Nota introdutória
A Reforma Agrária, ocorrida nas zonas rurais do Ribatejo e Alentejo, eclodiu ainda nos finais de 1974 em alguns concelhos do Baixo Alentejo (Costa, 2014, p. 213) e desenvolveu-se sobretudo nos dois anos seguintes. Atingiu o apogeu nos finais da década de 1970, com a criação e pleno funcionamento de mais de meio milhar de empresas coletivas de produção agrícola e pecuária. Porém, ainda nestes anos, devido à forte ofensiva de que foi alvo, entrou numa fase de decadência. Algumas das Unidades Coletivas de Produção (UCP’s) e Cooperativas Agrícolas (CA’s)1 desapareceram ao longo da década de 1980. Muitas outras, apesar das dificuldades crescentes, foram sobrevivendo ao longo dos anos de 1990. E algumas, menos afetadas ou melhor administradas, lograram ultrapassar a entrada no século XXI.
O processo da Reforma Agrária levou também à criação de dezenas de cooperativas de comercialização e de consumo e de organismos de coordenação de nível concelhio, distrital e regional. Originou a realização de doze Conferências da Reforma Agrária e dez Encontros de Culturas de primavera e de outono.
Apesar de cronologicamente circunscrita, a Reforma Agrária provocou um profundo impacto político, socioeconómico e cultural, não apenas na sua vasta área de implementação, mas no País em geral. Teve repercussões no estrangeiro, gerando, em vários países europeus, trabalhos de investigação académica e iniciativas de apoio e solidariedade, concretizadas em visitas turísticas ou de estudo, em reportagens jornalísticas e televisivas e em ofertas pecuniárias (Freire, 2012, p. 155-157). E muitos jovens, nacionais e de outros países, fizeram trabalho voluntário em algumas destas explorações (Vester, 1986, p. 481, 491).
Sendo uma das iniciativas mais controversas do período do Processo Revolucionário em Curso (PREC), gerou apoios entusiásticos, chegando a ser considerada “a mais bela conquista de Abril”. E, em simultâneo, provocou críticas inflamadas, principalmente da parte de proprietários despojados das suas herdades ou receosos da sua perda (Carvalho, 1977).
Representou um fenómeno de grande relevância histórica, que deixou marcas profundas nos muitos milhares de pessoas que nele se viram de algum modo envolvidas. Todas essas organizações, eventos e pessoas individuais, produziram, receberam e conservaram testemunhos do seu quotidiano, dos sacrifícios, obstáculos, apoios, êxitos e fracassos vividos nesses anos. Tais testemunhos, bastante mais isentos e genuínos que as intervenções políticas, normalmente feridas de paixão e parcialidade, representam um espólio fundamental para o estudo e compreensão do Portugal pós-25 de Abril, bem como para a história do nosso século XX.
Com a extinção gradual das UCP’s/CA’s, alguns dos respetivos arquivos começaram a ficar em risco e outros foram mesmo destruídos. Para salvaguardar tão importante memória, a Câmara Municipal de Montemor-o-Novo criou, nos anos 90 do século XX, o Centro de Documentação e Arquivo da Reforma Agrária (CDARA), constituindo assim um conjunto documental integrado no Arquivo Municipal de Montemor-o-Novo.
A opção por Montemor-o-Novo teve em conta a sua localização central, tanto relativamente ao conjunto da área de implementação da reforma agrária, como em relação aos principais centros de investigação universitária do Sul. Também foi tida em conta o importante desempenho do concelho montemorense no referido processo, com a criação de 25 UCP’s/CA’s. Considerou-se, ainda, a vantagem, para o seu estudo, da concentração num único local de toda a massa documental antes dispersa por uma vasta região, mas toda ela referente a um único fenómeno histórico (Fonseca, 2003, p. 20-21).
A análise do conteúdo dos seus diversos fundos documentais e das suas potencialidades para o conhecimento do que foi a Reforma Agrária, constitui o tema central do presente estudo.
1. A Reforma Agrária: um fenómeno de duração efémera
O ambiente de liberdade surgido com o 25 de Abril gera a rápida proliferação dos sindicatos eleitos democraticamente. E embora as organizações de trabalhadores tenham começado pelas zonas industriais e centros urbanos, o Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas será criado ainda em 1974. Os temas abordados nas suas reuniões são, inicialmente, os da modernização da agricultura, da melhor utilização dos recursos naturais e da implementação de novas culturas. Gradualmente, principalmente nas áreas de latifúndio, onde o proletariado agrícola representa o grupo social dominante e onde se regista um desemprego sazonal multissecular, começam a ser abordadas questões mais controversas: o emprego, a contratação coletiva, os salários, o abandono das terras e o absentismo (Barreto, 1987, p. 98-99).
Com a entrada do inverno de 1974, além do desemprego rural característico desta época do ano, sente-se também a falta de trabalho na construção civil. E a emigração, uma saída muito comum nos anos de 1960 e 1970 para superar a miséria nos campos e nos centros urbanos, torna-se mais difícil devido à crise económica que nesse ano deflagra à escala mundial, com sérias repercussões no mundo ocidental (Mateus, 1985, p. 281-300).
De modo a obter trabalho para os milhares de desocupados destas regiões, as comissões sindicais constituídas em cada localidade promovem reuniões com os proprietários rurais. O Ministério do Trabalho, estreitamente identificado com os problemas e reivindicações laborais do setor, envia frequentemente delegados para mediarem as conversações. E nas situações em que se preveem mais dificuldades de entendimento, também é solicitada a colaboração de militares do Movimento das Forças Armadas (Correia, 2004, p. 158-162). Coagidos com a presença de tais elementos, o patronato aceita, numa primeira fase, admitir dez a quinze trabalhadores por herdade. No entanto, na maioria dos casos, despedem-nos ao fim de alguns dias, muitas vezes sem lhes pagarem (Fonseca, 2015, p. 57).
Goradas estas tentativas de resolução do problema laboral agrícola, em finais de 1974 já se começa a falar abertamente de reforma agrária (Barreto, 1987, p. 98-99). Nesse inverno de 1974-1975, alguns alugadores de máquinas e os seus assalariados, passam a explorar por conta própria os latifúndios que lhes estavam “vedados”. Seguem-se-lhes os trabalhadores temporários e, em seguida, juntam-se-lhes os permanentes. Pelo menos no distrito de Beja, a Liga dos Pequenos Agricultores também desempenha “um papel ativo” no processo (Costa, 2014, p. 212, 216).
Inicialmente, o movimento de ocupação caracteriza-se por alguma lentidão, devido à desconfiança e hesitação de muitos trabalhadores, marcados por décadas de dura repressão. Nestas situações, as lideranças locais, constituídas quase sempre por sindicalistas, tomam a iniciativa, incutindo confiança nas populações (Vester, 1986, p. 496). E como até então apenas o Partido Comunista Português (PCP) apresentara algumas propostas relativamente a uma eventual reforma agrária (Cunhal, 1964, p. 39-55), não surpreende que esta força política passe, a breve trecho, a liderar o movimento. Isso não significa, porém, que essa transição de liderança tenha sido em toda a parte pacífica (Drain, 1982, p. 58-59) e que chegue alguma vez a monopolizar todo o processo.
No distrito de Beja, o Movimento de União Cooperativo (MUC), ligado ao Partido Socialista e impulsionado pelo futuro ministro da Agricultura de Mário Soares, Lopes Cardoso, chega a coordenar 53 cooperativas (Costa, 2014, p. 212). E nos restantes distritos, os socialistas dirigiram igualmente algumas unidades de produção agrícola, embora em número menos significativo (Drain, 1982, p. 89-92).
O tema da reforma agrária entra na ordem do dia. Os órgãos de comunicação social e os diferentes partidos não cessam de o abordar, refletindo as opiniões desencontradas que o mesmo suscita na opinião pública. E congrega apoios entusiásticos entre a classe média urbana e os setores intelectuais e artísticos. Além de mobilizar milhares de operários rurais desocupados, atrai muitos outros, provenientes não só da construção civil, mas de outros setores económicos em crise (Barreto, 1987, p. 107-108), concentrados nas zonas industriais de Setúbal e Lisboa, muitos dos quais possuem raízes familiares no Alentejo e Ribatejo, ou mesmo naturais destas regiões.
Entre finais de 1974 e julho de 1975, é tomada apenas 13% da superfície ocupada até janeiro de 1976, correspondente a 156 000 hectares. O processo atinge maior força entre agosto e dezembro deste último ano, com a apropriação de cerca de 85% da área, ou seja, 1 009 000 hectares. E no primeiro mês de 1976 serão ocupados mais 2%, traduzidos em 18 000 hectares de terra (Barreto, 1987, p. 96-97, 104). No seu todo, a zona da reforma agrária abrange 41% da área total de Portugal Continental e 46% da sua área cultivada (Vester, 1986, p. 497).
Divulga-se a ideia, entre os promotores e apoiantes das ocupações, da existência de centenas de milhares de hectares de terras ao abandono, embora para alguns autores esta suposição contenha um certo exagero (Barreto, 1987, p. 102, 180). Já a sabotagem económica praticada pelos latifundiários parece merecer maior consenso (Barros, 1979, p. 71, 159). O deputado do PCP Custódio Gingão, um trabalhador agrícola alentejano desde o início envolvido na reforma agrária, em sessão plenária da Assembleia de República ocorrida a 17 de novembro de 1979, ao justificar as primeiras ocupações de terras, esclarece que “os trabalhadores agrícolas (…) dia e noite guardavam os rebanhos e a fronteira com a Espanha, enquanto as forças armadas guardavam os cruzamentos das estradas que ligam o Sul ao Norte do País”. E acrescenta que “num só dia, em Montemor [o-Novo], foram apreendidas catorze camionetas que transportavam gado ilegalmente”2. Não obstante, alguns estudiosos justificam certas ações dos latifundiários, pelo menos em parte, com a crise económica nacional e o aumento artificial das jornas e salários. São elas: a fuga de capitais, a quebra de investimento e a venda ao desbarato de terras, alfaias e gado (Telo, 2007, p. 118-119).
O decreto-lei n.º 351/75, de 5 de julho, cria os Conselhos (ou Centros) Regionais da Reforma Agrária (CRRA), que desempenharão um papel fundamental na legalização das ocupações. Em seguida, o decreto-lei n.º 406-A/75, de 29 de julho, expropria o conjunto das terras pertencentes a um proprietário cujo total ultrapasse os 50 000 pontos. Estes são calculados de acordo com a especificidade das terras (de sequeiro ou regadio) e ainda com a qualidade dos solos e da água, a localização e a capacidade produtiva, além de outros fatores. Deste modo, as herdades expropriadas passam a pertencer ao Estado, que reconhece as explorações nelas constituídas pelos trabalhadores. O decreto-lei n.º 406-B/75 de 30 do mesmo mês de julho, alarga às UCP’s e CA’s o crédito já antes atribuído aos pequenos agricultores para a aquisição de adubos, sementes e outros fatores de produção. Por sua vz, o decreto-lei n.º 541-B/75, de 27 de setembro, disponibiliza às mesmas unidades de produção agrícola devidamente legalizadas o crédito agrícola de emergência para pagamento de salários.
Estas leis favorecem a intensificação das ocupações de terras a que acima aludimos, ocorridas ao longo de 1975.
Numa primeira fase, após a ocupação das herdades, a gestão é assumida coletivamente pelo plenário dos trabalhadores ocupantes. Este órgão decide quanto aos objetivos da produção, à venda de produtos, ao investimento e à distribuição dos rendimentos. No entanto, para assegurar a gestão corrente, elege um núcleo reduzido de elementos, a Comissão de Trabalhadores. É esta ainda que se responsabiliza pela distribuição diária dos cooperantes e pela utilização das máquinas e alfaias agrícolas, possuindo também funções de representação (Barros, 1979, p.119).
A partir de 1976, as UCP’s e CA’s passam a ter estatutos próprios, pelos quais são criados quatro órgãos sociais: a assembleia geral, a direção, o conselho fiscal e a delegação sindical. A assembleia geral vem substituir, de modo mais formal, os iniciais plenários; a direção toma o lugar da comissão de trabalhadores, e os seus elementos são fixados em número de cinco: presidente, secretário, tesoureiro e vogais. O conselho fiscal, como órgão fiscalizador, exige alguma literacia e por isso é aquele onde a rodagem é menor, devido à ainda elevada taxa de analfabetismo entre os trabalhadores do setor. A delegação sindical tem como função representar os interesses dos associados junto do sindicato e dos organismos dirigentes e de zelar pelo cumprimento das leis laborais (Sá, 1994, p. 196-198).
As novas unidades de produção agrícola, logo nos primeiros tempos, criam outras organizações de tipo cooperativo: as cooperativas de consumo, que proporcionam aos cooperantes e à população em geral produtos mais baratos e de qualidade assegurada, sem recurso ao circuito dos intermediários; cooperativas de comercialização de equipamentos e produtos para a agricultura; e cooperativas de reparação de máquinas agrícolas, vocacionadas para apoiar a manutenção dos parques de máquinas das UCP’s e CA’s.
Todas estas organizações, além de contribuírem para a consolidação das unidades de produção agrícola, vão beneficiar toda a comunidade envolvente. Por exemplo, na União das Cooperativas de Grândola, estão associados, além de 12 cooperativas, 500 agricultores independentes (Vester, 1986, p. 497). A cooperativa de consumo Cravo do Povo, em Foros de Vale de Figueira (Montemor-o-Novo), fundada pela UCP Cravo Vermelho, admite como cooperantes todos os habitantes da freguesia interessados, independentemente de trabalharem ou não na UCP (Fonseca, 2015, p. 64).
Além disso, a própria UCP Cravo Vermelho cede frequentemente parcelas de terra a pessoas da aldeia dos Foros que trabalham em outras atividades, mas que necessitam de uma horta para ajudar ao sustento familiar. Disponibiliza também tratores, ceifeiras e veículos de transporte a cooperantes e pequenos agricultores. Oferece lenha gratuitamente a famílias carenciadas e dispensa-a, mais barata, aos cooperantes, pelos quais também distribui dezenas de hortas. Vende a carne produzida nas herdades da UCP aos seus associados e à população da aldeia, a preços económicos. E disponibiliza a sede social às organizações recreativas e desportivas locais, para reuniões e festas (Fonseca, 2015, p. 65).
Estas práticas e outras semelhantes são comuns à generalidade das UCP’s e CA’s, acabando por beneficiar uma comunidade muito mais ampla que a dos seus colaboradores diretos.
A reforma agrária granjeia opositores desde a primeira hora, como referimos. No entanto, o movimento de contestação apenas ganha verdadeira força com a criação, a partir de abril e maio de 1975, da Confederação dos Agricultores de Portugal (Telo, 2007, p. 121) vulgarmente conhecida pela sigla CAP. Inicialmente, esta organização congrega, sobretudo, grandes proprietários e empresários agrícolas. Mas em pouco tempo alarga a sua base social a pequenos e médios agricultores e rendeiros, seareiros e manobradores de máquinas, principalmente do Norte e Centro, mas também alguns do Sul. Entre estes últimos contam-se os que não se sentiram beneficiados com a reforma agrária, ou se acharam prejudicados por ela.
Enquanto as UCP’s e CA’s noticiam aumentos consideráveis da produção, melhoramentos técnicos, investimentos, acréscimo de cabeças de gado, introdução de novas culturas e alargamento das áreas cultivadas (Soeiro, 2004, p. 222), a CAP acusa-as de diminuição da produtividade, de destruição de infraestruturas e de incompetência no tratamento do gado e dos produtos semeados (Barreto, 1987, p. 236).
Entretanto, esta confederação patronal promove numerosas iniciativas, como comícios e concentrações, para as quais mobiliza milhares de participantes. As barragens de estradas que promoveu a 24 de novembro de 1975 em Rio Maior e outras localidades, têm sido consideradas determinantes para a reviravolta militar do dia seguinte (Barreto, 1987, p. 188, 309).
Por seu turno, a viragem no rumo político nacional decorrente do golpe militar de 25 de Novembro alterará a política governamental sobre a reforma agrária. Em janeiro de 1976, sob a égide do Presidente da República, general Costa Gomes, é assinado um acordo entre os partidos representados no VI Governo Provisório (Partido Socialista, Partido Popular Democrático e Partido Comunista Português), intitulado Princípios fundamentais a respeitar na prossecução da reforma agrária na zona de intervenção.
Esta “plataforma” ou “pacto”, como é então vulgarmente designado, mantém as leis promulgadas em 1975 acima mencionadas. Demarca a Zona de Intervenção da Reforma Agrária (ZIRA), pelo decreto-lei n.º 236-B/76. Dela fazem parte os distritos de Beja, Évora, Portalegre, Setúbal; a parte sul dos distritos de Castelo Branco e de Santarém; dois concelhos do distrito de Lisboa, Vila Franca de Xira e Azambuja; e ainda as freguesias algarvias dos concelhos de Monchique, Silves, Loulé e Alcoutim, confinantes com o distrito de Beja (Ferreira, 1994, p. 122).
De acordo com a necessidade de instalação de trabalhadores sem terra prevista no “pacto”, são distribuídas parcelas a centenas de seareiros para as culturas de primavera. Devolvem-se aos seus donos ou antigos rendeiros propriedades consideradas indevidamente ocupadas (Almeira, 2006, p. 240-243). E estabelecem-se as regras para a gestão e funcionamento das UCP’s e CA’s já acima descritas.
De acordo com legislação subsequente à assinatura da “plataforma”, é proibida a ocupação de mais terras, mesmo dentro da área da ZIRA. O movimento apoderara-se, entretanto, de um total de 1 182 924 hectares, quando a área expropriável era de 1 600 000 hectares (Barros, 1979, p. 41, 88).
A Lei de Bases da Reforma Agrária, n.º 77/77, de 29 de setembro, vulgarmente conhecida por “Lei Barreto”, mas sobretudo a forma abusiva como foi aplicada, vai afetar profundamente as 550 UCP’s e CA’s entretanto criadas na ZIRA. Amplia a área das reservas, o que significa “o verdadeiro golpe de misericórdia a lançar às cooperativas”; introduz um método de cálculo mais favorável ao reservatário; e alarga o leque de entidades com direito a recebê-las (Almeida, 2006, p. 241). Tal direito, antes limitado a quem explorasse diretamente a terra ou dela tirasse, em exclusivo ou predominantemente, os seus meios de subsistência, passa a poder ser requerido por qualquer proprietário, sem ter em conta o anterior absentismo, que representara um elemento essencial de legitimação das ocupações (Barros, 1979, p. 88-89).
Contudo, o que António Barreto pretende é de facto alterar a estrutura agrícola alentejana. Segundo as suas próprias palavras, “o objetivo fundamental desta política agrícola [é] o da consolidação de uma sociedade rural modernizada, concretizando-se num tecido social complexo e diversificado” (Almeida, 2006, p. 243). Nesse sentido, e de acordo com os objetivos comunitários relativos ao meio rural, e numa perspetiva futura de adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia (CEE), projeta baixar a população ativa na agricultura e canalizá-la para a recuperação de emprego na indústria, na construção civil e nos serviços. Acusava ainda a coletivização agrária de ter sido responsável pelo “fomento do desemprego estrutural, camuflado de subemprego”, por seu turno “disfarçado com a aplicação do crédito agrícola de emergência”, que se convertia, em muitos casos, num verdadeiro “subsídio de desemprego” (Almeida, 2006, p. 242).
Em seguida, a Lei n.º 88/77, de 26 de outubro, estabelece as normas sobre a concessão de indemnizações aos ex-titulares de bens expropriados. Toda esta legislação vai acelerar o processo de entrega de reservas, algumas delas demarcadas com base em “documentos falsos” (Soeiro, 2004, p. 222).
Em sessão plenária da Assembleia da República de 15 de fevereiro de 1979, o deputado Custódio Gingão, já antes referido, denuncia que “o Governo, ao utilizar a Lei Barreto nos moldes em que o faz, tem por objetivo mal disfarçado a liquidação do maior número possível de UCP’s / Cooperativas e a destruição da Reforma Agrária”. Esclarece que tal ação, provocara já “a liquidação de quase 40” dessas unidades agrícolas e lançara consequentemente no desemprego “mais de 13.000 trabalhadores”. Denuncia as irregularidades nos processos de entrega das reservas, “em que a legalidade democrática é claramente ofendida”. Acusa os funcionários do Ministério da Agricultura e Pescas (MAP) de não respeitarem os prazos nem a forma de comunicação oficial das entregas às direções das UCP’s. Cita exemplos de UCP’s /CA’s que foram desapossadas das suas sedes sociais, de terrenos «onde os trabalhadores tinham feito regadios» e de instalações construídas pelos mesmos para albergar o gado. E acusa a Guarda Nacional Republicana de prender operários agrícolas, espancar homens e mulheres, proceder a “interrogatórios de tipo pidesco” e de “agredir dirigentes sindicais”3.
Esta onda de restituições e a vaga contestatária que a apoia e acompanha, encontram ambiente favorável nos VI, VII e VIII Governos Constitucionais da Aliança Democrática (AD), em funções entre 3 de janeiro de 1980 e 8 de junho de 1983, bem como na maioria parlamentar que lhe serviu de apoio (Reis, 1992, p. 63-80).
Em consequência de tal ofensiva, em finais de 1983, o total de terras retiradas aos trabalhadores atinge os 653 000 hectares, correspondentes a 58% da área abrangida pela Reforma Agrária, com a consequente destruição de 195 UCP’s / CA’s. As cabeças de gado tomadas rondavam as 241 600, incluindo bovinos, ovinos, suínos e caprinos. Além disso, os tribunais tinham, até essa data, emitido 250 acórdãos favoráveis aos trabalhadores, respeitantes a ilegalidades cometidas nas demarcações e entrega de reservas, que o Ministério da Agricultura fingia ignorar4. Em fevereiro de 1987 essas decisões judiciais ascendem já a 3095, sem que qualquer delas tenha sido atendida.
Entre 1983 e 1985, com a entrada em vigor do governo do chamado “Bloco Central” (Partido Socialista e Partido Social Democrata), ocorre um abrandamento no ritmo das desanexações, o que permite a sobrevivência das UCP’s/CA’s. que conseguem escapar ao desmantelamento do período anterior (Vester, 1986, p. 492).
No entanto, a vida destas unidades de produção, muitas delas já bastante reduzidas relativamente à superfície inicial, torna-se cada vez mais difícil. Como já não necessitam de tantas máquinas, alugam-nas de modo a obterem alguma receita. Para manter o gado que lhes resta, quando é possível, alugam ou compram terrenos para pastagens ao proprietário que as recebera de volta. E alguns destes reservatários também lhes alugam terra para semear.
Porém, a ofensiva dos anos anteriores e os milhares de desempregados que originara, gera a incerteza e o receio do futuro em muitos outros, que procuram ocupações alternativas ou decidem emigrar. Os mais jovens e os operários especializados, como os manobradores de máquinas, são os primeiros a despedirem-se, o que provoca uma subida acentuada do nível etário dos cooperantes e uma carência de mão-de-obra especializada. Para evitar mais desemprego, algumas direções optam pela rotatividade dos trabalhadores, pelo menos na época baixa das tarefas agrícolas (Fonseca, 2015, p. 69-70).
Em setembro de 1989, apenas restam 216 UCP’s, explorando à volta de 225 000 hectares. E nesse mesmo ano, a 2.ª revisão constitucional retira do seu texto a referência expressa à Reforma Agrária e anula o princípio da irreversibilidade das nacionalizações (Rodrigues, 2015, p. 339-340).
Perante o acumular de dificuldades, umas mais cedo que outras, nomeiam uma comissão liquidatária e decidem-se pela extinção.
2. O Centro de Documentação e Arquivo da Reforma Agrária (CDARA)
O CDARA foi criado com o objetivo de recolher, organizar e disponibilizar ao público a maior quantidade possível de documentação relacionada com o processo da Reforma Agrária, provenientes de toda a região onde decorreu, como referimos inicialmente.
O Centro de Documentação consiste numa biblioteca temática, constituída por livros, revistas, jornais, textos policopiados, panfletos, recortes de imprensa, folhetos, cartazes, galhardetes, autocolantes, fotografias, gravações sonoras e diferentes objetos pertencentes às UCP´s/CA’s, muitos provenientes de ofertas de outros países europeus.
O Arquivo, a parte fisicamente mais extensa, guarda fundos documentais oriundos de diversas organizações da Reforma Agrária, o mais importante dos quais diz respeito aos arquivos provenientes das UCP’s/CA’s extintas. Embora estas unidades de exploração tivessem ultrapassado as 550, até ao momento apenas foi possível recolher a documentação de 45, assim distribuídas: 22 do distrito de Évora, oriundas dos seguintes concelhos: doze de Montemor-o-Novo, sete de Évora, quatro de Mora, igual número de Viana do Alentejo, três de Arraiolos e dois de Redondo. Seis do distrito de Santarém, todas do concelho de Coruche. Quatro do distrito de Portalegre, todas do concelho de Ponte de Sor. Duas do distrito de Beja, uma deste concelho e outra do da Vidigueira. E uma do distrito de Setúbal, concelho de Alcácer do Sal.
Muitos arquivos, passados os cinco anos de conservação obrigatória, foram inutilizados pelas respetivas comissões de extinção, como vimos. Outros, por incúria, inércia, desconhecimento da existência do Arquivo da Reforma Agrária, desconfiança ou regionalismo/bairrismo, permanecem em condições de conservação deficientes, sujeitos aos malefícios do tempo, correndo o risco de desaparecer. No entanto, o Arquivo Municipal continua, num esforço incansável, a procurar vencer resistências e a acolher, tratar e divulgar os fundos que vão sendo disponibilizados.
Apesar das limitações, os que estão já disponíveis para consulta, representam um acervo precioso para o conhecimento do fenómeno da Reforma Agrária.
O mais rico e abundante é o Fundo das UCP’s/CA’s6. Para arrumar as séries e subséries dos documentos de cada unidade de exploração, foi constituído o seguinte quadro de classificação, de cujo conteúdo faremos uma explicação sucinta:
Constituição e regulamentação - além das escrituras de constituição, inclui estatutos, alteração de estatutos e regulamentos.
Órgãos da UCP / CA - contém atas das reuniões das assembleias gerais, das direções e dos conselhos fiscais.
Serviços administrativos - essencialmente constituídos por correspondência recebida e expedida, trocada com organismos ligados ao poder central, às câmaras municipais, aos sindicatos, aos organismos de coordenação da reforma agrária e a fornecedores e clientes.
Cooperantes - geralmente uma das séries documentais mais extensas e esclarecedoras da atividade e evolução do número de trabalhadores da respetiva unidade de exploração. Inclui listagem de cooperantes; folhas de presença; justificação de faltas; folhas de Caixa de Previdência e da Segurança Social; pedidos de admissão; cartas de despedimento; contactos com o Ministério do Trabalho.
Inventário de bens - móveis, como máquinas agrícolas e viaturas; e imóveis, como herdades e instalações agropecuárias. Permite acompanhar a evolução das superfícies de exploração.
Contabilidade - também uma das séries mais extensas. Inclui documentos de receita e despesa; tabelas de preços de produtos agrícolas; empréstimos bancários; impostos sobre a indústria agrícola; seguros e contratos de arrendamento, compra e venda, entre outros.
Atividade agrícola - contém o tipo e a quantidade das diversas produções agrícolas, incluindo culturas de sequeiro e de regadio; resultados das análises de solos; planos de sementeiras de Primavera e de Outono; registos de reparação de viaturas agrícolas.
Obras - abertura de furos; construção de albufeiras e barragens; construção, ampliação e reparação de instalações agropecuárias e de vedações e cercas para o gado; arranjo de caminhos nas herdades e suas zonas de acesso.
Contencioso - inclui diversos processos judiciais incluindo os de entrega de reservas, com as respetivas contestações e os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo.
Contactos com outras entidades - estabelecidos principalmente com os sindicatos agrícolas e os secretariados concelhios e distritais das UCP’s /CA’s.
Diversos - contém documentos soltos, Diários da República, dados do INE, boletins informativos, folhetos, entre outros.
O segundo Fundo em termos de extensão e riqueza informativa é o das Conferências da Reforma Agrária7. Ocorreram doze destas amplas reuniões, com representação de quase todas as unidades de exploração agropecuária existentes na ZIRA. Tiveram lugar em Évora, a primeira entre 30 e 31 de outubro de 1976 e a última de 30 de setembro a 1 de outubro de 1989.
Sem descurar a importância das intervenções orais nelas proferidas e o relato das respetivas conclusões, os documentos mais importantes são, sem dúvida, os inquéritos previamente entregues a cada UCP/CA. Este instrumento constitui a base de trabalho das conferências, do qual são posteriormente extraídas as conclusões.
Permitem-nos conhecer, em pormenor e para cada unidade de exploração, a evolução da sua atividade ao longo das doze conferências: a dimensão inicial e a diminuição gradual das superfícies de cada exploração; do número de trabalhadores efetivos e eventuais; do parque de máquinas; dos investimentos; das sementeiras e colheitas; da evolução da produtividade e da rentabilidade dos solos; do impacto das entregas de reservas e dos maus anos agrícolas na produção; do aumento, nos primeiros tempos, do número e diversidade de cabeças de gado, bem como da sua diminuição gradual; além da situação financeira. Nesta última rubrica, são denunciadas com frequência as dívidas do MAP às UCP’s/CA’s e as dificuldades crescentes destas no acesso ao crédito.
Tais inquéritos fornecem-nos ainda elementos sobre equipamentos adicionais criados, como adegas, lagares de azeite, lavandarias, cantinas, lojas, cooperativas de consumo e de comercialização, oficinas de reparação de máquinas e de veículos automóveis, creches e infantários, salas de convívio e de espetáculos, que além dos cooperantes servem toda a comunidade envolvente, de que demos alguns exemplos mais acima. Algumas criaram mesmo grupos corais, ranchos folclóricos e conjuntos musicais. Esclarecem-nos igualmente sobre o auxílio disponibilizado por cada UCP/CA às comissões de moradores e aos lares de idosos das comunidades em que estão inseridas, através do empréstimo de máquinas, tratores, alfaias agrícolas e instalações, além da oferta de jornadas de trabalho voluntário, para pequenas obras ou para a apanha de azeitona.
Os problemas internos, naturalmente existentes nestas explorações envolvendo centenas de cooperantes, acentuam-se inevitavelmente na mesma medida do acréscimo das dificuldades (Nave, 1990, p. 155-205). São denunciados dirigentes com comportamentos considerados antidemocráticos e comparáveis aos dos antigos feitores; direções pouco empenhadas ou que se demitem antes de terminado o mandato; casos de indisciplina no trabalho; ausências injustificadas; atritos entre cooperantes; falta de planificação; incúria na utilização de máquinas e viaturas; reivindicações salariais incomportáveis; resistência às propostas inovadoras dos técnicos, relativamente a práticas agrícolas; e a tendência de algumas destas explorações para se isolarem e não cooperarem com as congéneres ou com os organismos de coordenação.
À medida que avança o processo de entrega de reservas, surgem relatos crescentes dos episódios de repressão por parte das forças policiais, com insultos, espancamentos de homens e mulheres, prisões e até ocupações policiais de vilas e aldeias, por vezes durante vários dias. O caso mais dramático ocorreu em Montemor-o-Novo, a 27 de setembro de 1979, com o disparo de tiros na herdade de Vale de Nobre, pertencente à UCP Bento Gonçalves, que atingiram mortalmente dois trabalhadores agrícolas, António Maria Casquinha, de 17 anos e João Geraldo, de 57, ambos da freguesia do Escoural, pertencente ao mesmo concelho (Rodrigues, 2015, p. 136).
Nas respostas aparecem denúncias de ocupação das sedes das UCP’s/CA’s, de demarcações de reservas acima da pontuação legalmente determinada, da retirada das melhores terras, em muitos casos com frutos pendentes, e da sua entrega a absentistas, a funcionários do MAP, a agricultores sem vínculo jurídico à propriedade recebida, ou a pessoas sem qualquer ligação à atividade agropecuária. Passam também a surgir, com frequência crescente, relatos de violações de acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, favoráveis aos trabalhadores. Todas estas denúncias, longe de serem generalizadas e abstratas, enunciam, nas respostas aos inquéritos, nomes, locais e datas.
Outro Fundo importante diz respeito à atividade sindical8. O Arquivo da Reforma Agrária alberga o arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas do Distrito de Portalegre, com as datas limite de 1975-1991; o dos Trabalhadores Agrícolas do Distrito de Évora, dos anos de 1977-1986; o dos Trabalhadores Agrícolas do Distrito de Beja, de 1974 a 1990. E ainda a Delegação de Montemor-o-Novo do referido Sindicato do Distrito de Évora, entre 1986 e 1993. Este espólio contém o número de sindicalizados de cada distrito distribuídos por concelhos, e dentro de cada um por freguesias, incluindo o nome, a idade, o género, a data da sindicalização e o local de trabalho.
Curiosamente, alguns sindicatos, antes de entregarem os seus arquivos, tiveram o cuidado de arrancar as fotografias das fichas das mulheres sindicalizadas, mais uma prova da falta de confiança na instituição de destino. Ao contrário do que se poderia pensar, os inscritos não são apenas trabalhadores da reforma agrária. Embora estes sejam a maioria, há ainda os empregados em empresas agrícolas de pequena e média dimensão.
Além das valiosas fichas de sindicalizados, cada estrutura sindical contém legislação laboral, sobretudo referente à atividade rural; documentação relacionada com a luta pela contratação coletiva; correspondência com UCP’s/CA’s e respetivas comissões sindicais, com os centros regionais e locais da reforma agrária e com o Ministério do Trabalho; e numerosas atas de reuniões sindicais, onde os presentes, sindicalizados ou não, expõem os seus problemas laborais, as suas aspirações e reivindicações, variáveis consoante laboram no setor privado ou cooperativo.
O Fundo referente aos dez Encontros de Culturas das UCP’s/CA’s9, principia com os textos e conclusões do encontro de outono/inverno de 1978-1979 e termina com os de 1986, este sobre as culturas de primavera. Nestas assembleias, os delegados da maior parte das explorações debatem numerosos assuntos: como produzir mais e melhor; a ampliação da área cultivada; a seleção dos solos; a melhor forma de proceder aos alqueives; a seleção de sementes; a escolha de adubos; a manutenção de máquinas; o tratamento de olivais, pomares e vinhas; e o cultivo de forragens, indispensáveis ao desenvolvimento da pecuária. Em todos os Encontros é inevitavelmente abordada e questão dos atentados à reforma agrária, com denúncias de ilegalidades e atos de violência praticados durante as entregas das reservas, o estado de abandono de muitas das herdades devolvidas, bem como as dificuldades económicas crescentes das unidades de produção afetadas.
O Fundo respeitante às cooperativas de consumo e comercialização10 contém o espólio de nove destes estabelecimentos, abrangendo um arco temporal de 1976 a 2011, respeitantes aos concelhos de Évora, Viana do Alentejo, Redondo e Montemor-o-Novo. Algumas destas cooperativas de comercialização evoluíram a partir dos ex-Grémios da Lavoura, como sucedeu com a de Ponte de Sor.
O Arquivo contém ainda o Fundo do Centro Regional da Reforma Agrária de Beja11. Os Centros Regionais da Reforma Agrária (CRRA) de Évora, Beja, Elvas, Alcácer do Sal, Santarém e Lisboa foram criados pelo Ministério da Agricultura entre abril e julho de 1975. O seu papel no avanço e legalização da ocupação de terras já foi mais acima mencionado. Funcionavam como “organismos paralelos” (Ferreira, 1994, p. 121) às estruturas tradicionais, consideradas incapazes de assumir as tarefas impostas pela nova dinâmica introduzida pela reforma agrária.
Estes Centros Regionais tinham poderes descentralizados, através dos secretariados concelhios, sendo incluído neste Fundo o Secretariado das UCP’s/CA’s de Montemor-o-Novo12. Chegaram a existir instituições congéneres numa boa parte dos concelhos da reforma agrária, embora longe da sistemática cobertura acalentada pelos organizadores da 2.ª Conferência da Reforma Agrária (Rodrigues, 2015, p. 95). Ultrapassada a fase das ocupações, passaram a exercer essencialmente uma atividade de coordenação das unidades da reforma agrária, a prestar apoio técnico e contabilístico, a promover cursos de especialização e visitas de estudo, e a representar as UCP’s/CA’s junto de entidades oficiais. A documentação, tanto do Centro Regional como do Secretariado Montemorense ilustram essa atividade. O Fundo contém ainda numerosa correspondência e dados estatísticos sobre desemprego agrícola.
Notas finais
A Reforma Agrária, uma consequência direta da Revolução de 25 de Abril de 1974, representou um fenómeno socioeconómico, político e cultural marcante, abrangendo uma área superior a 40% do território de Portugal Continental. Suprimiu o desemprego crónico sazonal nos campos do Sul e contribuiu para uma melhoria assinalável das condições de vida de muitos milhares de trabalhadores. Gerou bastantes postos de trabalho indiretos, devido ao aumento do poder de compra na região. Beneficiou diversos setores da vida económica, social e cultural de uma larga camada da população não envolvida diretamente no processo. E gerou um amplo movimento de solidariedade, que ultrapassou largamente as fronteiras do território nacional, levando à criação, em vários países europeus, de organizações de apoio (Rodrigues, 2015, p. 133).
Porém, ultrapassado o período revolucionário e perante a perspetiva de adesão à Comunidade Económica Europeia, incompatível com a nacionalização da propriedade agrícola e a sua exploração em regime coletivista, é produzida legislação no sentido do seu progressivo desmantelamento. Sofrendo embora a forte resistência dos trabalhadores e das estruturas políticas e sindicais que os apoiam, a liquidação da reforma agrária é apoiada pelas camadas sociais diretamente afetadas pelas ocupações, pelas associações patronais do setor e por muitos pequenos e médios agricultores. Estes setores usufruem do apoio dos partidos políticos de direita e de alguns setores do Partido Socialista.
A partir de então, a Reforma Agrária, apesar da sua forte resiliência, começou a ser seriamente afetada pela entrega de reservas aos antigos proprietários, mas também a muitos outros requerentes, num processo pleno de irregularidades e pautado por episódios de acentuada violência.
À medida que as Unidades Coletivas de Produção e as Cooperativas Agrícolas iam sendo extintas, por inviabilidade económica e carência de mão-de-obra, os seus preciosos arquivos, armazenados quantas vezes em condições adversas à sua conservação, começaram, ao fim dos cinco anos de conservação legalmente previstos, a ser destruídos por iniciativa das respetivas comissões liquidatárias.
Para preservar o que subsistia de um espólio tão extenso, foi criado, na década de 90 do século XX, o CDARA, que ao longo dos anos tem desenvolvido um esforço incansável pela recolha, tratamento, inventariação e classificação da documentação proveniente, não apenas das unidades de exploração agrícolas extintas, mas também dos sindicatos dos trabalhadores rurais, dos centros regionais e locais da reforma agrária e das cooperativas de consumo e de comercialização criadas na área de intervenção da ZIRA.
O objetivo deste trabalho, após uma breve abordagem ao processo da Reforma Agrária, foi a divulgação da existência do Centro de Documentação e Arquivo da Reforma Agrária e deste modo sensibilizar o público em geral, e em particular os investigadores, para as suas potencialidades, com vista a um conhecimento aprofundado e rigoroso de um fenómeno singular, da maior importância para a compreensão da história portuguesa do pós-25 de Abril de 1974.