Introdução
O carcinoma pavimento-celular (CPC) da via aerodigestiva superior está fortemente associado a hábitos tabágicos e alcoólicos. Nas últimas décadas, têm-se observado alterações na prevalência relativa da distribuição deste tipo de tumores, com um aumento do CPC da orofaringe e um declínio daqueles localizados na hipofaringe e laringe1. Esta alteração correlaciona-se com um declínio no consumo de álcool e tabaco, fatores de risco para CPC faringolaríngeos, assim como com a identificação da exposição aos papilomavírus humanos (HPV) de alto risco oncogénico, como fatores de risco para CPC da orofaringe1,2.
O tratamento do CPC da cabeça e pescoço em estadios precoces é geralmente unimodal, com recurso a cirurgia ou radioterapia (RT). Por outro lado, quando diagnosticado em estadios mais avançados, é mais frequentemente tratado de forma multimodal, através de cirurgia e RT ou quimiorradioterapia (QRT) adjuvantes1. O tratamento cirúrgico do CPC orofaríngeo, especialmente quando são necessárias ressecções extensas, pode associar-se a disfagia e/ou alterações da articulação da fala com impacto importante na qualidade de vida. Nas últimas décadas, o tratamento do CPC da orofaringe com recurso a QRT tem reduzido a necessidade de ressecções orofaríngeas e subsequente morbilidade associada a estes procedimentos3,4. Desta forma, o tratamento do CPC orofaríngeo com recurso a RT ou QRT substituiu a cirurgia como método preferencial para tratamento primário, em particular quando não é possível obter margens livres com baixa morbilidade, ficando esta última como opção para tratamento salvage3,5,6).
Apesar do tratamento conservador de órgão no CPC da orofaringe resultar em boas taxas de sobrevida e bons resultados funcionais, está associado a recidiva local ou regional em 9 a 20% e metastização à distância em 7 a 10%7,8. Apesar das limitações terapêuticas no caso de se observar recidiva à distância, quando esta ocorre a nível local ou regional, a cirurgia salvage é uma opção viável8. O esvaziamento ganglionar cervical nas recidivas regionais após RT ou QRT, é frequentemente uma opção eficaz neste tipo de doentes, com boas taxas de sobrevida3. Por outro lado, o recurso a cirurgia salvage para as recidivas locais é uma opção para apenas 20-30% dos doentes4).
As principais opções de tratamento salvage desta entidade são cirurgia, re-irradiação ou tratamentos paliativos4. A utilização da re-irradiação em doentes selecionados pode oferecer controlo local da doença prolongado ou até mesmo a cura. Apesar do referido, deve ser um tratamento cuidadosamente ponderado visto estar associado a morbimortalidade importante, nomeadamente xerostomia, ulcerações mucosas ou da pele, trismus, disfagia, mielopatia, osteoradionecrose ou síndrome da rutura da artéria carótida9. A cirurgia salvage para o CPC orofaríngeo é geralmente complicada por sequelas dos tratamentos prévios. Após a RT, os tecidos geralmente têm uma capacidade de cicatrização diminuída, podendo ainda observar-se recidivas multifocais no tecido irradiado, o que dificulta a ressecção total da doença. Após QT, o estado geral dos doentes é geralmente pior, o que faz com que a cirurgia salvage se associe mais frequentemente a complicações, internamento pós-operatório mais prolongado e maior probabilidade de disfunção pela remoção total ou parcial do órgão (disfagia e dispneia) 4. Apesar do referido, a cirurgia salvage surge como a única opção de cura com uma razoável sobrevida para alguns dos doentes, quando comparada com tratamentos alternativos4,10.
Sabe-se que o tratamento primário do CPC da orofaringe associado ao HPV está associado a um melhor prognóstico1,11. Apesar disso, até 25% dos doentes tratados com RT associada ou não a QT (RT±QT) acabam por ter recidiva da doença nos primeiros 5 anos após o tratamento11. Ao contrário do que se verifica para o tratamento primário, a relação com o HPV não parece afetar a eficácia do tratamento salvage do CPC da orofaringe3,11.
Os objetivos deste estudo são: avaliar, numa população com diagnóstico de CPC da orofaringe, a prevalência de persistência ou recidiva da doença após tratamento primário e comparar dados demográficos, clínicos e sobrevida global entre tratamentos salvage.
Material e Métodos
Foi desenvolvido um estudo observacional retrospetivo que incluiu doentes seguidos em consulta externa do Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil (IPO-LFG) entre 2006 e 2021.
De forma a selecionar o grupo de doentes incluído no estudo, foi feita uma pesquisa em base de dados do Serviço de Otorrinolaringologia do IPO-LGF, que inclui doentes seguidos na consulta externa por esta especialidade. Foram utilizados critérios de seleção dos doentes de forma sequencial: diagnóstico histológico de CPC da orofaringe, tratamento primário não cirúrgico e persistência ou recidiva da doença. Todos os doentes cumpriam os critérios de inclusão: diagnóstico de CPC da orofaringe através de biópsia, cuja histologia foi avaliada ou revista no IPO-LFG, entre 2006 e 2018; seguimento regular com documentação do exame objetivo otorrinolaringológico em consulta externa de otorrinolaringologia no IPO-LFG; persistência ou recidiva da doença confirmada por biopsia com avaliação anatomopatológica no IPO-LFG; follow up de pelo menos 60 meses. Foram inicialmente selecionados 160 doentes com diagnóstico de CPC da orofaringe, tratados primariamente com recurso a RT ou QRT e sem evidencia de tumor síncrono. Do grupo de doentes referido anteriormente, foram selecionados os 44 doentes em que se verificou persistência ou recidiva da doença, confirmada através de biopsia com avaliação anatomopatológica. Foram excluídos os doentes com tumores síncronos, com revisão de lâminas da biópsia no IPO-LFG com diagnóstico diferente de CPC, aqueles que recusaram o tratamento ou com perda de follow-up.
Quando foi observado surgimento da doença até seis meses após finalização do tratamento primário, foi considerada persistência tumoral (tumor residual). A recidiva tumoral foi considerada quando esta surge mais de seis meses após término do tratamento primário.
A decisão da modalidade de tratamento salvage para cada doente foi tomada numa reunião multidisciplinar com as especialidades de anatomopatologia, imagiologia, oncologia médica, otorrinolaringologia e radioterapia. Os doentes foram propostos para tratamento cirúrgico quando a doença foi considerada ressecável, e, na situação oposta à referida, foi oferecido tratamento com recurso a QT, com ou sem re-irradiação. A irressecabilidade da doença está geralmente associada ao estadio T4b (envolvimento dos músculos pterigoideus, da base do crânio, extensão às paredes laterais da nasofaringe ou encarceramento da artéria carótida interna), mas também, na doença cervical, à invasão direta da pele, estruturas mediastínicas, fáscia pré-vertebral ou vertebras cervicais e presença de metástases subdérmicas. Nenhuma destas situações representa uma contra-indicação absoluta à ressecção cirúrgica em doentes selecionados, nos quais se preveja obtenção de margens negativas 12.
A análise estatística foi efetuada com recurso ao software SPSS versão 26.0 (International Business Machines Corporation, EUA). Os resultados estão apresentados sob a forma de mediana (percentis 25-75). De forma a efetuar comparação entre grupos, foram utilizados os testes de Mann Whitney e de Fisher. O nível de significância estatística utilizado foi p<0,05.
Resultados
Foram inicialmente selecionados 160 doentes com o diagnóstico de CPC da orofaringe, submetidos a tratamento inicial não cirúrgico: QRT em 53,4% dos casos, a RT em 28,6% e QT de indução seguida de QRT em 18,0%. A dose mediana de radiação utilizada na RT foi de 69,96 Gy (69,9-70,0). Os dados demográficos, localização e estadiamento cT, cN e cM do tumor primário e tratamento primário utilizado da população de 160 doentes, encontram-se na tabela 1 12.
Tabela 1 Dados demográficos, localização e estadiamento cT, cN e cM do tumor primário e tratamento primário utilizado da população com diagnóstico de CPC da orofaringe de 160 doentes.

UMA unidade maço ano
Foi observada persistência ou recidiva da doença em 44 doentes, 27,5% da população inicialmente selecionada. Verificou-se persistência da doença em 17 doentes, com um tempo mediano até ao seu diagnóstico de 4,3 meses (3,6-5,5). Foi identificada recidiva da doença nos restantes 27 doentes, com um tempo mediano até ao diagnóstico da recidiva de 8,8 meses (6,9-12,9). Os desfechos clínicos dos 160 doentes encontram-se ilustrados na imagem 1.
Foi diagnosticada persistência ou recidiva do CPC orofaríngeo a nível local em 15/160 doentes (9,4%), a nível regional em 32/160 doentes (20,0%) e à distância em 5/160 doentes (3,1%). Foi feito o diagnóstico de persistência ou recidiva da doença de forma concomitante a nível local e regional em 4 doentes, local e à distância em 1 doente, regional e à distância em 1 doente e nas 3 localizações em 1 doente.

Imagem 1 Desfecho clínico dos doentes com diagnóstico de CPC da orofaringe, submetidos a tratamento primário conservador de órgão.
A população de 44 doentes com diagnóstico de persistência ou recidiva de CPC da orofaringe (27,5%) era constituída por 42 homens (95,5%) e 2 mulheres, com idade mediana de 59,0 anos (52,3-65,8). O tratamento primário escolhido foi de QRT em 47,7%, de RT em 25,0% e QT seguida de QRT em 27,3%. O estadiamento da doença persistente ou recidivante localmente (n=15) foi cT1 em 26,7%, cT2 em 13,2%, cT3 em 26,7% e cT4 em 33,4%. O estadiamento da doença persistente ou recidivante a nível regional (n=32) foi cN1 em 59,3%, cN2 em 28,2% e cN3 em 12,5%. O status p16 para a população de doentes com persistência ou recidiva da doença foi desconhecido em 61,4%, negativo em 25,0% e positivo em 13,6%. Os dados demográficos, localização do tumor primário e tratamento primário utilizado das populações com e sem persistência ou recidiva da doença, encontram-se na tabela 2.
Tabela2 Dados demográfico, localização do tumor primário e tratamento primário utilizado da população com e sem persistência ou recidiva da doença.
Não foram observadas diferenças estatisticamente significativas nos dados descritos entre população com e sem persistência ou recidiva da doença.
Dos 15 doentes em que se verificou persistência ou recidiva local da doença, 8 (53,3%) foram submetidos a cirurgia com intuito curativo. A localização do tumor e cirurgia efetuada encontram-se descritos na tabela 3. A sobrevida global desta população aos 3 e 5 anos foi de 50,0% e 25,0% respetivamente. Os restantes 7 doentes não foram considerados candidatos a tratamento curativo com recurso a cirurgia, uma vez que quatro destes doentes teriam doença localmente avançada, considerada com irressecável, dois doentes teriam concomitantemente recidiva da doença à distância e outro apresentava doença ganglionar irressecável. Pelo referido, este grupo de doentes foi proposto para tratamento paliativo com recurso a QT com ou sem re-irradiação. A sobrevida a 3 e 5 anos neste grupo foi de 0,0%. Nas figuras 2 e 3 é possível visualizar as curvas de sobrevida a 3 e 5 anos, respetivamente, dos doentes com persistência ou recidiva da doença a nível local, com a representação das curvas de sobrevida dos doentes submetidos a cirurgia e aqueles submetidos a QT com ou sem re-irradiação.
Tabela 3 Localização do tumor persistente ou recidivante a nível local e cirurgia efetuada no subgrupo de doentes com persistência ou recidiva da doença localmente, propostos para tratamento cirúrgico (n=8).
| Número de doentes (Total=8) | Localização do tumor | Cirurgia efetuada |
|---|---|---|
| 3 | Parede lateral da faringe | Faringectomia parcial |
| 2 | Amígdala | Bucofaringectomia transmandibular |
| 1 | Base da língua com extensão a hipofaringe | Glossectomia total + laringectomia total |
| 1 | Parede posterior da orofaringe | Faringectomia parcial |
| 1 | Espaço mastigador com invasão da mandibula | Hemimandibulectomia segmentar por via externa |
No grupo de doentes em que se verificou persistência ou recidiva regional da doença (n=32), foram propostos para cirurgia de esvaziamento ganglionar cervical 26 doentes (81,3%). A sobrevida global desta população aos 3 e 5 anos foi de 73,1% e 61,5%, respetivamente. Dentro do grupo dos restantes seis doentes, quatro deles foram estadiados com doença regional irressecável e os outros dois teriam concomitantemente doença à distância, pelo que não seriam candidatos a tratamento curativo com recurso a cirurgia. Pelo referido, este grupo de doentes foi proposto para tratamento com recurso a QT associada ou não a re-irradiação, com sobrevida a 3 e 5 anos de 0,0%. Nas figuras 4 e 5 é possível visualizar as curvas de sobrevida a 3 e 5 anos dos doentes com persistência ou recidiva da doença a nível regional, com a representação das curvas de sobrevida dos doentes submetidos a cirurgia e aqueles submetidos a QT associada ou não a re-irradiação.

Imagem 2 e 3 Sobrevida global a 3 e 5 anos, respetivamente, para os doentes com persistência ou recidiva da doença a nível local, de acordo com tratamento cirúrgico ou com recurso a QT associada ou não a RT.
Discussão
A recidiva ou persistência local do CPC da orofaringe após tratamento primário está associada a mortalidade, mas também a dor, obstrução da via aérea e disfagia, o que pode potencialmente reduzir forma muito significativa a qualidade de vida do doente 3. A cirurgia salvage para o tratamento do CPC da orofaringe persistente ou recidivante após tratamento primário com RT ou QRT, tem ganho uma maior importância dada utilização crescente de tratamento conservador de órgão neste tipo de doentes 3.
Omura G et al, descrevem persistência ou recidiva do CPC da orofaringe após RT ou QRT em 39 de 98 doentes (39,8%), 23,5% a nível local, 7,1% a nível regional e 9,2% à distância 3. Os resultados deste estudo são semelhantes aos encontrados por estes autores e outros, uma vez que foi determinada persistência ou recidiva da doença em 27,5%, 9,4% a nível local, 20,0% a nível regional e 3,1% à distância3,4.
O tratamento cirúrgico da doença persistente ou recidivante a nível regional é mais frequentemente exequível, quando comparada com persistência ou recidiva local, com níveis de sobrevida aceitáveis 3. Por outro lado, o tratamento cirúrgico da persistência ou recidiva local apresenta dificuldade acrescida, nomeadamente na obtenção de margens negativas, pela presença próxima de estruturas críticas, como a artéria carótida interna ou a base do crânio 3. O referido vai ao encontro dos resultados encontrados neste estudo, tendo-se objetivado doença ressecável em 53,3% das persistências ou recidivas locais versus 81,3% para as regionais. Adicionalmente observam-se sobrevidas globais a 3 e 5 anos após tratamento cirúrgico de 50,0% e 25,0% para as persistências ou recidivas locais versus 73,1% e 61,5% das regionais.
Vários autores descrevem sobrevidas globais a 3 e 5 anos de 42% e 21% após cirurgia salvage para persistência ou recidiva do CPC da orofaringe3,8,13. Neste trabalho as sobrevidas globais após cirurgia salvage para CPC da orofaringe a 3 e 5 anos foi de 50,0% e 25,0% respetivamente, o que vai ao encontro do que se encontra descrito na literatura3,8,13.
A cirurgia salvage está associada a um maior risco de complicações pós-operatórias, uma vez que a realização de RT prévia influencia a cicatrização da ferida cirúrgica, com um aumento do risco de deiscência ou infeção da mesma. Dado tratarem-se de doentes com potenciais sequelas do tratamento primário, mesmo que seja obtida uma resseção total do tumor orofaríngeo, pode verificar-se um sacrifício da função do órgão excisado parcial ou totalmente3,14,15. Desta forma, a utilidade da cirurgia salvage deve ser bem ponderada, especialmente quando se trata de persistência ou recidiva local, comparando benefícios versus riscos. Apesar de termos tentado incluir as complicações pós-operatórias da cirurgia salvage neste estudo, a não obtenção destes dados para a maioria da população limitou esta análise.
Neste estudo, observou-se uma sobrevida global a 3 e 5 anos superior na população submetida a cirurgia salvage para a doença persistente ou recidivante a nível local ou regional, quando comparada com tratamentos alternativos. Os tratamentos paliativos, como a re-irradiação ou QT sistémica, têm-se demonstrado limitados, com taxas de sobrevida baixas e alta toxicidade aguda e tardia3. Os regimes de QT podem ser utilizados com objetivos paliativos, uma vez que não estão habitualmente associados a cura completa ou controlo da doença a longo prazo 3. Vários autores consideram que a cirurgia salvage é a melhor estratégia terapêutica para o CPC da orofaringe persistente ou recidivante, se o tumor for ressecável, tratando-se do único tratamento com intuito curativo3,4,10.
Apesar de termos tentado incluir o p16 neste estudo, vários fatores limitaram a sua utilização, nomeadamente a não disponibilização deste resultado para a totalidade da população. Adicionalmente, a maioria da população apresenta hábitos tabágicos e ou alcoólicos significativos, o que limita a criação de dois grupos com fatores de risco distintos, e ainda o fato da maioria da população com recidiva da doença e com p16 conhecido, ser negativo. Sabe-se que as recidivas locorregionais ocorrem menos frequentemente em doentes com CPC da orofaringe p16 positivo, o que limita o número destes doentes que poderiam integrar estudos que avaliam o tratamento da persistência ou recidiva da doença p16 positiva. Sabe-se que o HPV tem um importante papel no prognóstico dos CPC da orofaringe quando se considera o tratamento primário, não parecendo ter o mesmo impacto prognóstico no tratamento salvage da doença persistente ou recidivante 3,11,16. Outra limitação importante deste estudo está relacionada com o baixo número da amostra, nomeadamente a população de doentes com recidiva/persistência da doença a nível local, submetidos a tratamento cirúrgico (n=8). Este grupo de doentes apresenta localização e estadiamento da doença diferentes, o que também influencia a sobrevida.
Conclusão
O prognóstico da persistência ou recidiva local do CPC da orofaringe após tratamento primário não cirúrgico é mau. A indicação para cirurgia salvage neste tipo de doentes deve ser cuidadosamente ponderada, devido à baixa sobrevida a que está associada, probabilidade de complicações pós-operatórias e eventuais comorbilidades subsequentes com potencial impacto na qualidade de vida. No entanto, esta modalidade terapêutica apresenta melhores resultados de sobrevida e deve ser realizada se o tumor é ressecável.















