Introdução
A produção, transformação, venda e consumo de cereais foi uma das bases das estruturas agrárias portuguesas, constituindo algo secular, atendendo a que o pão foi a base do regime alimentar da população portuguesa, com matizes regionais1, numa dominância que é multissecular nos espaços insulares e no território continental, milenar. Na Época Moderna, as insuficiências nas conexões internas e externas levaram a que o abastecimento de cereais fosse constantemente vigiado, no entanto foi a partir do século XVIII que as dinâmicas do mercado possibilitaram melhorias na comercialização e na expansão do mercado. Ainda que esta dimensão seja evidente, a incapacidade de atender às necessidades e a dependência foi uma das realidades transversais às comunidades, nomeadamente, às sociedades insulares.
É com esta premissa de aumentar a produção de cereais que foram promulgadas leis protecionistas nos finais do século XIX, indicativas da constante procura em corresponder às carências alimentares, expressando-se na subsidiação política da cerealicultura, consequência da Grande Guerra e que permanecerá até 1923. Sendo algo que se pretendia concretizar em todo o espaço nacional, em sentido idêntico apontam as medidas tomadas para os territórios adjacentes.
Os ensaios autárcicos da Ditadura Militar, com diversas expressões institucionais e legislativas, deram continuidade esta questão. Num tempo em que a produção de cereais ganhou preponderância no cerne das políticas públicas, com maior expressividade na Campanha do Trigo, as movimentações suscitadas pelo intervencionismo estatal nesta esfera traduziram-se nos Açores numa mobilização das elites económicas, como as associações comerciais e os sindicatos agrícolas. Que razões explicam esse tipo de ação pública? Seriam a expressão insular de uma tendência nacional dos interesses organizados em lutar pela preservação da sua preponderância socioeconómica? Foi a fragilidade dos atores políticos num período de transição que permitiu que essas reivindicações se exacerbassem? Foram os particularismos dos Açores que ditaram que a voz dos moageiros fosse ouvida com maior vivacidade? São estes os quesitos que nortearam a pesquisa efetuada e aqui apresentada, conferindo ao referido arquipélago um lugar nos estudos sobre o problema da produção cerealífera, cujo enfoque se tem centrado, sobretudo, no espaço metropolitano.
Recorrendo à análise da legislação, em paralelo com jornais e periódicos locais e documentação manuscrita situada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, o presente artigo2 pretende conceber uma análise face à sua situação enquanto produtor e consumidor de cereais, e quais os reflexos sociais destas dimensões. O arco cronológico em causa parte do fim do regime do “pão político”, em 1923, até à criação de soluções institucionais, a partir de 1932, que abriram caminho para o reforço da presença e controlo estatal no setor dos cereais, além da uniformização da política insular de produção de trigo.
Os cereais na política agrária em Portugal: objetivos e estratégias (c. 1890-c. 1930)
Durante a segunda metade do século XIX podem ser mapeadas alterações a um nível global que levaram a novas abordagens à situação agrícola portuguesa. Foi sempre necessário importar trigo, mas a partir de meados dos anos 1860 os interesses dos grandes proprietários alentejanos viram-se afetados pela competitividade do Império Russo no que toca à importação feita do trigo cultivado no Cáucaso. A recomposição dos padrões de comercialização e do mercado internacional de cereais fez-se sentir com maior incidência com a cimentação dos EUA como um gran de exportador após o fim da Guerra de Secessão, em 1865. Consequentemente, “os cereais e a farinha americanos mais baratos começaram a substituir os da Rússia enquanto base do alimento da classe trabalhadora urbana da Europa” (Nelson, 2022, p. 192) e que se verificou em Portugal. Esta predominância da entrada do trigo norte-americano, que em alguns anos superou as importações vindas de Inglaterra e de Espanha e, depois dos anos 1880, de países como Argentina e Roménia (Quadro n.º 1), levou a exigências tendentes a restringir os direitos de importação. Portanto, no cerne da questão cerealífera residiu o problema que se concentrava nos impactos que a dependência tinha sobre a balança de pagamentos.
Anos | Argentina | Espanha | EUA | França | Inglaterra | Roménia | Rússia |
---|---|---|---|---|---|---|---|
1865 | * | 8 247 171 | 5 101 084 | 7 962 277 | 3 188 791 | * | 2 870 734 |
1866 | * | 10 969 997 | 1 0812 807 | 5 267 867 | 6 920 078 | * | 4 195 133 |
1867 | * | 647 621 | 1 707 250 | 391 855 | 1 893 837 | * | 1 697 325 |
1868 | * | 956 526 | 2 202 273 | 258 248 | 1 679 245 | * | 23 564 143 |
1869 | * | 816 108 | 2 833 041 | 7 745 738 | 1 500 904 | * | * |
1870 | * | 3 706 579 | 15 647 303 | 484 288 | 1 231 067 | * | 9 010 190 |
1871 | * | 3 377 905 | 15 153 575 | 32 998 | 920 595 | * | * |
1872 | * | 6 926 075 | 7 538 116 | 122 083 | 214 314 | * | 1 259 622 |
1873 | * | 7 369 255 | 4 888 878 | 62 241 | 1 133 452 | * | 987 325 |
1874 | * | 3 871 635 | 9 600 310 | 425 896 | 119 149 | * | 1 117 634 |
1875 | * | 3 539 709 | 32 116 364 | 2 515 955 | 474 321 | * | 11 912 565 |
1876 | * | 3 073 072 | 39 613 456 | 1 260 361 | 515 880 | * | 1 370 975 |
1877 | * | 2 794 000 | 22 018 839 | 635 392 | 148 006 | * | * |
1878 | * | 1 360 820 | 23 362 953 | 300 439 | 43 132 | * | * |
1879 | * | 632 425 | 79 324 331 | 514 470 | 3 472 197 | * | 1 636 243 |
1880 | * | 721 632 | 65 425 551 | 33 350 | 2 363 171 | * | 1 851 309 |
1881 | * | * | 74 330 800 | * | * | * | * |
1882 | * | 474 365 | 86 491 682 | 348 823 | 6 637 783 | * | 5 583 785 |
1883 | * | 47 460 | 96 297 800 | 155 130 | 663 780 | * | 538 380 |
1884 | * | * | * | * | * | * | * |
1885 | * | 11 496 | 9 629 7808 | 1 551 279 | 96 086 | * | * |
1886 | * | * | * | * | * | * | * |
1887 | * | 107 635 | 118 791 283 | 7 762 | 4 558 683 | 1 722 229 | - |
1888 | 35 492 | 30 998 | 83 302 064 | 2 952 | 3 985 132 | 1 212 667 | 1 3916 435 |
1889 | * | 4 939 | 57 179 251 | 4 874 | 6 726 960 | * | 1 1852 337 |
1890 | * | 519 165 | 86 757 680 | 3 551 | 5 591 647 | * | 1 646 127 |
1891 | * | 30 | 93 237 396 | * | 5 541 772 | 742 755 | 11 871 683 |
1892 | * | 105 | 112 093 609 | 1 598 | 75 948 | * | * |
1893 | 1 176 002 | * | 136 161 039 | 10 830 | 3 257 698 | 3 726 641 | 13 031 |
1894 | 431 091 | * | 10 5819 859 | 40 | 29919 | * | * |
1895 | 2 245 888 | 109 201 | 119 096 477 | 1 246 | 803 896 | 3 545 819 | 11 061 519 |
1896 | 1 842 760 | 461 253 | 65 545 294 | 4 332 | 1 413 117 | 940 745 | 4 697 858 |
1897 | 1 191 360 | 244 | 45 615 726 | 1 135 439 | 328 324 | 10 927 557 | 79 383 093 |
1898 | 482 002 | 60 498 | 67 844 335 | * | 260 885 | * | * |
1899 | 3 510 097 | - | 89 711 611 | * | 1 650 | * | 290 0725 |
1900 | 14 555 675 | 50 372 | 113 610 728 | 5 624 | 1 486 374 | 323 428 | * |
Fontes: Mapas Gerais do Comércio de Portugal, Estatística Geral do Comércio de Portugal e Estatística Comercial.
Iniciou-se um amplo movimento de protesto, congregado na Real Associação Central de Agricultura Portuguesa, que levou à apresentação de petições de lavradores e à organização de dois grandes congressos agrícolas, em 1888 e 1889. A reação da lavoura teve correspondência positiva na primeira lei protecionista, publicada em 15 de julho de 1889. Esta “inaugurou a época do moderno protecionismo cerealífero em Portugal e cujos princípios […] inspiraram quase toda a legislação posterior até meados dos anos 70 [do século XX]” (Amaral, 1994, p. 13).
A lei de 14 de julho de 1899, concebida “num espírito diferente” (Reis, 1993, p. 59) da anterior, obteve uma base sólida para o protecionismo trigueiro com a determinação de que a entrada do trigo exótico não seria autorizada enquanto não tivesse sido adquirido todo o trigo nacional. A esperança programática desta lei “era de ver a seara nacional de trigo alargada, a estancar o caudal da importação” (Caldas, 1991, p. 419), controlando os canais de circulação do trigo desde as alfândegas até às moagens, montando um espartilho fiscalizador para que tal intento pudesse ser concretizado com sucesso. Como Henrique de Barros asseverou, “a lei foi saudada com alegria pela lavoura que, graças a ela, viu avolumados os seus réditos”, daí o apodo de Lei Benemérita; já a “massa consumidora das cidades e dos centros industriais não apreciou, todavia, os seus efeitos” (Barros, 1941, p. 118), cognominando-a como a Lei da Fome. A legislação foi sendo ajustada e reforçada ao longo dos anos e, entre 1892 e 1923, foram elaboradas 41 tabelas de rateio de trigo exótico, cujo número de fábricas inscritas conheceu o seu maior incremento entre 1908 e 1910.
O tabelamento do preço das farinhas e a criação de uma taxa da moagem gerou concorrência entre os industriais, levando à formação de grandes unidades fabris. O que existia era “um poderoso núcleo moageiro, que, curiosamente, agia e engordava nas malhas de uma apertada regulamentação estatal que, através do rateio do grão exótico, lhe procurava domesticar as ambições desmesuradas” (Ferreira, 1995, p. 15). De um ponto de vista tecnológico, a acumulação de capitais destas novas fábricas permitiu a introdução de técnicas mais avançadas, com uma crescente capacidade de farinação.
Foi com a Primeira Guerra Mundial que o poder da moagem cresceu ainda mais, acelerado depois do início do regime do “pão político”, em 1916. Esta medida estava centrada na obrigatoriedade de manifesto do trigo nacional por parte dos produtores e posterior venda às fábricas de moagem matriculadas, com base no tabelamento de preços e o Estado importava trigo para o revender aos moageiros a preços satisfatórios. Examinando a ação governativa, as medidas tomadas durante o conflito tinham como horizonte de expectativas a contenção do preço do trigo português e a subsidiação do trigo importado, objetivando um embaratecimento do pão. Algumas análises subsequentes afirmavam que “em vez do regime do pão-político se tivesse adotado o do pão-ouro, isto é, pão vendido por valores atualizados, como fizeram outras nações importadoras e exportados”3. O enquadramento económico que a guerra impôs levou ao congelamento dos preços nacionais deste cereal, paralelamente à subida de preços dos trigos e farinhas de importação, que tornou o protecionismo altamente favorável à indústria moageira.
Após o fim da guerra, esta proteção estatal já não se revelou tão atrativa para os proprietários. Deputados e senadores defenderam conjuntamente o fim deste esquema, uma vez que os preços da entrega do trigo às moagens davam prejuízo ao Estado, o que estava conectado com a depreciação cambial que se verificava. As boas colheitas de 1922 e 1923 forneceram os argumentos para que o bloco agrário se unisse para pedir o fim do “pão político”. A lavoura mencionou que “uma política de preços baixos não serve para estimular a produção de modo que a esta assegure a autossuficiência [cerealífera] do país […]” mas também não abrandava “o deficit da balança comercial” (Pires, 2004, p. 134). A Associação Central de Agricultura Portuguesa, uma vez mais, foi um dos intervenientes nesta questão. Em julho de 1923, “após o envio de uma representação da ACAP censurando a política governativa, rapidamente se observa uma rápida adesão a este documento” e “um vasto conjunto de sindicatos agrícolas, quase todos eles localizados no Alentejo, apoiaram esta crítica” (Pires, 2022, p. 81).
Os governos, sequiosos de captar o apoio desta elite económica e para evitar a sua alienação, acabaram por ceder. Foi num contexto de prosperidade frumentária que, em 1922, foi proposto um novo regime cerealífero para pôr fim à importação de trigo pelo Estado, dividindo o país em duas regiões: uma onde se consumia trigo exótico e outra onde apenas o trigo nacional era farinado. É em 18 de agosto de 1923 que o sistema do “pão político” terminou, com o Decreto n.º 9060, liberalizando-se o mercado interno, o que não dispensou os governos republicanos de forte contestação vinda da opinião pública. Porém, uma magna questão permanecia por solucionar. Apesar da atividade governativa, era da “mais elementar evidência reconhecer a sua incapacidade para alcançar o principal desígnio que se propunha, vencer o problema das subsistências” (Amaral, 1993, p. 53). Durante anos a produção de “cereais, que não chegam para que Portugal tenha todo o pão que necessita”4, levou Oliveira Salazar a escrever que “por uma larga tradição alimentar […] ninguém em Portugal saberia alimentar-se sem pão” pois era “um género de absoluta necessidade” (Salazar, 1918, p. 10).
Os benefícios trazidos pela guerra consolidaram a moagem como um grande potentado económico (era a segunda maior indústria portuguesa), com reflexos na importância que este grupo foi adquirindo enquanto a I República se encaminhava para o seu colapso. Deu-se um processo de concentração empresarial conduzido pela Companhia Industrial de Portugal e Colónias, pela Sociedade Industrial Aliança e pela União dos Moageiros, o que levou à divisão do mercado nacional e as três empresas “conseguem resistir à crise e regulamentar a concorrência” (Pires, 2004, p. 110). A mesma situação foi replicada noutras regiões com a constituição da Comissão Encarregada de Adquirir Trigos Exóticos para a Moagem Matriculada Independente, mais tarde, designada como Moinhos Reunidos Limitada, com uma área de atuação centrada no litoral, e a criação da Moagens de Província Limitada, com incidência no Alentejo.
No âmbito da política económica, com o fim da I República e o novo regime surgido, a Ditadura Militar, foram fornecidos os pretextos que fortaleciam a necessidade de intervenção do Estado, visto como elementar para o apoio financeiro e a orientação quanto aos objetivos, prioridades, medidas e prazos que haviam de permitir a concretização das etapas de um processo de desenvolvimento nacional. De uma maneira geral, foram o trigo e o vinho “desde há 50 anos o fulcro de toda a política económica portuguesa” (Sousa, 1933, p. 13), permanecendo a agricultura como uma preferência e em que os cereais evidenciavam a sua primazia no quadro das decisões ministeriais.
Por consequência, a moagem ocupou um lugar muito particular na gestão política da economia na transição entre a Ditadura Militar e o Estado Novo. Em nenhum outro setor “é possível encontrar uma regulação de preços e de quantidades cobrindo todas as fases de transformação produtiva da cultura do cereal, à moenda, panificação e distribuição final ao consumidor” (Madureira, 2002, p. 58). Foram as moagens o alvo das primeiras medidas de controlo da atividade económica que resultariam no regime de condicionamento industrial, em que “a superintendência estatal seria a forma de assegurar a praticabilidade de uma economia que se queria nova” (Pires 2020a, p. 131). O Decreto n.º 12051, de 31 de julho de 1926, que estabeleceu disposições sobre a moagem e venda de cereais, farinhas e pão também visou a indústria: proibiu a instalação de novas moagens de farinhas espoadas de trigo e estabeleceu um regime protecionista de exceção para a Manutenção Militar. Houve um reforço com o Decreto n.º 16717, de 11 de abril de 1929, no qual, além de proibir a transformação das fábricas em mós em fábricas de cilindros, condicionou a transferência das fábricas a prévio requerimento do Ministro da Agricultura.
A nível do cultivo, a grande alteração veio com o lançamento da Campanha do Trigo (Decreto n.º 17252, de 16 de agosto de 1929), renovando o panorama do intervencionismo do Estado no âmbito cerealífero5. Baseada na preferência pela produção interna de trigo, esta partiu de dois pressupostos: a impossibilidade de meios de pagamento ao exterior e a ambição do desenvolvimento das forças produtivas nacionais. A fórmula económica apresentada ostentou razões de natureza histórica como as “explorações de grande dimensão e à cultura extensiva do solo, a baixa densidade demográfica” (Marques, 1988, p. 75) dos campos do Sul que impossibilitava grandes cambiantes nas formas de aproveitamento de milhares de hectares na região alentejana. Este não é um simples ato isolado, mas sim algo de estrutural que demonstrou uma conceção de fundo inerente à economia portuguesa e às relações que o Estado se propunha a estabelecer com ela.
Exibindo uma manifesta continuidade com as leis finisseculares oitocentistas, a Campanha do Trigo aspirava a aumentar a produção nacional, promovendo um equilíbrio da balança comercial. Em 1932, o País atingiu a sobreprodução e “o trigo nacional ultrapassou largamente as necessidades do consumo” (Amaral, 1995, p. 56). Este remate deveu-se ao crescimento da superfície cultivada, com a redução da área dos incultos e da criação de uma quase monocultura no Alentejo, e não tanto aos estímulos ao aumento de produtividade, que tiveram um papel secundário. Na indústria deu-se “um processo de deslocação do eixo do poder económico dos setores agrícolas (aparentemente beneficiados pela Campanha) para alguns setores industriais” (Brito, 1989, p. 156), através do alargamento das indústrias dos adubos químicos, alfaias agrícolas e metalúrgica.
Mas se este era o cenário dominante, de que forma se procedeu aos novos arranjos da política agrária com implicações no plano dos cereais em outras regiões como as ilhas atlânticas? Este será o foco das próximas páginas, tomando o arquipélago dos Açores como caso de estudo.
A conquista do pão: significados e dimensões da “questão do trigo” nos Açores
Na exploração agrária, os cereais foram das marcas mais duradouras da agricultura açoriana. Desde o povoamento, a sua expansão fora feita com o objetivo de “abastecer as praças do Norte de África e compensar o défice do continente” (João, 1991, p. 44), substituindo uma dinâmica que fora patente na Madeira até meados de 14606. Progressivamente, o arquipélago foi-se transformando no “celeiro oficial do provimento do Reino” (Vieira, 1985, p. 125), a que se soma o importante papel desempenhado nas provisões de biscoito para as armadas. No capítulo da cultura trigueira na Época Moderna, o aprovisionamento de outras urbes fora dos Açores manteve-se, existindo no século XVIII “diversos indícios [que] demonstram a arrecadação de colheitas copiosas nos campos micaelenses” (Meneses, 2011, p. 139) abundância extensível a Santa Maria, Graciosa, Flores e Terceira.
Já na Época Contemporânea, a funcionalidade dos Açores foi sendo alterada, por consequência das variações da correlação atlântica em presença. A utilidade estratégica, ocasionada pelo determinismo da geografia, funcionou de acordo com a emergência de novos protagonistas políticos, como os EUA. Estas metamorfoses tiveram impactos nas formas de exploração económica. Sendo possível caracterizar a agricultura açoriana como uma economia agrária tradicional, da terra não eram apenas extraídos os produtos consumidos pelas comunidades locais, mas também as culturas valorizadas pelo mercado, o que expunha o setor primário às transformações exógenas. Uma das consequências foi a perda de expressividade das exportações de trigo.
A contração da exportação frumentária apresenta quota parte de responsabilidade na agudização do confronto entre as ilhas e o continente, que desembocou na conquista do Decreto Autonómico, publicado a 2 de março de 1895. Claro que as principais explicações da crise económica dos Açores, que desencadeia o protesto pelo pressuposto desamparo do arquipélago pela sede do poder central, residem na destruição de vinhedos e pomares (sobretudo de laranja doce) por pragas naturais e no embargo das produções industriais de substituição, o álcool e o tabaco, nos portos continentais. Todavia, os cereais também desempenham um papel nesta matéria, uma vez que numa “época de cíclicas crises cerealíferas e consequentes situações de fome […] o governo, a crer na opinião da imprensa e das próprias autoridades açorianas, parecia não escutar os "clamores do povo" ou, pelo menos, era acusado de não procurar soluções” (Cordeiro, 1992, p. 265).
Mais tarde, entre 1906 e 1921, verificou-se um desenvolvimento da produção, a que se deve atribuir o “uso de debulhadoras mecânicas, que vieram facilitar enormemente o trabalho, até ali também fatigante, da debulha nas eiras”7. Antes disso, a cultura do trigo era feita “em absoluto respeito pela tradição, pelos processos mais rotineiros e rudimentares”8. Posteriormente, os sinais de decadência foram se manifestando devido à concorrência das farinhas e dos trigos americanos, o que também se sentiu na produção trigueira continental. As especificidades dos Açores enfatizavam este problema, imperando o baixo custo dos cereais de fora, que tornavam incomportáveis os custos de produção locais, uma vez que, na falta de proteção, os seus trigos tiveram dificuldades de colocação nos mercados do continente e da Madeira. A queda na importância do trigo está patente noutras situações pois, a partir de 1921, a Junta Geral do Distrito estava autorizada a importar anualmente sementes selecionadas de trigo e “em 1924 e 1925 nenhum pedido de trigo para semente foi apresentado”9. Entre os fatores locais que levaram ao abandono desta cultura podem enumerar-se “o fim do monopólio da terra por parte dos arrendamentos e dos grandes proprietários com a remissão de muitos foros que oneravam a terra e, por fim, o significativo aumento dos salários” (Dias, 2008, p. 37). O alargamento das culturas da beterraba, da chicória, do tabaco e da fava, que apresentavam maiores possibilidades de aumento dos rendimentos, “veio, alterar, decisivamente, o equilíbrio outrora existente” (Dias, 2002, p. 27). A prazo, a crescente aposta na criação de gado torna a pecuária como nitidamente responsável pela contração da agricultura, patente no aumento do número de cabeças de gado, sobretudo do bovino devido ao seu papel como força de trabalho e produção de carne e leite.
Ano | Angra | Horta | Ponta Delgada |
---|---|---|---|
1852 | 62139 | 62730 | 96575 |
1873 | 81006 | 52256 | 86988 |
1926 | 69407 | 44944 | 81231 |
1934 | 88072 | 63696 | 101248 |
No início do século XX, o que a realidade da moagem açoriana evidenciava era a existência de moinhos espalhados pelas ilhas e um pequeno número de fábricas, à semelhança dos lacticínios, setor no qual também se sentia “uma guerra aberta entre proprietários e industriais”10. Este era sintoma do frágil desenvolvimento industrial que se traduzia no facto de que os trabalhadores laboravam, de forma intensiva, nos meses seguintes às colheitas de matérias-primas, que também acontecia na indústria do chá. A transformação industrial dos cereais modificou-se com a fundação de três moagens: a Faialense, em 1914, a Micaelense, em 1922 (pertencente a uma sociedade por quotas - Empresa Micaelense Lda.) e, por fim, a Terceirense, em 1928. Antes destas existiam a Moagem Teves, fundada em 1903, a de José Maria Caetano, destruída num incêndio em 1919 e a Moagem Ferreira que ficou inativa com o início da laboração da Moagem Micaelense. Esta imagem de exiguidade empresarial é sintomática da restante estrutura nacional, expressa na pequena dimensão, reduzida densidade e interconexão da rede empresarial que, em derradeira instância, revela sinais de um capitalismo pouco desenvolvido à época.
O fim da economia de guerra abriu caminho para cambiantes na questão cerealífera, com impactos na produção e transformação. Pelos Decretos n.º 7849, de 30 de novembro de 1921, e n.º 8765, de 14 de abril de 1923, ficou estabelecido um regime cerealífero especial para a Madeira e os Açores. Através destas leis foi permitida a importação de trigo, depois de comprado o trigo insular manifestado pelos produtores, e podia ser feita pelos fabricantes matriculados ou por negociantes, sob duas condições: em ilhas onde não houvesse fábricas ou onde estas não conseguissem suprir as necessidades locais.
Algumas alterações foram consumadas com o termo do “pão político”. A livre importação de trigo exótico de qualquer procedência foi autorizada para os distritos de Ponta Delgada e Horta, algo feito não apenas pelas moagens, mas por outras entidades; por seu turno, para o de Angra, que não possuía uma moagem, a importação de farinhas passou a ser igualmente livre, de forma a facilitar o abastecimento. Ainda que alguns considerassem esta “a lei mais benéfica para o distrito que conhece a presente geração”11, as consequências não foram as mais positivas. Sendo o trigo importado mais barato, foi clara a decadência da produção local e os preços do pão não baixaram. Em Angra, a importação de farinhas limitou o crescimento da cultura ao nível regional. Na cidade da Horta era alegado que havia “interesse em que a farinha [americana] chegasse aqui mais cara, a fim de evitar que a imprensa daquela cidade continue a dizer que em Angra se vende mais barata do que ali”12.
Anos | Produção de trigo (hectolitros) | Importação de trigo (kg) | Importação de farinha (kg) |
---|---|---|---|
1920 | 50 000 | 326 | 975 |
1921 | 45 000 | 980 | 75 335 |
1922 | 30 000 | * | 1 301 608 |
1923 | 40 000 | 478 485 | 633 583 |
1924 | 35 000 | 1 152 436 | * |
Fonte: ANTT, Ministério do Comércio e Indústria, Gabinete do Ministro, cx. 10, pt. 3, processo 722, fl. 5.
É de sublinhar que antes das mudanças legislativas proporcionadas pela Ditadura Militar, a realidade testemunhava a ausência de garantias para que os agricultores açorianos conseguissem vender a sua produção a preços compensatórios. Para os moageiros tornava-se mais lucrativo laborarem com trigos exóticos importados, uma vez que eram mais baratos. Outras das estratégias usadas pelos industriais da moagem era a compra, por valores mais baixos, da produção local, desrespeitando o tabelamento de preços vigente. Os pequenos produtores de cereais, sem possibilidade de poderem armazenar os excedentes, viam-se sujeitos a um pacto leonino, para conseguirem auferir rendimentos que lhes permitissem o pagamento de despesas correntes.
Quando se iniciou a Campanha do Trigo as necessidades frumentárias do arquipélago eram de “10 000 toneladas (Angra 2 500 - Ponta Delgada 5 000 - Faial 2 500”13, concluindo-se que “os Açores estavam completamente dependentes do exterior quanto ao fornecimento de trigo” (Enes, 1994, p. 65). Das ausências sentidas é demonstrativa a informação de que “o trigo produzido no distrito [da Horta] apenas chega para o consumo de um mês pouco mais ao menos”14. Já em março de 1929, Pedro Correia Machado, Martim Machado e Faria e Maia, presidentes da Associação Comercial, da Associação Industrial e do Sindicato Agrícola, respetivamente, pediram, num telegrama enviado ao Ministro da Agricultura, a “urgente publicação [do] Decreto autorizando exclusivamente [a] importação [de] trigo”15, a fim de garantir o abastecimento do distrito de Ponta Delgada.
Note-se que o défice não era exclusivo no trigo, alastrando ao milho, circunstância agravada pelo facto de ser este a base da alimentação local. Um dos motivos apresentado, na Horta, era que “o nosso agricultor não pode produzir mais, por falta de assistência técnica” e “por este motivo, é fácil compreender que não pode aplicar adubos químicos nem sair da rotina que vem dos nossos bisavôs”16. No final da década de 1920, a produção média por hectare foi significativa, aumentando a superfície cultivada. Ainda assim, era incapaz de satisfazer as necessidades de consumo, sofrendo a concorrência dos milhos exóticos. Só em 1953 é que se começou a generalizar o cultivo de milho híbrido o “que revolucionou a questão da carência deste cereal” (Bento, 2010, p. 64).
A “Batalha do Trigo Açoriano”: a atuação socioeconómica das classes patronais
Neste ambiente político-económico, os anseios dos interesses agrários estiveram na base de diversas deliberações tomadas. As decisões políticas relativas ao setor podem ser consideradas contingentes, “tentativas de ir ao encontro dos desejos de diferentes grupos de pressão, faltando-lhes um planeamento claro e mostrando que muitas vezes os executivos não logravam seguir uma estratégia de desenvolvimento eficaz” (Amaral & Freire, 2024, p. 314). Perante pontos de vista divergentes, os conflitos despontavam, com desarticulações entre as vontades de produtores e industriais. Que conflitos eram esses? Eram extensíveis a toda a cadeia produtiva, sendo os moageiros os principais atores envolvidos, pois os importadores de farinha (manifestando-se contra a importação de trigo exótico), os consumidores (que defendiam a livre importação de farinhas) e os produtores de trigo viam nestes o foco comum dos seus problemas.
As contendas surgidas inscrevem-se em lógicas que não eram exclusivas dos espaços insulares. As tentativas da Moagem Micaelense na criação de um monopólio, sob a sua tutela, para controlo da transformação dos cereais no arquipélago eram idênticas ao que acontecia no continente com a formação dos cartéis moageiros no final da Primeira Guerra Mundial, intentando impor condições à lavoura que lhe fossem favoráveis. A importância desta empresa era notada pela imprensa local. Um exemplo disso surgiu quando, nos finais de 1926, o governador civil de Angra pediu autorização para importar farinha dos EUA, apenas autorizada em fevereiro de 1927. Perante esta atuação, alguns consideravam que “não será difícil vermos a moagem micaelense, aqui e em Lisboa, a empatar a autorização pedida, dando tempo a que se publique o desejado Decreto, que lhe conceda o monopólio de fornecimentos”17. Acrescentava-se que esta empresa “procura apanhar um monopólio rendoso para si, e provadamente ruinoso para nós [a população]”18.
A influência da elite moageira de São Miguel acabou por conduzir à promulgação do novo regime cerealífero dos Açores (Decreto n.º 13668, de 25 de maio de 1927). Dentro dos aspetos mais relevantes da nova lei encontram-se alguns que demonstram o favorecimento da indústria micaelense. Em primeiro lugar, o Distrito de Angra, desprovido de uma moagem, tinha de ser abastecido com farinhas de outras regiões do arquipélago. Seguidamente, o rateio de cereais tinha de ser feito com base na capacidade de laboração de cada fábrica. Isto levou a que a Moagem Micaelense fosse amparada, asfixiando as unidades industriais mais pequenas, cujo capital fixo era mais baixo. Em suma, a lei desembocava num claro incentivo à produção da ilha de São Miguel cuja primazia do cultivo trigueiro antecedia o século XIX.
Começaram a surgir protestos das pequenas moagens e dos consumidores, consumados em representações contra o novo regime, demonstrando como “o comércio de trigo dos Açores não é livre”19. Não é de surpreender que se considerasse que “o monopólio da moagem é ilegal, antieconómico e odioso”20. Os proprietários das padarias da Horta entregaram a Governador Civil uma exposição onde “procuraram justificar ser-lhes impossível o fabrico e a venda de pão nas condições impostas”21 por um edital de 22 de fevereiro de 1928 da Delegação da Bolsa Agrícola determinando o preço, o peso e a quantidade de farinha usada. Já a moagem da Horta enviou, em setembro de 1928, uma representação pedindo à aplicação do regime cerealífero do País aos Açores para impedir “a importação de farinhas como sucede no continente, apesar de o País não produzir o suficiente e este ano muito menos que o outro”22. A Moagem Faielense iniciou esforços para reverter a situação e conseguiu a liberdade de importar trigo estrangeiro.
Para a Câmara Municipal de Angra do Heroísmo e após uma representação dos industriais de padaria locais, “considerando que, estando a vigorar no Distrito da Horta, onde existe a indústria da moagem, o regime de livre importação de farinhas, estabelecido pelo Decreto n.º 12781, de 30 de novembro de 1926, justo é que no Distrito de Angra do Heroísmo, onde não existe a referida indústria, vigore um regime semelhante”23. É desta forma que a Portaria n.º 69 da Delegação Especial do Governo da República nos Açores, de 13 de janeiro de 1928, determinou que seria estabelecido para este mesmo distrito as disposições do Decreto n.º 9090, de 31 de agosto de 1923.
Para superar esta situação, no final de 1928, o Governo encetou uma tentativa de estabelecer o livre comércio e trânsito de cereais panificáveis, olhando o arquipélago como uma unidade económica. Nas autoridades civis de cada distrito era colocada a responsabilidade de fixar os preços e os tipos de farinha e de pão para o público e a regulação das importações de trigos e farinhas exóticas, enquanto não estivesse concluído o manifesto de trigo de produção local.
Uma vez mais, a ausência de sintonia entre as partes envolvidas levou à suspensão do projeto. Apareceram reclamações do Distrito de Ponta Delgada, congregados no Grémio dos Açores e, “em vésperas da crise ministerial, a Direção do Grémio conseguira já adiar a publicação do novo Decreto, para sobre ele se fazer um estudo mais ponderado”24. Mais tarde, esta entidade gremial continuou a sua intervenção junto do Delegado Especial do Governo da República, o coronel Feliciano da Silva Leal, e do Ministro da Agricultura, Henrique Linhares de Lima.
Os apelos para “travar essa verdadeira Batalha do Trigo Açoriano se devem congregar todos os Açorianos, pois que é conduzida ao bem comum”25, contaram com a mediação da Igreja Católica. Num apelo feito pelo Delegado do Governo ao Governador do Bispado de Angra, em 10 de novembro de 1928, foi pedido para recomendar aos sacerdotes das diferentes paróquias através do “contacto imediato e quotidiano em que estão com os seus paroquianos, e pela influência que, certamente, sobre eles exercem” para “elucidar e esclarecer o cultivador acerca dos cuidados mínimos que deve dispensar a esta cultura [do trigo], remunerando-o, o anime a melhorá-la […] e a alargar a sua área, se as condições do solo lho permitirem”26. É desta forma que foi elaborada uma carta pastoral apelando aos lavradores para aperfeiçoarem e intensificarem a cultura do trigo, além de mostrar que a intenção do governo não passava pela tributação ou pelo aumento da carga fiscal (ver Anexo I).
Foram até indicadas soluções que possibilitassem a coordenação entre dois dos principais setores locais: o pecuário e o cerealífero. Articulando-os seria possível “criar vantagens à cultura cerealífera sobre a pastagem, por modo a ser utilizado todo o terreno suscetível de produzir cereal; e dar à pecuária elementos de se desenvolver, dentro de certos limites, sem ir contundir a cultura cerealífera”27. Digno de nota são alguns apelos indicando que “tudo há que distinguir as situações diferentes da Madeira e dos Açores” porque “a primeira não produz cereais; os segundos não podem deixar de ser considerados uma região cerealífera”28. O regime cerealífero decretado para 1929 permitiu que da Madeira não se poderia exportar farinha para Lisboa e os Açores.
A intervenção do Estado e a resistência dos interesses económicos
Em 1930 foi constituída, pelo Ministro da Agricultura, uma comissão composta por representantes dos três distritos açorianos para estudar as bases do novo regime cerealífero29, iniciativa com o objetivo de trazer aos Açores “uma maior produção cerealífera e atender aos justos interesses da agricultura e da moagem que se podem associar”30. Os trabalhos feitos passaram pela elaboração de questionários sobre o défice cerealífero para compreender as medidas a tomar para a intensificação cultural no arquipélago. O Ministério enviou, em setembro de 1930, uma brigada de agrónomos para a Horta, a fim de estudar o desenvolvimento agrícola local. Estas diligências podem ser vistas como algo consequente do facto de o titular da pasta, Linhares de Lima, ser natural dos Açores, mais precisamente de São Roque do Pico, o que pode ter elevado a premência da questão.
No relatório apresentado podia ler-se que era necessário “assegurar o consumo de trigo nacional e de promover direta ou indiretamente, o desenvolvimento da cultura cerealífera nas ilhas, a que se acham ligados os interesses do Estado; a necessidade de estabelecer para o trigo insular um preço suficientemente remunerador […] evitar importações desnecessárias”31. Segundo a classe fundiária, o novo decreto tinha de colocar “o lavrador em condições de dar preferência à cultura do trigo […] que na realidade será uma importante medida para a economia da terra”32.
Concluídos os trabalhos, apresentou-se um projeto para um novo regime cerealífero. Foi aconselhado, entre outros parâmetros, o livre comércio e trânsito de cereais panificáveis nas ilhas açorianas; a divisão do ano em dois períodos33; o tabelamento de preços seguindo as normas aprovadas para o continente; a obrigatoriedade das moagens locais em receberem o trigo entregue pelos produtores, sob a pena de não lhes ser autorizada a laboração e, para cobrir o deficit de cereais, a livre importação de trigo exótico era possível na segunda parte do ano.
Vindas dos interesses económicos organizados, variadas opiniões surgiram. A Moagem Micaelense defendia que ao Distrito da Horta devia ser aplicado o regime que vigorar para os restantes distritos açorianos, devendo existir “um regime cerealífero único para todo o arquipélago”34. Os industriais ligados a esta fábrica consideravam que o rateio do trigo exótico deveria ser feito pela Bolsa Agrícola, abandonando o critério que a laboração dos cereais devia ter em conta a capacidade de laboração de cada fábrica, regressando ao Decreto n.º 13 368. Esta moagem garantia que “não deve ser permitida a instalação de novas fábricas de moagem nos Açores”35, bem como devia ser permitido às fábricas de cada distrito exportar para qualquer dos outros dois distritos, sem pagamento de ónus tributários.
Através destas sugestões, é possível concluir que a Moagem Micaelense e as suas pretensões monopolistas permaneciam. As suas posições sobrevinham de uma situação de vantagem tecnológica pois, do distrito, era a Moagem Micaelense a que tinha maior força produtiva, com capacidade de transformação de 74 700 quilos, a que se seguia a APT, com 9 074 quilos e depois a Moagem Ferreira com 4 600 quilos35.
A Associação Comercial de Angra, analogamente, manifestou a sua opinião. Para esta agremiação, permitir às moagens de Ponta Delgada e Horta, a primeira de grande capacidade produtora, “estabelecidas em portos bem equipados e servidos de navegação estrangeira, e que, ainda pelas circunstâncias agrícolas das respetivas regiões só em quantidade ínfima trabalham trigo indígena, permitir-se-lhes, repetimos que venham com farinhas mais baratas e de qualidade preferível pelo comprador fazer competência à produzida pelo trigo local que pelas razões expostas dão uma farinha de qualidade inferior” rematando com a consideração de que tal “não é justo nem patriótico”36. Das opiniões colhidas junto do presidente da Associação Comercial, Alfredo de Mendonça, “o regime assegura todas as garantias, mas trará morte certa à Moagem Terceirense”, devido à concorrência gerada por ser possível as moagens poderem montar, em qualquer ilha, depósitos para compra de trigo e venda de farinha.
Esta situação era corroborada pela voz dos proprietários rurais, segundo a qual cumpria “defendê-la e garanti-la, enquanto ela satisfazer as exigências da lei que lhe deu garantias de vida”37. Os sindicatos agrícolas da Ilha Terceira (São Sebastião, São Bartolomeu, Lajes, Cinco Ribeiras, Ribeirinha, Cabo da Praia e Vila Praia da Vitória) fizeram ouvir a sua voz aquando da proposta das novas políticas para aquela região. Numa representação enviada ao Ministério da Agricultura, os proprietários diziam que Angra do Heroísmo era, de todos os distritos, o que se encontrava em melhor situação agrícola porque produzia trigo para oito meses do ano, enquanto Ponta Delgada e Horta produzia para dois meses e mês e meio, respetivamente.
Perante falhas no abastecimento e a necessidade de importação, surgiria a concorrência entre trigos exóticos e os trigos angrenses, como também das farinhas, e neste último tópico, os pequenos agricultores poderiam passar por dificuldades. A lavoura não tinha como “concorrer com as farinhas exóticas aqui colocadas pelas outras fábricas”38, além de que subprodutos como farelos e sêmeas, relevantes na criação de gado, num quadro de problemas dos moageiros de Angra, também tinham de ser importados, sobrecarregando os produtores com mais despesas.
Depois da apresentação pública e não se conseguindo “harmonizar as divergências que se manifestam entre as moagens”, emergindo “interesses desencontrados”39, o Ministro da Agricultura manteve o regime cerealífero, abandonando o projeto da comissão.
No ano seguinte, para o que também terá contribuído uma maior solidez institucional e certeza política, foi determinado, com o Decreto n.º 20 769, de 15 de janeiro de 1932, o fim da importação de farinhas exóticas, procedendo-se à uniformização da política cerealífera para Angra, Horta e Ponta Delgada. É neste momento que se conseguiu superar a conjuntura precedente, com aumentos da produção local de trigo, a satisfação das reivindicações dos interesses da moagem porque, a partir desse momento, cada distrito “passou a poder importar trigo exótico, com autorização do governo, depois de consumido o trigo de produção local” (Enes, 1994, p. 128). A Moagem Micaelense viu as suas tentativas de domínio insular saírem frustradas. Face às necessidades alimentares insulares, ainda assim, a importação de trigo continental foi sendo aprovada, como ocorreu em fevereiro de 1933.
Anos | Trigo (Litros) |
---|---|
1925 | 4 354 811 |
1926 | 3 672 088 |
1927 | 2 486 867 |
1928 | 2 829 237 |
1929 | 2 816 496 |
1930 | 2 342 448 |
1931 | 3 543 584 |
1932 | 3 466 938 |
1933 | 4 438 110 |
1934 | 5 070 998 |
1935 | 5 465 814 |
1936 | 8 175 929 |
1937 | 5 167 061 |
1938 | 6 030 975 |
1939 | 7 556 059 |
Fonte: Enes, 1994, p. 66.
No Quadro n.º 4, os valores demonstram as quebras na produção de trigo que se principiaram no final dos anos de 1920. A reversão da diminuição foi conseguida no início da década de 1930, de forma praticamente garantida, até à Segunda Guerra Mundial, algo que também se fez sentir noutros setores cerealíferos no contexto continental como o arroz40. Num balanço final, pode dizer-se que os resultados acabaram por ser positivos, conseguindo atenuar o deficit cerealífero local, agregando-se estes esforços em quatro princípios básicos: “lavrar bem […], adubar bem […] escolher bem a semente […] semear bem”41.
Entre as razões para que o fortalecimento agrícola trigueiro conseguisse ser bem-sucedido encontram-se o uso de “variedades precoces italianas, nas adubações racionais e novos métodos culturais (destaque a sementeira em linhas)” (Cabral, 1960, p. 377). As variedades usadas eram o trigo Rieti “que produz muito e bom grão” e, mais tarde, Mentana e Quaderna, além dos trigos portugueses Galego Barbado, Temporão de Coruche e o híbrido Ideal “que tem dado também entre nós bons resultados”42. Para tal, foram determinantes os esforços da Junta Geral do Distrito de Ponta Delgada que, conseguindo verbas suficientes, adquiriu em Lisboa sementes destas variedades para venda ao público, além do fornecimento de maquinismos como “um apurador selecionador de sementes, que anda já pelas freguesias rurais prestando aos lavradores magníficos serviços”43. Se em 1927, o número de quilos de trigo para semente que foram distribuídos eram 4778, num total de 45 agricultores, em 1932, já chegava aos 24918, repartidos por 151 produtores44.
A orgânica corporativa e a cerealicultura regional
O setor primário foi o primeiro terreno onde se promoveram as novas formas de disciplina institucional consubstanciada na organização corporativa, seguindo uma lógica onde “é o Estado que impõe a economia institucionalizada e comanda a criação de um gigantesco setor público-corporativo da ‘economia nacional’ destinado a deter conflitos económicos e garantir a ‘paz social’ (Garrido, 2005, p. 460). Para alguns, “a organização é a única couraça contra os golpes das crises” (Sousa, 1933, p. 21) e é dessa forma que se pode ver a intervenção estatal, como forma a minorar os embates trazidos pela crise dos anos 1930.
Para os cereais, incluído no que se pode designar como o empenho do Estado na “proteção privilegiada da ‘grande agricultura tradicional’” (Garrido, 2016, p. 105), em 1932, criou-se a Federação Nacional de Produtores de Trigo (FNPT) e foi na cadeia produtiva do trigo que a dimensão corporativa tomou maior importância. De seguida, prolongou-se pela indústria, obrigando-a a organizar-se corporativamente, começando com a Federação Nacional dos Industriais de Moagem, em 1934, a que se seguiram os Grémios dos Industriais de Panificação de Lisboa e Porto e o Instituto Nacional do Pão, todos surgidos em 193645.
Para a região em análise, tal facto deu-se com a formação da Comissão Reguladora de Trigos (CRT), criada pelo Decreto-Lei n.º 27 286, de 24 de novembro de 1936, e que pode ser vista como a congénere açoriana da FNPT, uma vez que algumas das suas medidas, como a coordenação da produção e comercialização deste cereal e a construção de celeiros, eram idênticas ao que ocorria no continente. A CRT era ainda responsável pela distribuição dos excedentes pelas áreas mais deficitárias do ponto de vista da produção agrícola, de forma a evitar carências alimentares. A extensão destas funções à cultura do milho levou a que, de acordo com o Decreto n.º 29 779, de 25 de julho de 1939, se convertesse na Comissão Reguladora de Cereais do Arquipélago dos Açores.
A Portaria n.º 10 753, de 3 de outubro de 1943, alargou a sua capacidade à produção de cevada, ficando este organismo de coordenação económica responsável pela cerealicultura açoriana até 1972, o que o tornou num elemento “imprescindível ao bom desenvolvimento das várias atividades agrícolas e económica do arquipélago”46.
Conclusões
Através do que foi exposto, torna-se óbvio que a cerealicultura e os agentes que orbitavam em torno desta componente do setor primário foram protagonistas de conflitos, uns mais audíveis que outros, mas que, de uma maneira geral, acentuaram a sua capacidade de mobilização. A Ditadura Militar possibilitou que a condução da política económica incorporasse nas leis publicadas e instituições criadas a marca do patronato e das elites rurais, permitindo que outros elementos da sociedade se vissem prejudicados, e que no caso da cerealicultura, em determinados momentos, foram os consumidores. O equilíbrio tecido neste arco cronológico também não foi totalmente ou unicamente conduzido para que as elites ditassem os termos. Isso ficou evidente nos malogrados esforços da Moagem Micaelense em criar um monopólio insular na transformação de cereais.
Atendendo à cronologia escrutinada, pode-se interrogar o seguinte: as hesitações da transição de regime e as fragilidades que lhe estão inerentes podem ser vistas como indícios de governos capturados pelos interesses? A resposta a tal questão pode ter matizes. O que o caso açoriano pode demonstrar é que este movimento não só se pode observar deste ângulo, como igualmente confirma que a importância das classes patronais apresentou modalidades de intervenção semelhantes. O que ocorreu nos Açores não se distancia de outros episódios surgidos no Portugal continental, sendo a manifestação insular da “jaula oligárquica” levando a que, tal como noutros momentos, a condução da política económica fosse feita com “uma aliança de poder, um bloco histórico entre o mando político e os interesses do negócio, que obrigava todas as frações da burguesia, buscando vantagens de curto prazo que eram sempre mais sedutoras do que a difícil e arriscada luta pela hegemonia” (Louçã, 2020, p. 200). A reconfiguração política da época, num regime que procurava apresentar-se como alternativo ao que o havia precedido, acabou por fazer emergir ou reforçar o lugar social de grupos económicos, procurando convocá-los para a avaliação aos problemas estruturais do país e estabelecendo um elenco das prioridades, sob o signo da convergência entre a ampliação da esfera de intervenção pública e a subordinação clientelar da burguesia ao Estado, num processo que não foi isento de resistências das elites.