Introdução
A tuberculose, doença infeciosa causada pelo Mycobacterium tuberculosis, representa uma das 10 principais causas de morte em todo o Mundo. Até ao aparecimento da pandemia COVID19, era a primeira causa de morte atribuível a um agente infecioso isolado, acima do Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH). O diagnóstico e tratamento precoces desta patologia têm sido apontados como elementos essenciais na estratégia de erradicação da doença pela World Health Organization (WHO)1. Em Portugal a incidência tem vindo a diminuir, apresentando-se desde 2015 abaixo do limite definido como baixa incidência desta patologia (<20 casos/100 000 habitantes) (2.
A tuberculose extrapulmonar representa 30% dos casos de tuberculose em Portugal1, sendo a tuberculose ganglionar uma das formas de apresentação mais frequente2. A apresentação clínica indolente e assintomática na maioria dos casos, dificulta e atrasa muitas vezes o diagnóstico. Vários autores têm procurado definir o melhor plano de investigação, comparando métodos de diagnóstico e alertando para a demora na definição do mesmo3),(4. Propomos analisar retrospetivamente os casos diagnosticados com tuberculose ganglionar cervical no nosso serviço, de forma a estabelecer uma conduta de investigação diagnóstica mais célere e eficaz.
Material e Métodos
Estudo retrospetivo com consulta dos processos clínicos dos doentes com diagnóstico de tuberculose ganglionar, realizado no Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Garcia de Orta, entre janeiro de 2017 e dezembro de 2021. Durante este período, foram diagnosticados 7 casos cujo critério diagnóstico incluiu pelo menos dois de: 1) linfadenite granulomatosa no exame histológico; 2) deteção de M. tuberculosis no exame cultural, e/ou 3) identificação de M. tuberculosis no exame molecular (pesquisa de DNA por PCR). Foi recolhida informação relativa a: sexo, idade, naturalidade, história prévia ou activa de tuberculose pulmonar, características da massa cervical, sintomas acompanhantes e tempo de evolução para caracterização da amostra em estudo.
Foi realizada ainda uma pesquisa bibliográfica eletrónica no Pubmed utilizando as palavras “tuberculous” ou “tuberculosis”, “lymphadenitis” ou “lymph node enlargement”, “diagnosis”, “clinical pathway”, para revisão e suporte de proposta de protocolo de atuação em casos suspeitos desta patologia.
Resultados
A informação clínica dos 7 casos diagnosticados com tuberculose ganglionar no serviço de ORL do HGO entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021 encontra-se resumida nas tabelas 1 e 2. A idade dos pacientes variou entre os 20 e 61 anos, com uma preponderância do sexo feminino (6). Os doentes eram provenientes de diferentes países: Portugal (3), Brasil (2), Angola (1) e Cabo Verde (1). Na sua maioria não apresentavam história prévia ou ativa de tuberculose pulmonar. Esta verificou-se em apenas um caso, que apresentava concomitantemente um quadro de imunossupressão associado ao Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH). A clínica que motivou a avaliação ORL foi em todos os casos o aparecimento de adenopatias cervicais, na sua maioria múltiplas, unilaterais, pétreas, indolores e mais frequentemente envolvendo as áreas cervicais II, IV e V. O tempo de evolução do quadro clínico variou entre 2 e 12 meses até avaliação por ORL. Como sintomas acompanhantes, incluíram-se: suores noturnos, febre, cansaço fácil e perda ponderal.
C | S | I | País de origem | Antecedentes | Apresentação clínica ganglionar | Sintomas acompanhantes | Tempo de evolução (meses) | |||
Lateralidade | Dor | Área | ||||||||
1 | F | 38 | Brasil | Imunocompetente | Bilateral | Indolor | II e V | - | 3 | |
2 | F | 33 | Brasil | Imunocompetente | Unilateral | Indolor | II e V | Perda ponderal Cansaço fácil | 5 | |
3 | M | 35 | Portugal | VIH+; TB pulmonar | Unilateral | Indolor | II e V | Suores noturnos | 1 | |
4 | F | 20 | Portugal | Imunocompetente | Unilateral | Dolorosa | IV | Suores noturnos | 1 | |
5 | F | 61 | Cabo Verde | Imunocompetente | Unilateral | Indolor | II | Cansaço fácil | 12 | |
6 | F | 55 | Portugal | Imunocompetente | Unilateral | Indolor | IV | - | 4 | |
7 | F | 20 | Angola | Imunocompetente | Unilateral | Indolor | I e IV | Perda ponderal Febre | 2 |
Abreviações: C, caso; S, sexo; I, idade (anos); F, feminino; M, masculino
Para investigação da etiologia das massas cervicais foi obtida uma primeira amostra por citologia aspirativa com agulha fina (CAAF) em 6 casos, cujo resultado citológico não permitiu o esclarecimento diagnóstico, mas excluiu malignidade. Foi então realizada biópsia excisional de um dos gânglios cervicais, com posterior estudo histológico, cultural e molecular (pesquisa de ADN de M. tuberculosis). Os resultados histológicos variaram entre processo inflamatório crónico sem granulomas e linfadenite granulomatosa necrotizante. No exame cultural foi detetada a presença de micobactérias do complexo M. tuberculosis em apenas dois casos. O exame molecular, pesquisa de DNA de M. tuberculosis, foi positivo na grande maioria dos casos (6). Em nenhum dos casos foram detetadas resistências a rifampicina e isoniazida.
Todos os casos foram discutidos com a equipa de Infeciologia do HGO, notificados e referenciados para tratamento no Centro Diagnóstico Pneumológico (CDP) Almada-Seixal.
C | Citologia | Pesquisa de BAAR | Histologia | ADN-M-PCR | Cultura | Resistências |
1 | População linfoide heterogénea | - | Linfadenite granulomatosa necrotizante | + | - | - |
2 | Linfadenite granulomatosa sem necrose | - | Linfadenite granulomatosa necrotizante | + | - | - |
3 | NR | NR | Processo inflamatório crónico, sem granulomas | + | - | - |
4 | Sialoadenite aguda supurativa | - | Linfadenite granulomatosa necrotizante | + | + | - |
5 | Linfadenite necrotizante | - | Linfadenite granulomatosa com extensa necrose caseosa | + | - | - |
6 | Material insuficiente | - | Linfadenite granulomatosa necrotizante | + | NR | - |
7 | NR | - | Linfadenite granulomatosa necrotizante | - | + | - |
Abreviações: C, caso; +, positivo; -, negativo; NR, não realizado; BAAR, bacilos ácido-resistentes (por coloração Ziehl-Neelsen); ADN-M-PCR, Pesquisa de ADN de M. tuberculosis por PCR
Discussão
A tuberculose pode manifestar-se em diversas localizações da área de cabeça e pescoço, sendo a tuberculose ganglionar cervical a forma de apresentação mais frequente. Desta forma, o Otorrinolaringologista deve estar alerta para este diagnóstico diferencial quando avalia um doente com uma massa cervical.
A tuberculose pulmonar afeta predominantemente o sexo masculino, contudo vários estudos mostram que a tuberculose ganglionar (forma de TBE) parece ser mais prevalente no sexo feminino, o que se encontra de acordo com o verificado no nosso estudo5.
Dada a diminuição na incidência e mortalidade da doença em Portugal e a sua forma de apresentação semelhante a neoplasmas mais frequentes, este diagnóstico diferencial surge muitas vezes tardiamente6. Neste sentido, a proveniência de países de elevada incidência ou o contacto com familiares com suspeita de TB, deve elevar a suspeição desta patologia6. No nosso estudo cerca de 57% dos doentes eram provenientes de países de elevada incidência de tuberculose (Cabo Verde 39 casos/100 000 habitantes; Brasil: 45 casos/100 000 habitantes; Angola: 350 casos/100 000 habitantes) (1.
Tal como já descrito em outros trabalhos, a apresentação clínica de TG corresponde habitualmente ao aparecimento de adenopatias uni ou bilaterais, duras, indolores e de crescimento gradual, sem sintomatologia constitucional acompanhante (nos casos limitados) (2),(5),(7.
O método de conduta diagnóstica nestes casos varia entre estudos, existindo autores que realizam como 1ª linha a CAAF e outros biópsia excisional de gânglio cervical, de forma a obter amostra para estudo histológico, cultural e molecular8),(9. A CAAF é um método simples, rápido, pouco invasivo e de primeira abordagem de estudo de massa cervical3. O estudo citológico permite excluir malignidade e orientar no diagnóstico. No entanto, as amostras obtidas por CAAF são muitas vezes insuficientes para a realização de um exame cultural que estabeleça o diagnóstico de TG10, tal como verificado no nosso estudo. Em todos os casos foi necessária a realização de biópsia excisional de um gânglio cervical para obtenção de amostra significativa para posterior investigação. Por outro lado, a TG cervical encontra-se muitas vezes associada a formas paucibacilares da doença, dificultando o diagnóstico com amostras pouco representativas. Por esta razão, muitas vezes não é possível identificar BAAR em coloração Ziehl-Neelsen, tal como ocorreu em todos os casos do estudo4.
Posto isto, de forma a assegurar um diagnóstico mais rápido, em casos suspeitos de TG (proveniência de países com elevada incidência de tuberculose e/ou contacto com indivíduo infetado e/ou quadro de imunossupressão, com achados clínicos e imagiológicos sugestivos de TG), defendemos a realização de biópsia excisional, após exclusão de malignidade com CAAF. Acreditamos que assim, com uma amostra mais representativa, aumentaremos a probabilidade e celeridade de confirmação diagnóstica.
O diagnóstico definitivo baseia-se na identificação de micobactéria do complexo M. tuberculosis em cultura2. De facto, o exame cultural apresenta elevada especificidade, mas baixa sensibilidade e, principalmente demora no resultado (cerca de 4 a 6 semanas) (3. Esta demora na obtenção de resultado significa um atraso de mais de um mês no início do tratamento. No nosso estudo, a cultura mostrou-se negativa em 4 dos casos, suportando a baixa taxa de sensibilidade descrita em outros trabalhos. Estes falsos negativos podem ser atribuídos a bacilos não viáveis devido à colheita ou acondicionamento da amostra, a substâncias bacteriostáticas, a formas paucibacilares, a tratamento agressivo das amostras ou a falta de amostra representativa. Por seu lado, a pesquisa de ADN de micobactérias por PCR, apesar de mais dispendiosa, é a que apresenta resultado mais rápido (cerca de uma semana), com maior sensibilidade e especificidade, tendo permitido identificar M. tuberculosis em quase todos os casos do estudo.
Tendo em consideração tudo o acima citado, em suspeitos de TG cervical, após exclusão de malignidade por CAAF, propomos a realização de biópsia excisional com estudo histológico, cultural e molecular (pesquisa de ADN de micobactérias por PCR). A realização de biópsia excisional aliada à combinação de diferentes exames, poderá, assim, assegurar um diagnóstico e tratamento mais atempado. Na figura 1 apresentamos um fluxograma de atuação no esclarecimento diagnóstico desta patologia.
Abreviações: TG, tuberculose ganglionar; CAAF, citologia com agulha fina; ADN, ácido desoxirribonucleico; M. tuberculosis, Mycobacterium tuberculosis; PCR, polimerase chain reaction
Apesar do artigo se basear num estudo retrospetivo, descritivo, com uma amostra reduzida e sem análise estatística que sustente a proposta advogada, salienta a necessidade de mais estudos que suportem um protocolo de atuação célere e eficaz na definição diagnóstica. Em estudos futuros, com maior amostragem, seria ainda interessante analisar a necessidade de realização simultânea dos exames cultural e pesquisa de ADN de micobactérias por PCR para assegurar um diagnóstico definitivo e atempado. A avaliação do custo-benefício desta abordagem face à utilização isolada do exame com maior sensibilidade, a pesquisa de ADN de micobactérias por PCR, poderá ser outro tema de interesse.
Conclusão
A TG cervical é a forma de apresentação mais comum de tuberculose extra-pulmonar, a seguir à pleurite tuberculosa. A sua evolução indolente e muitas vezes desprovida de sintomas específicos, dificulta e atrasa o diagnóstico. Muitas vezes estes doentes são referenciados a diferentes áreas da Medicina antes de se estabelecer um diagnóstico definitivo.
Neste sentido, é fundamental a definição de protocolos de atuação e normas de orientação na investigação de casos suspeitos, de forma a obter um diagnóstico célere e, principalmente, um tratamento atempado.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.