Introdução
A ditadura salazarista, na historiografia sobre o tema, esbarra na seguinte discussão: ela foi ou não um regime fascistas? João Bernardo, em seu trabalho Labirintos do Fascismo (2003), defende que o salazarismo foi, sim, um regime fascista, porém, para outros autores, faltava a Salazar o carisma típico do ditador fascista, mas certo é que o salazarismo costurou na Constituição de 1933 os mecanismos de controle das instituições e, consequentemente, da sociedade civil com as proposições de um estado de controle ditatorial, que tentava passar, principalmente, para seus vizinhos do Velho Continente um verniz de normalidade e mascarar seus viés ditatorial fascista.
Nós somos partidários dos que defendem que Salazar foi um ditador fascista, portanto, concordamos com os autores que classificaram o salazarismo no âmbito dos regimes fascistas. Essa ideologia autoritária de extrema-direita passou a ser combatida na Europa do pós-guerra, segundo Silva “o texto jurídico da Constituição não pode ser tomado para balizar as ações práticas do regime do Estado Novo. Ademais, este era um modo de contornar a reputação internacional na classificação ditadura” (Silva, 2019, p. 4). Todavia, “o regime era centrado no lema Deus, Pátria e Família, doutrina baseada em certa moral cristã e difundida por organizações juvenis, como a Mocidade Portuguesa, e paramilitares como a Legião Portuguesa, assim como na educação fortemente ideológica e nacionalista” (Silva, 2019, p. 4).
Na década de 1950, quase duas décadas após Salazar se instalar no poder, inúmeros intelectuais e estudantes que se opunham ao regime salazarista buscaram o exílio, forçado ou espontâneo, para não serem perseguidos e aprisionados pela polícia política que respaldava os delírios de Salazar.
Muitos intelectuais foram perseguidos pelo simples fato de pensarem sobre o futuro país, não havia possibilidade de qualquer resistência às normas estabelecidas. Isso tornava qualquer um suspeito de conspiração contra o regime. O aparelho coercitivo do Estado português censurava e controlava seus opositores de forma dura, a opinião pública em Portugal e nas colônias eram censuradas, os opositores eram vigiados e perseguidos, a polícia política não necessitava de nenhum fato para acusar, sem provas, e encarcerar os inimigos do salazarismo. Reinava, assim, no cotidiano oposicionista e na opinião pública portuguesa uma grande insegurança.
Os principais alvos da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) foram os comunistas, mas também qualquer um que pudesse, por suas opiniões, causar desconforto aos donos do poder. Segundo Irene Pimentel, apesar de picos registrados em relação a maior atuação dessa polícia política do regime, as detenções que não ocorreram de forma massiva, elas eram seletivas e contava com uma ampla rede de informante apoiando sua atuação,
“À semelhança de todas as polícias políticas das ditaduras, a PIDE não necessitava de ser muito aperfeiçoada nas tarefas de informação e de investigação. Tinha desde logo a sua vida amplamente facilitada pela utilização de uma ampla rede de informantes, pagos ou não, controlados pelos serviços de informação, montados e chefiados pelo inspetor Álvaro Pereira de Carvalho, entre 1962 e 1974. Além disso, contava com a colaboração das outras polícias, das Forças Armadas, da Legião Portuguesa (formação paramilitar do regime), e de todas as estruturas do Estado ditatorial, bem como do aparelho distrital e local. Por outro lado, contava também com o apoio voluntário ou involuntário das populações, num país pequeno onde um clandestino tinha grande dificuldade em passar despercebido” (Pimentel, 2011, p. 144).
A PIDE/DGS foi criada pelo Decreto-Lei n.º 35 046, de 22 de outubro de 1945, em substituição da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), criada no ano de 1933, logo após a promulgação da Constituição salazarista, com o papel de polícia política.
O aparelho coercitivo do Estado português deveria vigiar e reprimir reuniões clandestinas, pois a Constituição havia suprimido a liberdade de reunião e reorganizado a censura (papel atribuído ao Secretariado de Propaganda Nacional). A censura esteve atenta aos movimentos de intelectuais portugueses e estrangeiros, afinal a ameaça comunista, de acordo com a mentalidade do regime, poderia ser infiltrada no país pela ameaça comunista internacional, exemplo disso, temos no prefácio da obra Pele Negra, Mascaras Brancas, de Frantz Fanon, escrito pela intelectual portuguesa Grada Kilomba, onde é dito que “sabe-se que no final dos anos 1960 a obra foi traduzida em Portugal, no Porto, e de imediato censurada e eliminada do mercado pelos serviços secretos, não voltando a reaparecer até hoje. A sua circulação durou apenas alguns dias - após ser distribuída para leitura ela foi proibida” (Kilomba, 2020, p. 14). No prefácio encontramos ainda a transcrição da justificativa que traz o documento de censura para a obra de Fanon, “O autor é negro, comunista [...]. Trata-se duma diatribe contra a civilização ocidental, numa pseudodefesa das civilizações negras, oriental e índia. Para proibir”. (Kilomba, 2020, p. 14).
Partimos desses pressupostos para escrever o nosso artigo: intelectuais perseguidos e censurados em seu país que partem para o exílio e formam um importante elo de resistência fora de Portugal para denunciar as atrocidades do regime salazarista.
1. Na busca por dias melhores: intelectuais migrantes
A nossa narrativa refere-se aos intelectuais que militaram contra o governo de António Salazar em Portugal, tendo como pano de fundo o desdobramento de algumas pesquisas realizadas sobre a emigração portuguesa para o Brasil e que estiveram na militância política de oposição ao regime salazarista no além-mar.
Uma das expressões significativas desse protesto na cidade de São Paulo foram os jornais Portugal Livre e Portugal Democrático, entre outras manifestações na vida daqueles lutadores inconformados que buscavam algo melhor, a liberdade.
A militância contra o governo salazarista não foi o início das lutas dos intelectuais portugueses contra a mordaça imposta pelo Estado português no século XX, pois em um período anterior, já nos anos de 1920, a situação social foi tornando-se cada vez mais difícil em Portugal.
No ano de 1928, o general Óscar Carmona assumiu a presidência do país. Carmona convidou António de Oliveira Salazar, formado em Direito em 1914 pela Universidade de Coimbra, e que nesse contexto ocupava a vaga de professor catedrático de Economia Política, Ciência das Finanças e Economia Social na referida Universidade, para ocupar a cadeira de ministro das Finanças. Salazar aceitou com a condição de supervisionar os ministérios e de ter direito de veto sobre os aumentos das despesas, com isso, António Salazar conseguiu aumentar as receitas do país, graças à redução dos custos na área da saúde, educação e do pagamento dos funcionários públicos, além de outros gastos.
A administração salazarista pretendia criar um Estado forte, que garantisse a ordem, o que não aconteceu no período da Primeira República portuguesa, entre 1910 e 1926. Para Salazar, o governo deveria assentar-se essencialmente no reforço do Poder Executivo. Sua ideia foi substituir o pluralismo partidário por um partido único e abolir os sindicatos livres. Salazar, defendia a preservação de valores tradicionais tais como Deus, Pátria e Família (slogan fascista), de modo a formar uma sociedade educada e com bons princípios morais.
O governo caracterizou-se ainda pelo imperialismo colonial e nacionalismo econômico, à semelhança de Mussolini e de Hitler. Os direitos dos cidadãos foram muito limitados, bem como as suas liberdades. Já no ano de 1926 instituiu-se a censura aos meios de comunicação social com o objetivo de supervisionar todos os assuntos políticos, religiosos e militares.
A influência de Salazar dominava todos os setores da vida portuguesa, repressão e censura cerceavam as liberdades individuais, políticas e todos os direitos civis e trabalhistas como, por exemplo, as greves que foram seriamente restringidas. Os direitos dos cidadãos foram muito limitados, essas ações impediram a divulgação de atividades contra o governo, alguns livros, jornais e outras formas de expressões de pensamento e ideologias divergentes ao governo foram proibidas, assim impedia-se que a opinião pública fosse livre.
O salazarismo chega aos anos de 1940-1950 fortalecido, governava com mãos de ferro não abrindo de controlar o cotidiano das pessoas comuns. Esse momento coincide com a expansão da american way of life mundo afora, assim como no Brasil, a cultura do estilo de vida norte-americano rondava o imaginário da civilização ocidental da época e Portugal não esteve livre de suas influências. É importante frisar que o estilo de vida pregado pelos americanos traz embutidos o ideal anticomunista, e isso se casava perfeitamente com o pensamento salazarista. Havia muita resistência a esta forma de cultura entre os intelectuais portugueses, as mulheres intelectuais, e as mulheres em geral eram frutos de seu tempo.
Essa mulher foi inserida na cultura do american way of life através da projeção do ideal de feminilidade, onde as mulheres entre os finais dos anos 1940 e 1950 desempenhavam funções muito definidas socialmente através de arquétipos como: a moça solteira que se mantinha virgem até o casamento, a esposa dedicada ao lar, ao casamento e aos filhos, mas que deveria se manter bela e recatada. O corpo era adornado por indumentárias que valorizavam a cintura, o quadril e os seios, em uma espécie de tríade entre o seduzir, o parir e o nutrir em uma sociedade patriarcal que vigiava os gestos, os usos, os costumes e as atitudes das mulheres em espaços públicos e privados. Havia toda uma rede de discursos no Ocidente capitalista, em especial no pós-guerra, que tinha como função doutrinar, ensinar e divulgar o arquétipo ideal de feminilidade,
“Ser mãe, esposa e dona de casa era considerado o destino natural das mulheres. Na ideologia dos Anos Dourados, maternidade, casamento e dedicação ao lar faziam parte da essência feminina; sem história, sem possibilidade de contestação. Essa vocação prioritária era a marca da feminilidade da época e estava impregnada no processo de educação das mulheres. Como diz a autora os conselhos sobre como se comportar estavam sempre presentes nas conversas entre mãe e filha, nos romances para moças, nos sermões do padre, nas opiniões de um juiz ou legislador sintonizado com seu tempo. Isso não quer dizer que todas as mulheres pensavam e agiam de acordo o esperado, e sim que as expectativas sociais faziam parte de sua realidade, influenciando suas atitudes e pesando em suas escolhas” (Bassanezi, 2006, p. 609).
Um pouco fora dessa curva de norma-padrão estavam mulheres de baixa renda que necessitavam trabalhar. Muitas eram provedoras do seu sustento e de sua família, assim tinham outras formas de comportamento, inclusive burlavam os costumes da forma de se vestir, já que, por muitas vezes, usavam uniformes das fábricas e de outros locais em que trabalhavam, que poderia ou não, incluir calças compridas.
As mulheres não trabalhavam, as mulheres do lar, que não seguissem à risca os padrões pré-estabelecidos na sociedade conservadora em que viviam, eram vistas como exemplo daquilo que não deveria ser seguido. Isso significava ser mal vista, mal falada, vale dizer que as regras e as cobranças recaíam com maior peso sobre as mulheres que pertenciam às elites e ou à classe média, pois estas tinham mais acesso a tais modelos culturais estadunidenses de comportamento infiltrado através da indústria cultural.
Os portugueses receberam a influência dos referidos padrões culturais com maior evidência na década de 1950, inclusive muitas mulheres apoiaram o Estado salazarista e seus discursos de valores moralistas, patriarcais e burgueses. A educadora Maria Joana Leal, que foi presidente da Liga Independente Católica Feminina, escreveu no Diário de Lisboa, em maio de 1958, um texto sobre a importância do voto feminino,
“(...) as mulheres portugueses vão votar em respeito e gratidão a Salazar. Nós mulheres portuguesas que temos uma personalidade que não é apenas um elemento amorfo de uma massa que se deixa dominar por agitadores, nós que nos dirigimos por uma inteligência que sabe discernir e uma vontade que sabe querer, não queremos a Portugal a desordem. Queremos uma política que tenha na base os princípios cristãos, que assegure a liberdade religiosa e a santidade da família que respeite as tradições e esteja a altura do destino de Portugal” (Tavares, 2010, p. 55).
Um ditador não permanece tanto tempo no poder se não tiver apoio de uma parcela considerável da população. O respeito e admiração a Salazar são explícitos no discurso acima transcrito, o qual o apresenta como um herói para as mulheres que aceitavam e concordavam com o conservadorismo e com os papéis que lhes eram atribuídos. Assim, a figura do ditador era uma referência de masculinidade, decência, cuidado, ordem, disciplina, um líder mitificado como o condutor de uma nação, emoldurado de hombridade por alguns discursos, entre eles estava o que já analisamos do Diário de Lisboa, bem como a revista Menina Moça, publicação que surgiu em 1947 e vigorou até 1974,
“(...) revista dirigida às jovens portuguesas como um importante instrumento ideológico do regime: Menina e Moça. Feminilidade, simplicidade, recato, disciplina, austeridade, empenhamento na vida escolar, religiosidade são valores sempre presentes desde o primeiro momento e que permanecem até ao último número. Enaltecer a figura de Salazar era também o objectivo de muitos dos artigos escritos que o apresentavam como uma figura de referência, um pai da Nação que tinha desistido dos seus interesses pessoais para a servir” (Tavares, 2010, p. 55).
Esse foi o contexto de adesão ou de contestação ao salazarismo. Inconformados com a situação opressora em que se encontrava Portugal, muitos homens e mulheres comuns migraram para o Brasil, entre eles alguns intelectuais. O principal destino do desembarque de muitos portugueses, italianos, espanhóis, japoneses, sírio-libaneses, russos, húngaros, poloneses, armênios e judeus foi a região Sudeste, em especial o estado e a cidade de São Paulo, onde deixaram vários vestígios históricos como cartas, passaportes, fotografias, hábitos alimentares, assinaturas em livros de registros de hospedarias, de hospitais, de pensões e de prisões, que demarcam suas entradas e saídas, e até mesmo na cultura material arquitetônica expressa na estética dos bairros étnicos e na cultura imaterial representada nas festas, dança, música e na oralidade.
O trânsito transatlântico Portugal-Brasil é um tema bastante explorado na historiografia brasileira. A imigração relaciona-se diretamente aos espaços rurais e/ou urbanos, compreendendo questões do trabalho no campo e na cidade, em especial a cidade de São Paulo, num arco temporal que vai da segunda metade do Oitocentos até aproximadamente os anos cinquenta de Novecentos, pois o espaço urbano paulista foi o palco onde foi montado o cenário da sobrevivência de muitos imigrantes.
Segundo os estudos sobre imigrações, foi na década de 1950 que houve o maior fluxo de imigrantes intelectuais portugueses para o Brasil, fixando-se na cidade de São Paulo, onde por meio de manifestações jornalísticas, buscaram, sem dúvida, a liberdade de expressão. Uma das expressões significativas do protesto desses imigrantes no universo urbano paulista foi o jornal Portugal Democrático. Não podemos deixar de observar um fato importante na vida portuguesa durante o regime salazarista referente a imigração, em que muitos jovens partiram para o exílio devido a repulsa ao recrutamento militar obrigatório que os convocava para defender os territórios coloniais portugueses, devido aos conflitos anticoloniais, que se avolumavam, principalmente nas décadas de 1960 e 1970.
2. Intelectuais exilados e a oposição ao salazarismo
Estabelecidos na cidade de São Paulo, e com o desejo de resistir e se manifestar contra a ditadura salazarista, os intelectuais que migraram para nosso país ganharam cada vez mais força, se expressando através de produções acadêmicas, livros, aulas, artigos, charges em revistas e jornais específicos.
O jornal que alcançou maior projeção foi Portugal Democrático, oferecendo boas contribuições aos portugueses que aqui estavam, mas também aos brasileiros que estivessem interessados no que ocorria em Portugal. O jornal contou com a participação de pessoas importantes e experientes dentro do movimento contra-autoritário imposto por António Salazar. Com uma linha editorial de perfil ideológico alinhada ao comunismo, posteriormente rivalizou com o jornal Portugal Livre, dirigido pelo militar exilado no Brasil, Humberto Delgado, de perfil conservador e que passou a atacar seus patrícios em seus editoriais.
No princípio, os artigos e crônicas nas páginas do Portugal Democrático tinham como tônica a defesa da unidade entre seus colaboradores. Contudo, o jornal foi aos poucos sendo liderado quase que exclusivamente pelo núcleo comunista, o que acabou desagradando alguns integrantes. Assim, a solução encontrada pela redação confrontava as novas questões e efervescências recém-trazidas de Portugal por Delgado. Foi uma questão de meses para tais divergências se tornarem incontornáveis.
Antes da ruptura entre os intelectuais que atuavam no Portugal Democrático, que aliados a imprensa brasileira, foi responsável pela divulgação da trajetória de Humberto Delgado, desde seu rompimento com o Estado salazarista, agravado em 1958, quando foi candidato às eleições, e por questões de fraudes eleitorais foi vencido por Américo de Deus Rodrigues Tomás, que exerceu o cargo de Presidente da República, entre os anos de 1958 a 1974.
O jornal em todas as suas publicação não poupava espaço para informar os leitores sobre o calvário de Delgado até o exílio, ajudando a consolidar sua imagem de líder. Não há dúvida que o Caso Delgado criou um grande entusiasmo e expectativa entre os intelectuais portugueses e brasileiros. Miguel Urbano Rodrigues, jornalista do Portugal Livre, fundador e redator, um dos mais expressivos intelectuais daquele jornal, certa vez, afirmou não ser fácil analisar e julgar a personalidade de Humberto Delgado.
Segundo o jornalista, Delgado apresentava “ambição com facetas infantis, era vaidoso, exibicionista, autoritário, conflituoso e não tinha o menor senso do ridículo”. Mesmo assim, o general, integrou os dois jornais, tanto o Portugal Democrático, quanto o Portugal Livre.
Foi no São Paulo cosmopolito que as grandes idéias referentes a ditadura salazarista se cristalizavam, em especial na década de 1950. Ao mesmo tempo, divergiam entre si. O general Humberto Delgado, de forma perspicaz, logo percebeu esta situação dúbia. O jornal Portugal Democrático publicou em seu editorial de julho de 1959 um apelo à unidade e organização em torno de Humberto Delgado, ao afirmar que “desde sempre, este jornal se valeu pela unidade que deve, necessariamente, presidir a ação dos oposicionistas de todos os matizes ideológicos na sua luta comum na libertação de Portugal”. Indicar e insistir nas divergências de idéias, justo após a chegada de alguém que deveria representá-la, sugere o quão frágil e possivelmente inexistente ela pode ser. A relação entre os comunistas e Miguel Urbano Rodrigues havia ficado abalada em virtude dessa insistência de temas e divergências de visão quanto à ação política.
Essa divergência foi o motor para criação de um novo jornal que aninhasse os interesses do grupo ligado a Delgado. Assim, o Portugal Livre nasceu da necessidade de solucionar a forma de agir da oposição a partir do exílio, impulsionada pela chegada de Humberto Delgado no Brasil, que uniu forças e vontades já manifestas no meio da oposição. O nome do jornal remete à campanha de Delgado e aos inúmeros cartazes colados nas ruas de São Paulo para recepcionar o general, com a sua foto emoldurada pelas cores vermelho e verde e a frase Portugal Livre na parte superior.
O ideal em torno dos oposicionistas, fossem eles de direita ou de esquerda, democratas ou monarquistas, que se posicionavam contra as atrocidades do governo ditatorial salazarista se uniram no jornal Portugal Livre. Era importante discutir a respeito da situação de Portugal pós-Salazar. Qual seria a melhor forma de organizá-lo do ponto de vista político e econômico? Como ficaria o país?
O Portugal Livre foi declarado como órgão oficial do Movimento Nacional Independente (MNI), fato que estava explícito nas suas primeiras edições, principalmente na primeira: “Portugal Livre não é apenas um jornal de oposição - é o órgão da Democracia Portuguesa, o porta-voz do MNI, cada um dos seus leitores que o faça chegar a Portugal e prestará à causa da Liberdade um grande serviço”.
Os redatores principais do Portugal Livre foram Miguel Urbano Rodrigues, Victor da Cunha Rego e João Santana Mota que, anteriormente, trabalharam em Portugal no jornal Diário Ilustrado, e no Brasil, no jornal O Estado de São Paulo. Tiveram como colegas jornalistas escritores brasileiros, como Paulo Duarte, arqueólogo, escritor e professor da Universidade de São Paulo, simpatizante das ideias de Delgado. Esses intelectuais publicavam com facilidade artigos assinados por Adolfo Casais Monteiro, professor, poeta, escritor e crítico literário. Outro brasileiro envolvido no projeto foi Claudio Abramo, neto de anarquistas italianos, que cresceu sob influência de líderes socialistas brasileiros, como Paulo Emílio Salles Gomes, Lívio Xavier, Mário Pedrosa e Hermínio Sacchetta, entre outros. Abramo iniciou seus trabalhos no jornal O Estado de São Paulo e foi convidado por simpatizantes das lutas antissalazaristas, através de um movimento organizado por Paulo Duarte nos anos 1950, a fazer a reforma gráfica e editorial dos jornais, para que tivessem um aspecto mais moderno em suas formas de edição.
Celso Ribeiro Bastos, foi um outro colaborador brasileiro, um jovem estudante de Direito, filho de portugueses residentes no Brasil. Seu pai chamava-se Joaquim Ribeiro Bastos, um comendador português que acreditava na derrota de Salazar e financiava projetos oposicionistas. Celso foi atuante colaborador do jornal, escrevendo artigos ou auxiliando em funções administrativas, além de fazer a ponte entre a juventude universitária brasileira com a luta antissalazarista, através do movimento estudantil para a referida causa. Foi o porta-voz da mocidade que simpatizava com a luta dos portugueses.
Por sua vez, Yvonne Felman, uma jornalista de São Paulo, foi redatora dos jornais Diário de São Paulo e Última Hora, uma das poucas mulheres que trabalhou no Portugal Livre. Escritora politizada, agiu em defesa da democracia, escrevendo um dossiê intitulado “Diálogo com a Mulher Portuguesa”, no qual buscou encorajar as mulheres na luta contra o salazarismo, evocando a importância feminina na História de Portugal.
As décadas de 1950 e 1960 foi de intensa mobilização contra o salazarismo. No exílio, muitos intelectuais portugueses proferiram palestras buscando conscientizar a opinião internacional a respeito do que se passava em seu país. Escreveram cartas para a Organização das Nações Unidas (ONU), organizaram conferências e comemorações anuais da instauração da república. No Brasil, os intelectuais portugueses encontraram maior acolhida entre os brasileiros intelectuais de esquerda do que nos seus patrícios. Eram poucos os portugueses imigrantes que se interessavam pela luta antissalazarista no Brasil.
“Os imigrantes políticos e refugiados do regime acabaram estreitando relações com intelectuais e com a esquerda brasileira, e não com a própria comunidade portuguesa, que em sua maioria não compartilhava de seus ideais. A aproximação entre os exilados e a esquerda brasileira pode ser percebida através do jornal Portugal Democrático. Vários intelectuais brasileiros colaboraram nas suas publicações, nomes importantes como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardos, Caio Prado Junior, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros personagens da esquerda brasileira. Houve também o apoio de algumas editoras brasileiras, como a Paz e Terra e a Editora Civilização Brasileira, que publicaram obras de crítica ao salazarismo de alguns dos exilados” (Conceição, 2016, p. 20).
Percebemos uma clara e forte união entre os interesses de intelectuais portugueses e brasileiros que se empenharam na luta pela liberdade de Portugal, disseminando suas idéias através da imprensa com auxílio de empresários luso-brasileiros. Outra forma de resistência ao salazarismo no ultramar foi a inserção de alguns intelectuais portugueses na academia, sobretudo na Universidade de São Paulo, onde foi docente o historiador Joaquim Barradas de Carvalho. Ainda sobre o personagem Barradas de Carvalho, segundo nos informa Conceição, este intelectual que escrevia a coluna “O Obscurantismo Salazarista”, ele se exilou na França e no Brasil, mais especificamente em São Paulo, onde fez parte da chamada imprensa imigrantista.
O jornal Portugal Livre teve uma vida efêmera, com o encerramento de suas atividades. Boa parte dos seus colaboradores voltaram a fazer parte do Portugal Democrático, além de terem integrado as redações de outros jornais brasileiros, como por exemplo no jornal O Estado de São Paulo, onde Júlio de Mesquita Filho empregou Jorge de Sena, Vitor Ramos, entre outros. Humberto Delgado, convencido de que o regime salazarista não poderia ser derrubado por meios pacíficos, retorna a Portugal no ano de 1962, promovendo a realização de um golpe de Estado que visava tomar o quartel de Beja, além de outras posições estratégicas no país.
Os planos de Delgado fracassaram. O general tomou então a decisão de reunir-se com opositores ao regime do Estado Novo, dirigindo-se à fronteira espanhola em Los Almerines, perto de Olivença, em 13 de fevereiro de 1965. Ao seu encontro vai um grupo de agentes da PIDE, liderado por Rosa Casaco. O agente Casimiro Monteiro assassinou Humberto Delgado, bem como a sua secretária, a brasileira Arajaryr Campos. Os corpos foram ocultados perto de Villanueva del Fresno, cerca de 30 quilómetros ao sul do local do crime.
O Brasil, a partir de 1964, caiu nas garras da Ditadura Militar, dita por alguns, Ditadura Civil Militar. O fato é que esse tipo de regime era bem conhecido pelos intelectuais antissalazaristas, que se encontravam no exílio no país e que tiveram receio de sofrer retaliações, pois seus maiores interlocutores eram os intelectuais de esquerda brasileiros. Contudo, a resistência desses semeadores de cravos não se esmoreceu. Ao invés de combater de frente a ditadura salazarista, desviaram o foco para a discussão da descolonização dos territórios africanos que ainda permaneciam ligados ao chamado império português, e que era um dos trunfos salazaristas para se manter no poder.
Os portugueses do Portugal Democrático passaram a focar-se nas guerras na África portuguesa e na descolonização desses territórios. Essa pauta foi muito importante porque ajudou a minar a ditadura que perdeu seu artífice que saiu de combate no ano de 1968 após sofrer uma queda. Morto em 1970, Salazar deixou o salazarismo como uma herança maldita a ser combatida. Marcello Caetano substituiu o ditador no ano de 1968 e governou até 25 de Abril de 1974, data da queda da ditadura salazarista em Portugal.
Considerações finais: os cravos floresceram
Como vimos acima, o receio de perseguição, pela ditadura militar brasileira, enfrentado pelos intelectuais portugueses exilados no país, fez com que esses mudassem o vetor de seus ataques, ou seja, o foco da resistência ao salazarismo passou a ser a divulgação, no Brasil, das revoltas das colônias portuguesas em África e na Ásia. Apesar da ambiguidade sobre este tema - a descolonização da África e da Ásia - os intelectuais do Portugal Democrático, no final da década de 1950, se posicionavam favoráveis a este respeito, como nos informa Adelaide Machado, Hélder Garmes e Felisberto Assunção.
“A própria oposição republicana e mesmo a comunista detinha uma posição bastante ambígua sobre a questão colonial, havendo uma longa letargia em assumir posições expressamente anticoloniais. Somente em 1957 (no V Congresso do Partido Comunista Português) houve uma resolução propriamente em prol das lutas por libertação anticolonial. No exílio, no Brasil, essas posições eram um tanto ambíguas, havendo, no entanto, algumas posições no jornal Portugal Democrático (1956-1975) que flertavam com posturas explicitamente anticoloniais, como o caso notório de Miguel Urbano Rodrigues, Manuel Sertório, Jorge de Sena e Eduardo Lourenço” (Machado, Garmes & Assunção, 2023, p. 30).
As lutas travadas entre a metrópole e suas colônias africanas se avolumaram a partir da década de 1960, chegando até o momento que antecedeu a Revolução dos Cravos, no dia 25 de Abril de 1974. As guerras anticolonialistas foi a reação das colônias africanas e da Ásia contra a opressão das metrópoles europeias - França, Inglaterra e Portugal - no pós-Segunda Guerra. O Estado Novo forte, idealizado por Salazar, estava assentado na manutenção das colônias em África e Ásia. Foi, assim, inconcebível para o ideal salazarista aceitar o movimento independentista que ganhava corpo a partir dos anos 1960. As reações do Estado português às rebeliões em suas colônias foi de repressão e resistência. Portugal se negava a aceitar a legitimidade do movimento independentista em suas posses. Segundo Michel Cahen,
“o Estado Novo impôs a necessidade de lutas armadas, recusando qualquer evolução pacífica, mesmo depois dos avisos que foram a revolta da Baixa de Cassanje (Angola, inícios de 1960), o motim de Mueda em Moçambique (16 de junho de 1960), o ataque às prisões de Luanda (Angola) por militantes africanos no dia 4 de fevereiro de 1961, a grande revolta do norte de Angola na primavera de 1961, a perda de São João de Ajuda aquando da independência do Benim e, por fim, na Índia, a perda de Goa, Damão e Diu, em dezembro de 1961. Desde 1961 em Angola, 1963 na Guiné e 1964 em Moçambique, que Portugal se confrontou com lutas armadas que duraram entre dez a treze anos. Ora a duração de um processo de luta armada provoca evidentemente fenómenos de radicalização” (Cahen, 2020, p. 47).
O colunista André Santana, do site brasileiro de notícias UOL, escreveu no dia 24 de abril de 2024, sobre a importância de se fazer o resgate histórico sobre os 50 anos da Revolução dos Cravos, comemorado nesta data. Seu texto deixa claro que não é a importância do fato em si, que já é importantíssimo, mas de ter em mente a retrospectiva dos fatos que incidiram sobre a efeméride comemorada nesta data: a queda do regime salazarista.
Assim como Cahen, Santana frisou o que estava abalando os alicerces da ditadura dos salazaristas: foram as revoltas em África e na Ásia contra a dominação portuguesa e o modus operandi do Estado Novo forte proposto por António Salazar, que tinha no domínio colonial um de seus alicerces. Santana escreveu que “um dos grandes méritos do resgate histórico desta data é destacar a importância das lutas pela independência das colônias portuguesas africanas para impulsionar o movimento revolucionário em Portugal” (Santana, 24.4.2024).
Nós concordamos com as observações de que a ditadura salazarista foi minada pelas revoltas em seus domínios coloniais. Em contrapartida, com a Revolução dos Cravos, as colônias tiveram seus anseios atendidos, pois logo após o 25 de Abril, o país reconheceu as independências de suas colônias. Segundo Santana,
“entre as inúmeras ações organizadas pela Comissão Comemorativa dos 50 anos da revolução democrática, está um portal rico de textos e informações que contam todo o contexto histórico que culminou com o 25 de Abril e destaca as movimentações de insurgência em Angola, Moçambique, Guiné Bissau e Cabo Verde que abalaram o poderio militar instaurado pelo Estado Novo português. Portugal celebra os marcos para a democracia no país, revisitando o seu passado, restabelecendo os fatos históricos e as narrativas sobre as relações com o continente africano e demais ex-colônias” (Santana, 24.4.2024).
No âmbito da história, porque não, das ciências humanas e sociais, a efeméride “Revolução dos Cravos” deve sempre se fazer presente na memória portuguesa e de suas ex-colônias. Primeiro, pela importância dos fatos que se cruzam para o acontecimento em si, que foi a vitória da democracia e da liberdade contra a opressão da ditadura salazarista que vitimou seus opositores, internos e externos, em segundo lugar, para que estas guerras de libertação, interna e externa, estejam sempre na memória dos herdeiros da democracia em Portugal para que não caiam na tentação de reviver um evento social traumático como é o cerceamento da liberdade de um povo por um ditador que enxerga o mundo pela lente torta do autoritarismo e da supremacia de um povo, uma raça, uma visão de mundo opressor sobre as minorias.
Que o 25 de Abril possa ser comemorado ad aeternum pelo povo português e por todos aqueles que acreditam na liberdade que a democracia traz aos povos.