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Revista Portuguesa Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço

versão On-line ISSN 2184-6499

Rev Port ORL vol.60 no.4 Lisboa dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.34631/sporl.1024 

Artigo Original

Envolvimento da comissura anterior no carcinoma glótico - o subestadiamento é uma realidade?

Glottic carcinoma with anterior commissure involvement - is understaging a reality?

1 Hospital Garcia de Orta, Portugal

2 Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Portugal


Resumo

Objetivos:

Determinar se o envolvimento da comissura anterior (CA) é um fator de prognóstico no carcinoma glótico (CG) para recidiva e para sobrevida a 5 anos.

Desenho de estudo: Observacional retrospetivo.

Material e métodos:

Revisão dos processos clínicos de doentes com diagnóstico de CG com estadiamento T1a e T1b num período de 12 anos (2010-2021).

Resultados:

Vinte e três doentes (67,6%) foram classificados como estadio T1a (10 casos com envolvimento da CA) e 11 (32,4%) doentes com estadio T1b (7 casos com envolvimento da CA). O atingimento da comissura anterior associou-se a risco de recidiva para os casos T1b (p<0,05), mas não para os casos T1a. A mortalidade a 5 anos não teve diferença estatisticamente significativa.

Conclusões:

Neste estudo, o envolvimento da CA foi fator de mau prognóstico na taxa de controlo do tumor durante o seguimento dos doentes. Os autores levantam assim a hipótese de este ser um fator a ser considerado no estadiamento T em tumores glóticos.

Palavras-chave: carcinoma glótico; comissura anterior; recidiva; sobrevida

Abstract

Objectives:

To determine if anterior commissure (AC) involvement in glottic cancer (GC) is a prognosis factor to recurrence and 5-year survival rate.

Study design:

Observational retrospective.

Methods: Assessment of medical files of patients who were diagnosed with GC with T1a and T1b staging during a 12-year period (2010-2021).

Results:

Twenty-three patients (67,6%) were classified with T1a stage (10 cases with AC involvement) and 11 patients (32,4%) with T1b staging (7 cases with AC involvement). AC involvement was associated with higher risk of recurrence for T1b cases (p<0,05), but not for T1a cases. Five-year mortality rate had no significant statistically difference.

Conclusions:

AC involvement was a negative prognostic factor in local disease control during follow-up, thus raising the possibility of AC inclusion in T staging in glottic tumors.

Keywords: glottic carcinoma; anterior commissure; recurrence; survival rate

Introdução

O carcinoma glótico (CG) é o tumor laríngeo mais frequente (75% dos casos)1. Embora não sendo uma origem do tumor frequente (1% dos tumores glóticos), cerca de 20% dos tumores glóticos têm atingimento da comissura anterior 2.

A abordagem terapêutica do CG em estadio inicial inclui modalidades de tratamento que preservam a laringe, com a menor morbilidade possível. As opções terapêuticas incluem microcirurgia transoral (com ou sem a utilização de LASER), radioterapia (RT), ou raramente, abordagem por cervicotomia.

A comissura anterior (CA) define-se, com base na sua origem embriológica, como a área da glote entre as pregas vocais localizada anteriormente, que se estende numa direção vertical, tanto cranial como caudalmente3. Está amplamente estudada como ponto de fragilidade à disseminação tumoral, por maior susceptibilidade na invasão da cartilagem tiroideia, uma vez que a este nível a cartilagem tiroideia não está revestida de pericôndrio. De facto, noutras localizações laríngeas, existem outras estruturas que se opõem à propagação tumoral, como tecido muscular, espaço paraglótico e/ou pericôndrio na interposição entre a mucosa e a cartilagem4. Para compreender o padrão de disseminação tumoral é importante reconhecer o papel do ligamento de Broyle. Este ligamento consiste numa banda de tecido conjuntivo fibroso que conecta o ligamento vocal, estendendo-se a partir dele, à face posterior da cartilagem tiroideia. É precisamente nesta região de inserção do ligamento que a cartilagem tiroideia é desprovida de pericôndrio 5. Adicionalmente, a curta distância (2-3mm) entre a mucosa da CA e a cartilagem tiroideia favorece a propagação tumoral. Assim, até tumores de menores dimensões conseguem invadir a cartilagem tiroideia e alterar o estadiamento T de T1 para carcinoma laríngeo avançado (T3 ou T4), alterando, consequentemente, as estratégias terapêuticas neste subgrupo de doentes. Assim, pode especular-se que os CG com envolvimento da CA apresentem um risco maior de subestadiamento e persistência tumoral face ao CG sem envolvimento da CA.

No entanto, a atual classificação daAmerican Joint Committee on Cancer(AJCC) eUnion for International Cancer Control(UICC) não determina a comissura anterior como fator de mau prognóstico, não aumentando o grau T se houver afeção da mesma. Na oitava edição desta classificação, são referenciadas 3 localizações distintas da glote para estadiamento TNM: cordas vocais, comissura anterior e comissura posterior. Apesar dessa subdivisão, a CA em nada influencia o grau T1. É considerado T1 quando o carcinoma glótico está limitado às cordas vocais com mobilidade preservada, sendo subdividido em T1a (limitado a uma corda vocal) e T1b (afeta, ambas as cordas vocais).

Assim, o objetivo deste trabalho é estabelecer se o envolvimento da comissura anterior é um fator de prognóstico no CG para recidiva durante o tempo de follow-up e para sobrevida a 5 anos.

Material e Métodos

Foi realizado um estudo de coorte retrospectivo através da revisão retrospetiva dos processos clínicos de doentes com diagnóstico de CG com estadiamento T1a e T1b num período de 12 anos (2010-2021). Recolheram-se dados demográficos e clínicos (idade, comorbilidades, fatores de risco, histologia, tipo de tratamento, período de follow-up, data de óbito - se aplicável). Foi definido o atingimento da comissura anterior com base no exame objetivo (videolaringoscopia) e/ou com base na Tomografia Computadorizada (TC) de pescoço ou pelo relatório anátomo-patológico. Foi documentada a presença ou ausência de recidiva no período de seguimento, bem como a sobrevida a 5 anos. Foram excluídos os casos cujos processos clínicos foram considerados incompletos pelos autores.

A análise estatística foi executada com o software SPSS26. As variáveis discretas são apresentadas como frequências e percentagens, e as variáveis contínuas são resumidas com média e desvio-padrão. Foi utilizado o teste qui-quadrado de Pearson para as variáveis categóricas. A análise de sobrevida foi realizada com recurso às curvas de Kaplan-Meier.

Foi realizada revisão da literatura existente na PubMed, com os MeSH termsglottic carcinoma”; “anterior commissure”; “recurrence”; “survival rate”.

Resultados

De 188 doentes analisados com o diagnóstico de CG, 34 indivíduos cumpriram os critérios de inclusão de estadio I. A idade média dos doentes no momento do diagnóstico foi 64,2 anos (±10,2 anos). Trinta e dois doentes (94,1%) eram do sexo masculino e dois (5,9%) doentes do sexo feminino. Vinte e três doentes (67,6%) foram classificados como estadio T1a (10 casos com envolvimento da CA) e 11 (32,4%) doentes com estadio T1b (sete casos com envolvimento da CA). Vinte e seis doentes foram tratados com radioterapia e oito doentes foram tratados com microcirurgia transoral LASER (MTL), após decisão em reunião multidisciplinar. Ofollow-upmédio foi de 48 meses (mínimo 18 meses; máximo 72 meses). Relativamente ao diagnóstico anátomo-patológico, 33 doentes corresponderam histologicamente a carcinoma epidermóide (97,1%) e um doente a carcinoma verrucoso (2,9%).

Doze (35,3%) doentes tiveram recidiva da patologia tumoral. Destes, cinco eram casos T1a e sete eram casos T1b. O atingimento da comissura anterior associou-se a risco de recidiva para os casos T1b (p<0,05), mas o tempo livre de doença para os casos T1a não teve significância estatística (tabela 1). A mortalidade a cinco anos não teve diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos (figura 1).

Sumarizam-se os resultados na Tabela 1.

Tabela 1 Resultados 

RESULTADOS
  Recidiva
Sexo M 32 (94,1%)
F 2 (5,9%)
   
Idade (anos) 64,2 (±10,2)  
   
T1a 23 (67,6%) 5 (41,7%)
  Com atingimento da CA 10 (43,5%) p=0,169
  Sem atingimento da CA 13 (56,5%)  
   
T1b 11 (32,4%) 7 (58,3%)
  Com atingimento da CA 7 (63,6%) p=0,045
  Sem atingimento da CA 4 (36,4%)  
   
Histologia  
  Carcinoma epidermóide 33 (97,1%)  
  Carcinoma verrucoso 1 (2,9%)  
   
Tipo de tratamento MTL 8 (23,5%)  
  RT 26 (76,5%)  
   
Follow-up médio (meses)   48 (mínimo-18; máximo-72)  

Figura 1 Análise de sobrevivência 

Discussão

Actualmente, o CG em estadio I tem como principais modalidades de tratamento a microcirurgia transoral (LASER ou com instrumentos frios) e a radioterapia. Estas são modalidades com vista a preservar a laringe, pelo que a cartilagem tiroideia não é removida, o que torna impossível, a deteção de microinfiltrações tumorais ocultas desta cartilagem.

Tulli et al. (4) realçam, na sua meta-análise, a possibilidade de subestadiamento e persistência tumoral. Dadas as características anatómicas singulares desta localização laríngea já descritas, coloca-se o risco de subdosagem de radiação nesta localização glótica, pois encontra-se muito próxima da interface ar-tecido, levando menor cobertura da dose prescrita de radiação nesta localização. Assim, foi proposto por estes autores que o atingimento da CA nos tumores grau T1 fosse considerado um grau “micro-T3”, realçando assim um maior risco de persistência da doença.

Embora este trabalho tenha utilizado a variável binomial “sim/não” no envolvimento da CA, estudos recentes referem que esse envolvimento não é suficiente para determinar o valor prognóstico no CG, levando a resultados incongruentes6. Apesar de se saber que a afeção da CA no CG possa ter resultados negativos no outcome pelos motivos já expostos anteriormente, Hendriksma et. al. defendem que as inconsistências na literatura relativas a este tema se devem a uma pobre definição clínica da área da comissura anterior, pois admitem que seja uma área muito complexa para ser reduzida a uma variável binomial. Diversos autores propuseram uma classificação desta localização de acordo com a consideração do prognóstico da doença: Rucci et al. (7 propuseram 4 subdivisões para a CA no CG; já Piazza et al. (8 propuseram 6 subdivisões, descrevendo diferentes padrões de crescimento e de recorrência.

Não obstante, neste estudo o atingimento da CA foi definido pelos achados ao exame objetivo (videolaringoscopia) e de TC. A CA é uma localização glótica de difícil observação, de forma que frequentemente o seu atingimento por patologia tumoral só é possível de diagnosticar intra-operatoriamente, com recurso a microscopia óptica, usando endoscópicos com angulação de 30, 45 ou 70º, ou exercendo tração antero-posterior da cartilagem cricóide. Na observação laringoscópica, contudo, há estratégias que podem facilitar a visualização desta área, durante a laringoscopia flexível.

Salienta-se a técnica “dipping and rotating”, descrita por Fleisher et al. (9, que combina a manobra de dipping (permite ampliação da mucosa endolaríngea e região subglótica por aproximação, com recurso a inspiração transnasal prolongada) com a manobra de rotação (a ponta do endoscópio flexível é colocada na região interaritenoideia e avança na direção da glote, o que permite uma ampliação satisfatória da CA).

Como principal limitação deste trabalho aponta-se a amostra reduzida, com 34 casos de amostra total. Embora o CG curse com sintomas imediatos como disfonia, na nossa instituição a franca maioria dos CG surgem em estadio já mais avançado (>50% dos casos classificados como T3 ou T4). A consciencialização da população com recurso à educação para a saúde no âmbito dos fatores de risco para carcinoma da laringe é essencial para um diagnóstico precoce e prevenção desta patologia. Apesar desta limitação, o envolvimento da comissura anterior associou-se a recidiva durante o período de seguimento dos tumores T1b com significância estatística, pelo que os autores sugerem que se considere a comissura anterior no estadiamento T em tumores glóticos.

Conclusão

Neste estudo, o envolvimento da CA foi fator de mau prognóstico na taxa de controlo do tumor durante o período de seguimento dos doentes. Os autores levantam assim a hipótese de este ser um fator a ser considerado no estadiamento T em tumores glóticos.

Deste modo, sugere-se que o envolvimento da comissura anterior deve ser documentado e ativamente procurado. Estudos de maiores dimensões da amostra são necessários para confirmação dos resultados, para estabelecer se os CG T1a apresentam maior recidiva quando têm envolvimento da CA, e para determinar se há maior mortalidade no estadio I quando existe este envolvimento.

Conflito de Interesses

Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.

Confidencialidade dos dados

Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.

Financiamento

Este trabalho não recebeu qualquer contribuição, financiamento ou bolsa de estudos.

Referências bibliográficas

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Recebido: 06 de Abril de 2022; Aceito: 08 de Julho de 2022

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