido mais amplo, que inclui desastres e emergências complexas. Inclui também os termos ‘crise humanitária’ e ‘emergência’, que se referem a eventos pontuais ou a uma série de eventos que representam uma séria ameaça à saúde, segurança, proteção ou bem-estar de uma comunidade ou de um grande grupo de pessoas, por exemplo, como resultado de conflitos armados, situações de violência e insegurança, ou desastres naturais ou provocados pelo ser humano. (ONU, 2017, p. 02)1.
Entre os diversos fatores de risco e violações de direitos que se perfilam no cenário histórico, a cena atual inclui mais uma atrocidade que aumenta o número de refugiados, deslocados e mortos. Após mais de um ano, a guerra que se esperava fosse rapidamente superada ainda se estende, tendo produzido mais de 300.000 mortes, entre as quais grande número de civis, e entre esses, muitas crianças, perfazendo,
[...] mais de 13 milhões de pessoas permanecem longe de suas casas, incluindo quase 8 milhões de refugiados em toda a Europa e mais de 5 milhões de deslocados internos na Ucrânia. As perspectivas de retorno em um futuro próximo, no entanto, são dificultadas pelas contínuas hostilidades, insegurança e destruição em suas regiões de origem[...] (ACNUR, 2023a).
Em 2022, dados do ACNUR, já estimavam haver em torno de 100 milhões de pessoas em situação de deslocamento forçado e de refugiados. Em 2023, os relatórios reafirmam que pelo menos 89,3 milhões de pessoas em todo o mundo foram forçadas a deixar suas casas. Entre elas estão quase 27,1 milhões de refugiados, cerca de metade dos quais têm menos de 18 anos (ACNUR, 2023b). Dada a sua peculiar condição de sujeitos em desenvolvimento as crianças e adolescente, estão
[...] particularmente vulneráveis a violações dos direitos humanos cometidas em situações humanitárias, como a privação de cuidados de saúde e de educação, a deslocação forçada, a separação das suas famílias, o rapto e o tráfico, o recrutamento e a utilização por forças ou grupos armados e o abuso e a exploração sexual. Esses fatores também podem ter impacto indireto em outros aspectos, como o aumento do trabalho infantil e a incidência de violência familiar e práticas nocivas contra as crianças (ONU, 2017, p. 03).
A situação humanitária e a fragilidade ou violação dos direitos da infância são desafios complexos que se estendem no tempo e abrangem muitos países, nos diversos continentes, conforme ilustram relatórios de organismos internacionais, retratando o exponencial aumento em milhões de crianças, necessitando de assistência humanitária em diversos países.
É importante ressaltar a gravidade das circunstâncias das vidas das crianças, pois “[...]quase metade dos deslocados e mais da metade de todos os refugiados em todo o mundo são crianças. Essa situação pode afetá-los durante toda a infância, pois, em média, as pessoas mantêm o status de refugiado por 17 anos” (ONU, 2017, p. 02). Portanto, as crianças e os adolescentes refugiados sobrevivem por muito tempo, em cotidianos infantis marcados pelas violências que afetam as várias dimensões de suas vidas, o que lhes quita o presente e o futuro e em muitos casos, com o preço do próprio direito à vida, em função da situação humanitária na qual estão.
No fundo, o critério central da configuração da situação humanitária é a incapacidade ou o insucesso dos sistemas organizados no plano nacional ou local em responder à falta de bens básicos e/ou a violências contra as pessoas, e as suas consequências (Eyng & Cardoso, 2021, p. 22).
Neste sentido, as imensas e complexas demandas de atendimento humanitário que a infância necessita têm se ampliado com o agravamento da precarização do direito à educação. O Informe Inclusión educativa: Campaña por la educación de las personas refugiadas (ACNUR, 2022), ressalta a dificuldade de acesso e permanência com impactos nos resultados da aprendizagem de crianças e adolescentes refugiados. Os dados reportados indicam que “[...] a matrícula de pessoas refugiadas na educação secundária se situa em 34%, bem abaixo do nível de matrículas no ensino primário (68%). À medida que crianças refugiadas vão crescendo, é menos provável que permaneçam na escola”.
Retomando a constatação de que cerca da metade dos refugiados tem menos de 18 anos, perfazendo aproximadamente 14 milhões de crianças e adolescentes, sendo que quase metade das crianças refugiadas 48%, não frequentam a escola (ACNUR, 2023b). 48% é um dado enormemente assustador, pois são 6.000.000 milhões e 720.000 mil vidas em risco extremo.
A educação é fulcral como direito humano. Embora possam ser discutidos os diversos conceitos de educação, os âmbitos formal ou não formal, o papel dos seus vários intervenientes, assim como os aspetos prioritários do direito à educação, considerando o acesso à educação, a permanência inclusiva e os resultados relevantes; os níveis da educação básica e as modalidades presencial, a distância, remota ou híbrida, algo é incontestado: trata-se de um direito inalienável, constitutivo da subjetividade jurídica de cada pessoa singular (Eyng & Cardoso, 2021, p. 19).
No que se refere especificamente ao direito à educação, os riscos atingem as crianças e aos adolescentes no curto, médio e longo prazo, sendo que entre os atingidos, estão além dos refugiados e deslocados, um grande número de crianças e adolescentes em situação de pobreza infantil. “A mensagem é clara: há ainda um longo caminho a percorrer para alcançar a plena participação dos refugiados no exercício do seu direito à educação” (ACNUR, 2022, p. 04), incluído ai, especialmente a infância, como um todo a ser protegido, no seu direito ao acesso permanência e sucesso na educação.
[...] apesar do consenso acadêmico sobre o caráter central da educação como direito humano, observa-se a violação repetida desse direito à escala global, como consequência não só de conflitos armados ou de desastres naturais, mas igualmente devido à permanência, ou ao agudizar situações de desigualdade social e de exclusão de jure ou de facto da aprendizagem ou, mais geralmente, de exclusão ao acesso a meios de transmissão de informações e conhecimentos, não apenas por meio da escola, note-se (Eyng & Cardoso, 2021, p. 21).
Entretanto, não se trata apenas de falta de acesso ou abandono, implica também na precária qualidade dos resultados de aprendizagem “[...] muitos países estão passando por uma crise de aprendizagem: mais da metade das crianças em países de baixa e média renda não conseguem ler e entender uma história simples até o final da escola primária; esse nível sobe para 80% em países de baixa renda2” (ACNUR, 2022, p. 08). Ressaltando a constatação do prolongamento e agravamento das condições humanitárias que repercutem na infância, “[...] tirando quaisquer oportunidades educacionais de milhões de crianças e jovens refugiados3” (ACNUR, 2021, p. 04).
A demanda é inquestionável e urgente. Cabe, portanto, adentrar no próximo movimento argumentativo, que nos permita melhor compreender as raízes das violências nos cenários contemporâneos.
2. Rotas de fuga embrenhadas na mixofobia
A compreensão das raizes e consequencias da situação humanitária, agravadas no contexto contemporâneo, tem importante contribuição a reflexão desenvolvida Zygmunt Bauman, tendo ele próprio sofrido e vivenciado as mazelas da perseguição e das dubiedades identitárias que caracterizam um refugiado. Da extensa obra do autor, elegemos dois conceitos para uma aproximação reflexiva da problemática dos direitos humanos em contextos de riscos humanitários: a mixofillia e a mixofobia. Em primeiro lugar, neste movimento argumentativo, situamos a mixofobia, a qual permite compreender o quanto
[...] as pessoas esqueceram ou negligenciaram o aprendizado das capacidades necessárias para conviver com a diferença, não é surpreendente que elas experimentem uma crescente sensação de horror diante da ideia de se encontrar frente a frente com estrangeiros. Estes tendem a parecer cada vez mais assustadores, porque cada vez mais alheios, estranhos e incompreensíveis (Bauman, 2009, p. 46).
Entretanto, colocar em prática a separação, o rechaço da diferença, buscando comunidades homogêneas de pares, restringindo a convivência apenas aos “como nós”, só alimentará e justificará a mixofobia, cujas origens “[...] são banais e não muito difíceis de identificar. São facilmente entendidas, embora não se possa dizer que sejam fáceis de justificar” (Bauman, 2009, p. 44). E, assim, o conjunto de sentimentos produzidos na “paranóia mixofóbica” passa a alimentar o rexaço e exclusão dos estranhos que batem à porta, sendo a segregação justificada como “[...] um remédio radical para o perigo representado pelos estrangeiros, a coabitação com os estrangeiros irá se tornar cada dia mais difícil (Bauman, 2009, p. 49-50).
Na obra “estranhos à nossa porta” Bauman (2017), no capítulo, “antropológicos versus temporais: as raízes do ódio”, traz novos elementos que permitem a compreensão de como os sentimentos mixofóbicos são reforçados. A mixofobia, se alimenta e produz adesão a uma ideia ou visão, feita tal qual uma crença, ou profissão de fé num dogma. E assim, atua “[...] rejeitando a priori, ou dispensando prontamente como anomalia ou falsidade, toda evidência que ponha a crença em dúvida” (Bauman, 2017, p. 100).
De tal sorte, enredados nos enraizamentos antropológicos surgem novas linhas de fuga, reafirmando as crenças e as escolhas de ação. Assim, “circunscritos pelo tempo”, “[...] habitamos, de modo sem precedentes, dois mundos diferentes - o “on-line” e o “off-line” (Bauman, 2017, p. 101), entre os quais transitamos. O livre trânsito, entre estes diferentes mundos, aparece como um espaçotempo libertador, nos quais se pode entrar ou não em contato com as cenas mais desagradáveis, ou ainda se pode melhorar as imagens com photoshop para que produzam uma moldura melhor para consumo.
O que não pode ser controlado, que amedronta ou preocupa pode ser evitado pela rota de fuga do mundo on-line. “Passar do mundo off-line para o on-line assemelha-se a entrar num mundo obediente à minha vontade, pronto e ansioso para concretizar meus desejos” (Bauman, 2017, p. 102). O mundo online permite que se fechem as janelas, se tapem os ouvidos e os olhos, que se ignore a crueza da violência que nos cerca.
A perspectiva que a realidade virtual apresenta, seduz de modo envolvente usuários de todas as idades. “E assim, de forma previsível, os pesquisadores têm encontrado muitos usuários da internet empregando as facilidades da web com o objetivo de se isolar das visões e dos sons do campo de batalha” (Bauman, 2017, p. 105). A segurança e aparente proteção do mundo on-line, gera uma “zona de conforto” na qual é possível um mundo alinhado no qual “[...] só pessoas de mentalidade semelhante são admitidas enquanto se barra a entrada daquelas que estão do lado oposto da controvérsia” (Bauman, 2017, p. 105).
Não há necessidade de se envolver na solução dos problemas, basta deletar, cancelar o problema e ou as pessoas, que se invisibilizam, se ocultando atrás da cegueira ética e moral. “Sem dúvida a internet não é a causa do número crescente de internautas moralmente cegos e surdos, mas ela facilita e alimenta demais esse crescimento” (Bauman, 2017, p. 107).
Os problemas gerados pela “crise migratória” atual e exacerbados pelo pânico que o tema provoca pertencem à categoria dos mais complexos e controversos: neles, o imperativo categórico da moral entra em confronto direto com o medo do “grande desconhecido” simbolizado pelas massas de estranhos à nossa porta. O medo impulsivo gerado pela visão de migrantes portando inescrutáveis perigos entra em luta com o impulso moral estimulado pela visão da miséria humana (Bauman, 2017, p. 104).
Aspectos apresentados ao longo desse segundo movimento, reafirmam e reforçam, o quanto a mixofobia produz e mantém as suspeitas, o afastamento e a exclusão dos estranhos, dos diferentes e ou os não perfilados.
Portanto, a superação ou pelo menos atenuação dos graves problemas gerados pela situação humanitária são bastante urgentes e requerem ações intersetoriais e urgentes, nas quais as vias do diálogo sejam capazes de conectar os esforços dos campos dos direitos humanos e dos direitos humanitários.
3. Nas vias do diálogo as linhas de conexão da mixofilia
As ações humanitárias supõe acolhimento e desenvolvimento de conexões que estabeleçam vias para o diálogo, pelas quais seja possível a tecitura das linhas da mixofilia (Bauman, 2009).
O conceito de mixofilia compreende um conjunto de princípios e valores que buscam o acolhimento, a empatia, a escuta respeitosa e solidária, ou seja, que promovam o diálogo inclusivo. A mixofilia gera a confiança que agrega, acolhe e inclui os diferentes, migrante e refugiados, com respeito à diversidade e à interculturalidade, valorizando as contribuições de todas e todos.
Nesta perspectiva, há que se constituir uma via metodológica para materializar as vias de conexão pressupostas na mixofilia. Encontramos tal indicação em Bauman (2017), que, apoiado na abordagem hermenêutica de Hans Gadamer, em verdade e o método, ressalta a premência do diálogo, da conversa que leva à compreensão, num processo de “fusão de horizontes”.
Horizontes de conhecimentos forjados respectivamente, pelas linguagens empregadas por todas as partes da humanidade ao se encontrarem e entabularem conversações - linguagens que cada uma das partes emprega para, com sua ajuda, aprender entender e acomodar o mundo em que vive (seu lebenswelt ‘mundo da vida’) - estão se aproximando do ponto da mistura e da fusão.” Mas permitam-me acrescentar, para que isso aconteça, para que os dois domínios do incomum se tornem comuns a ambos os lados do diálogo, os dois “mundos da vida” até agora separados - divergentes entre si, e por isso mutuamente estranhos - necessitam primeiro se tornar, de modo progressivo, próximos da superposição (Bauman, 2017, p. 111-12).
A possibilidade de aproximação e conversação entre diferentes se poderá viabilizar por uma atitude de abertura ao outro, por uma consciência da provisoriedade e incompletude das próprias visões, e pela busca de uma reciprocidade equitativa.
Tal possibilidade torna-se viável na perspectiva de desenvolvimento de uma relação dialógica capaz de respeitar e incluir os argumentos advindos das diferentes visões que participam da conversação.
Nessa direção, tanto a escolha, como a gestão das metodologias dialógicas, haverá de considerar a importância de se compreender que no decorrer das “conversas”, as convergências podem ser construídas e efetivadas, deste que a conversa seja compreendida com um processo dinâmico e aberto, tendo a participação como direito e princípio inclusivo.
A participação se constitui direito do conjunto de sujeitos do processo pedagógico, quer estejam no papel de educadores(as) ou educandos(as), em conformidade tanto com as políticas educacionais, que enfatizam a participação democrática nos processos educativos, quanto com as políticas da infância, que estabelecem o direito à participação das crianças e adolescentes, os(as) estudantes da educação básica (Eyng, Silva & Pacheco, 2022, p. 16).
Portanto, as metodologias dialógicas se caracterizam por sua dinâmica, na qual a participação promove a tradução que possibilite a compreensão mútua, a identificação das convergências e a negociação dos aspectos prioritários para a ação conjunta, como um processo aberto. São metodologias marcadas pela participação, nas quais os procedimentos, “[...] tendem a emergir - assim como a ser negociados e revisados - no curso dessa conversação” (Bauman, 2017, p. 112). Portanto, “[...] todo o diálogo deveria ser ’informal’, ou seja, deveríamos abster-nos de fixar as regras procedimentais da conversa antes de ela começar (Bauman, 2017, p. 113).
Nessa direção, o processo metodológico inclusivo promove escuta-acolhimento-corresponsabilidade, em um movimento pleno de participação. E assim, reiteramos que nas linhas da mixofilia “[...] o mundo que habitamos pode ser melhor que hoje; e podemos fazer com que ele seja mais ‘amigável’, mais hospitaleiro, para a dignidade humana (Bauman, 2010, p. 81).
Considerações finais
Os direitos humanos, em risco nos cenários contemporâneos, com milhares de refugiados, deslocados internos, órfãos da Covid, vítimas de guerras, reféns da criminalidade evidenciam uma situação humanitária ampliada em escala global.
Nestes cenários, os direitos humanitários devem entrar em ação, em conjunto com os direitos humanos para a que as inseguranças, a par com o aumento da pobreza, que produzem maior risco para as violências, sejam compreendidos, gradativamente visibilizados e superados
Há que se ter em especial atenção o cuidado e proteção, via ações intersetoriais para os grupos mais vulneráveis, destacando-se entre os mais vulneráveis os pobres e desse contingente: as crianças, os idosos, os portadores de necessidades especiais e os diferentes das padonizações hegemônicas contruidas históricamentes.
Entretanto, quando esses dois caracterizadores, infância e pobreza se encontram em territórios marcados pelas violências provocadas pelos conflitos das guerras e ou da criminalidade, desestabilizam as relações e instituições que podem atuar na proteção e prevenção para a efetiva garantia de direitos da infancia.
O diálogo, a conversação via metodologias dialógicas e participativas, será potencialmente capaz de elucidar os fatores de risco nos contextos contemporâneos, circunscritos aos jogos geo-políticos, econômicos, mas também ideológicos e culturais.
A perspectiva participativa intersetorial poderá ter como repercussão impactos de melhora individual e coletiva na garantia de direitos humanos e proteção humanitária, e assim, buscar atender a uma demanda histórica, que implica em tarefa coletiva capaz de sensibilizar as subjetividades para o acolhimento, para a solidariedade na superação do estranhamento do medo que produz e mantém o afastamento e a indiferença.