Introdução
O carcinoma glótico (CG) é o tumor laríngeo mais frequente (75% dos casos)1. Embora não sendo uma origem do tumor frequente (1% dos tumores glóticos), cerca de 20% dos tumores glóticos têm atingimento da comissura anterior 2.
A abordagem terapêutica do CG em estadio inicial inclui modalidades de tratamento que preservam a laringe, com a menor morbilidade possível. As opções terapêuticas incluem microcirurgia transoral (com ou sem a utilização de LASER), radioterapia (RT), ou raramente, abordagem por cervicotomia.
A comissura anterior (CA) define-se, com base na sua origem embriológica, como a área da glote entre as pregas vocais localizada anteriormente, que se estende numa direção vertical, tanto cranial como caudalmente3. Está amplamente estudada como ponto de fragilidade à disseminação tumoral, por maior susceptibilidade na invasão da cartilagem tiroideia, uma vez que a este nível a cartilagem tiroideia não está revestida de pericôndrio. De facto, noutras localizações laríngeas, existem outras estruturas que se opõem à propagação tumoral, como tecido muscular, espaço paraglótico e/ou pericôndrio na interposição entre a mucosa e a cartilagem4. Para compreender o padrão de disseminação tumoral é importante reconhecer o papel do ligamento de Broyle. Este ligamento consiste numa banda de tecido conjuntivo fibroso que conecta o ligamento vocal, estendendo-se a partir dele, à face posterior da cartilagem tiroideia. É precisamente nesta região de inserção do ligamento que a cartilagem tiroideia é desprovida de pericôndrio 5. Adicionalmente, a curta distância (2-3mm) entre a mucosa da CA e a cartilagem tiroideia favorece a propagação tumoral. Assim, até tumores de menores dimensões conseguem invadir a cartilagem tiroideia e alterar o estadiamento T de T1 para carcinoma laríngeo avançado (T3 ou T4), alterando, consequentemente, as estratégias terapêuticas neste subgrupo de doentes. Assim, pode especular-se que os CG com envolvimento da CA apresentem um risco maior de subestadiamento e persistência tumoral face ao CG sem envolvimento da CA.
No entanto, a atual classificação daAmerican Joint Committee on Cancer(AJCC) eUnion for International Cancer Control(UICC) não determina a comissura anterior como fator de mau prognóstico, não aumentando o grau T se houver afeção da mesma. Na oitava edição desta classificação, são referenciadas 3 localizações distintas da glote para estadiamento TNM: cordas vocais, comissura anterior e comissura posterior. Apesar dessa subdivisão, a CA em nada influencia o grau T1. É considerado T1 quando o carcinoma glótico está limitado às cordas vocais com mobilidade preservada, sendo subdividido em T1a (limitado a uma corda vocal) e T1b (afeta, ambas as cordas vocais).
Assim, o objetivo deste trabalho é estabelecer se o envolvimento da comissura anterior é um fator de prognóstico no CG para recidiva durante o tempo de follow-up e para sobrevida a 5 anos.
Material e Métodos
Foi realizado um estudo de coorte retrospectivo através da revisão retrospetiva dos processos clínicos de doentes com diagnóstico de CG com estadiamento T1a e T1b num período de 12 anos (2010-2021). Recolheram-se dados demográficos e clínicos (idade, comorbilidades, fatores de risco, histologia, tipo de tratamento, período de follow-up, data de óbito - se aplicável). Foi definido o atingimento da comissura anterior com base no exame objetivo (videolaringoscopia) e/ou com base na Tomografia Computadorizada (TC) de pescoço ou pelo relatório anátomo-patológico. Foi documentada a presença ou ausência de recidiva no período de seguimento, bem como a sobrevida a 5 anos. Foram excluídos os casos cujos processos clínicos foram considerados incompletos pelos autores.
A análise estatística foi executada com o software SPSS26. As variáveis discretas são apresentadas como frequências e percentagens, e as variáveis contínuas são resumidas com média e desvio-padrão. Foi utilizado o teste qui-quadrado de Pearson para as variáveis categóricas. A análise de sobrevida foi realizada com recurso às curvas de Kaplan-Meier.
Foi realizada revisão da literatura existente na PubMed, com os MeSH terms “glottic carcinoma”; “anterior commissure”; “recurrence”; “survival rate”.
Resultados
De 188 doentes analisados com o diagnóstico de CG, 34 indivíduos cumpriram os critérios de inclusão de estadio I. A idade média dos doentes no momento do diagnóstico foi 64,2 anos (±10,2 anos). Trinta e dois doentes (94,1%) eram do sexo masculino e dois (5,9%) doentes do sexo feminino. Vinte e três doentes (67,6%) foram classificados como estadio T1a (10 casos com envolvimento da CA) e 11 (32,4%) doentes com estadio T1b (sete casos com envolvimento da CA). Vinte e seis doentes foram tratados com radioterapia e oito doentes foram tratados com microcirurgia transoral LASER (MTL), após decisão em reunião multidisciplinar. Ofollow-upmédio foi de 48 meses (mínimo 18 meses; máximo 72 meses). Relativamente ao diagnóstico anátomo-patológico, 33 doentes corresponderam histologicamente a carcinoma epidermóide (97,1%) e um doente a carcinoma verrucoso (2,9%).
Doze (35,3%) doentes tiveram recidiva da patologia tumoral. Destes, cinco eram casos T1a e sete eram casos T1b. O atingimento da comissura anterior associou-se a risco de recidiva para os casos T1b (p<0,05), mas o tempo livre de doença para os casos T1a não teve significância estatística (tabela 1). A mortalidade a cinco anos não teve diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos (figura 1).
Sumarizam-se os resultados na Tabela 1.
RESULTADOS | |||
---|---|---|---|
Recidiva | |||
Sexo | M | 32 (94,1%) | |
F | 2 (5,9%) | ||
Idade (anos) | 64,2 (±10,2) | ||
T1a | 23 (67,6%) | 5 (41,7%) | |
Com atingimento da CA | 10 (43,5%) | p=0,169 | |
Sem atingimento da CA | 13 (56,5%) | ||
T1b | 11 (32,4%) | 7 (58,3%) | |
Com atingimento da CA | 7 (63,6%) | p=0,045 | |
Sem atingimento da CA | 4 (36,4%) | ||
Histologia | |||
Carcinoma epidermóide | 33 (97,1%) | ||
Carcinoma verrucoso | 1 (2,9%) | ||
Tipo de tratamento | MTL | 8 (23,5%) | |
RT | 26 (76,5%) | ||
Follow-up médio (meses) | 48 (mínimo-18; máximo-72) |
Discussão
Actualmente, o CG em estadio I tem como principais modalidades de tratamento a microcirurgia transoral (LASER ou com instrumentos frios) e a radioterapia. Estas são modalidades com vista a preservar a laringe, pelo que a cartilagem tiroideia não é removida, o que torna impossível, a deteção de microinfiltrações tumorais ocultas desta cartilagem.
Tulli et al. (4) realçam, na sua meta-análise, a possibilidade de subestadiamento e persistência tumoral. Dadas as características anatómicas singulares desta localização laríngea já descritas, coloca-se o risco de subdosagem de radiação nesta localização glótica, pois encontra-se muito próxima da interface ar-tecido, levando menor cobertura da dose prescrita de radiação nesta localização. Assim, foi proposto por estes autores que o atingimento da CA nos tumores grau T1 fosse considerado um grau “micro-T3”, realçando assim um maior risco de persistência da doença.
Embora este trabalho tenha utilizado a variável binomial “sim/não” no envolvimento da CA, estudos recentes referem que esse envolvimento não é suficiente para determinar o valor prognóstico no CG, levando a resultados incongruentes6. Apesar de se saber que a afeção da CA no CG possa ter resultados negativos no outcome pelos motivos já expostos anteriormente, Hendriksma et. al. defendem que as inconsistências na literatura relativas a este tema se devem a uma pobre definição clínica da área da comissura anterior, pois admitem que seja uma área muito complexa para ser reduzida a uma variável binomial. Diversos autores propuseram uma classificação desta localização de acordo com a consideração do prognóstico da doença: Rucci et al. (7 propuseram 4 subdivisões para a CA no CG; já Piazza et al. (8 propuseram 6 subdivisões, descrevendo diferentes padrões de crescimento e de recorrência.
Não obstante, neste estudo o atingimento da CA foi definido pelos achados ao exame objetivo (videolaringoscopia) e de TC. A CA é uma localização glótica de difícil observação, de forma que frequentemente o seu atingimento por patologia tumoral só é possível de diagnosticar intra-operatoriamente, com recurso a microscopia óptica, usando endoscópicos com angulação de 30, 45 ou 70º, ou exercendo tração antero-posterior da cartilagem cricóide. Na observação laringoscópica, contudo, há estratégias que podem facilitar a visualização desta área, durante a laringoscopia flexível.
Salienta-se a técnica “dipping and rotating”, descrita por Fleisher et al. (9, que combina a manobra de dipping (permite ampliação da mucosa endolaríngea e região subglótica por aproximação, com recurso a inspiração transnasal prolongada) com a manobra de rotação (a ponta do endoscópio flexível é colocada na região interaritenoideia e avança na direção da glote, o que permite uma ampliação satisfatória da CA).
Como principal limitação deste trabalho aponta-se a amostra reduzida, com 34 casos de amostra total. Embora o CG curse com sintomas imediatos como disfonia, na nossa instituição a franca maioria dos CG surgem em estadio já mais avançado (>50% dos casos classificados como T3 ou T4). A consciencialização da população com recurso à educação para a saúde no âmbito dos fatores de risco para carcinoma da laringe é essencial para um diagnóstico precoce e prevenção desta patologia. Apesar desta limitação, o envolvimento da comissura anterior associou-se a recidiva durante o período de seguimento dos tumores T1b com significância estatística, pelo que os autores sugerem que se considere a comissura anterior no estadiamento T em tumores glóticos.
Conclusão
Neste estudo, o envolvimento da CA foi fator de mau prognóstico na taxa de controlo do tumor durante o período de seguimento dos doentes. Os autores levantam assim a hipótese de este ser um fator a ser considerado no estadiamento T em tumores glóticos.
Deste modo, sugere-se que o envolvimento da comissura anterior deve ser documentado e ativamente procurado. Estudos de maiores dimensões da amostra são necessários para confirmação dos resultados, para estabelecer se os CG T1a apresentam maior recidiva quando têm envolvimento da CA, e para determinar se há maior mortalidade no estadio I quando existe este envolvimento.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.