Introdução
A presença de tecido tiroideu fora de sua posição anatómica normal denomina-se de tiroide ectópica e, quando presente na base da língua, denomina-se de tiroide lingual. Das localizações ectópicas o dorso da língua corresponde a 90% dos casos. Tecido tiroideu ectópico também foi descrito na laringe, traqueia, mediastino, pulmão, coração e glândula suprarrenal1-3. A presença de tecido tiroideu a nível lingual deve-se à ausência da sua migração a partir do foramen caecum para a localização pré-traqueal, que ocorre entre a 3a e a 7a semana de desenvolvimento fetal1,2. Localiza-se habitualmente entre as papilas circunvaladas e a epiglote, na região do foramen caecum4,5.
Estudos referem uma incidência de 1:1000 a 1:300 0001-3) na população geral e de 1:4000 a 1:8000 nos indivíduos com patologia tiroideia3. A relação sexo feminino/sexo masculino é de 4-7:11,2. Aproximadamente dois terços dos doentes não possuem tecido tiroideu pré traqueal6, sendo que esta constitui o único tecido tiroideu funcionante em 70 a 100% dos casos7. O potencial de malignização é o mesmo do tecido ortotópico8,9. A patogénese desta entidade permanece incerta; pensa-se que imunoglobulinas antitiroideias maternas impossibilitem o trajeto embrionário e predisponham ao hipotiroidismo10.
A maioria dos casos é assintomática11-16 a menos que ocorra um aumento no tamanho da glândula resultando em disfagia, disfonia, odinofagia, hemorragia e dispneia17. A investigação clínica meticulosa que inclui exame objetivo, bioquímica e imagiologia é necessária no delinear da melhor abordagem terapêutica14-15,18.
Caso clínico
Doente de 44 anos, sexo feminino, leucodérmica. Antecedentes de hipotiroidismo medicado com levotiroxina. Fumadora (30 UMA).
Recorreu ao serviço de urgência de Otorrinolaringologia (ORL) do Hospital Pedro Hispano (HPH) por quadro de febre, odinofagia, disfagia e otalgia direita com 2 dias de evolução, sem resposta a deflazacorte 30 mg 12/12h, paracetamol 1000 mg 8/8h e ibuprofeno 600 mg em SOS. A doente apresentava hot potato voice e a videolaringoscopia mostrava uma massa na base da língua, na linha média, acima da epiglote, com mucosa de aspeto normal (fig. 1 - A); edema, exsudado purulento e áreas de necrose na face lingual da epiglote, bandas ventriculares e aritenoides. Estase salivar importante (fig. 1 - B e C). A fenda glótica, apesar de reduzida, encontrava-se patente (fig. 1 - D). O estudo analítico revelou leucocitose com neutrofilia e PCR de 122,5 mg/dL. A pesquisa do SARS-CoV-2 foi negativa.
A tomografia computorizada (TC) cervical (fig. 2 - A, B e C) confirmou o diagnóstico de supraglotite, com edema laríngeo mais evidente na epiglote e pregas ariepiglóticas (seta vermelha). Mostrou ainda uma imagem nodular espontaneamente hiperdensa com captação de produto de contraste na base da língua, medindo aproximadamente 28 x 26 x 23 mm, compatível com tiroide lingual (seta branca). Na topografia habitual da tiroide existia apenas uma imagem nodular de pequenas dimensões à direita, 12 x 4 mm, traduzindo tecido tiroideu.
Foram colhidas hemoculturas e iniciada hidrocortisona 200 mg 12/12h e antibioterapia empírica com ceftriaxone 1 g 12/12h e clindamicina 600 mg 8/8h. Após melhoria sintomática e redução dos parâmetros inflamatórios, teve alta medicada com amoxicilina + ácido clavulânico 875 + 125 mg 12/12h e prednisolona em esquema de desmame.
Foi reavaliada em consulta externa, encontrando-se assintomática. Ao exame objetivo mantinha a massa localizada à face dorsal da língua, posterior às papilas circunvaladas. Laringe sem sinais inflamatórios.
O cintigrama com Tc99 realizado em ambulatório confirmou o diagnóstico de tiroide lingual, mostrando uma imagem nodular captante de maiores dimensões na orofaringe e uma de pequenas dimensões na área topográfica tiroideia, à direita (fig. 3).
Discussão
A tiroide lingual apresenta-se habitualmente como uma massa na base da língua, podendo atingir dimensões superiores a 4 cm. A sua superficie é habitualmente lisa e vascularizada1,2. Na maioria dos casos os doentes são assintomáticos, sendo a tiroide lingual diagnosticada acidentalmente na observação de rotina da orofaringe ou no contexto de uma infeção respiratória superior. Todavia, pode manifestar-se por hipotiroidismo sintomático ou, em massas de maiores dimensões com dispneia, disfonia, disfagia e hemorragia1,2. No caso descrito o diagnóstico foi fortuito, no contexto de uma infeção respiratória superior (supraglotite).
A idade de diagnóstico, descrita na literatura, situa-se após os 6 anos de idade, sendo a maioria dos casos diagnosticados durante a puberdade ou gravidez3,19. Pensa-se que tal seja justificado pelo aumento das necessidades fisiológicas de hormonas tiroideias durante estes períodos, que, por sua vez, conduz a um aumento das dimensões da glândula. A necessidade de aumento da produção de hormonas tiroideias também pode ocorrer em quadros infeciosos ou traumáticos.
Em 70-80 % dos casos o tecido tiroideu lingual é o único presente no organismo1-3. No caso apresentado, apesar de uma parte da glândula tiroide ter migrado para a sua localização cervical, permaneceu tecido tiroideu na base da língua que hipertrofiou em resposta a valores elevados de TSH.
A avaliação inicial dos doentes com suspeita de tiroide lingual inclui um exame objetivo ORL completo, com especial atenção à orofaringe, já que a tiroide lingual surge frequentemente como uma massa posterior ao “V” lingual20,21. A endoscopia rígida e/ou flexível permite a documentação do tamanho, posição e caraterísticas da lesão, permitindo ainda a observação da laringe e o despiste de outras lesões concomitantes1. A palpação cervical é importante na avaliação da presença ou ausência de tecido tiroideu cervical. Os doseamentos tiroideus em doentes não suplementados revelam hipotiroidismo em cerca de 70% dos casos, (14,22. Uma vez que a nossa doente já apresentava um hipotiroidismo previamente documentado e tratado, não foi obtido o doseamento das hormonas tiroideias. A tiroide lingual raramente cursa com hipertiroidismo e o potencial de malignização é baixo (1 em 300 casos) (17,22. Os tipos histológicos descritos incluem o carcinoma papilar (mais frequente), folicular, misto folicular-papilar, de células de Hurthel e medular17,23.
A imagiologia é essencial para a confirmação do diagnóstico. A cintigrafia com Tecnesium 99m pertechnetate ou 13I mostra habitualmente marcação ao nível da base da língua e ausência de marcação na topografia habitual. No nosso caso além da marcação lingual, a doente também apresentava marcação cervical. A TC constitui um método útil na determinação do tamanho da glândula1. A ecografia é um exame amplamente disponível e não invasivo que pode ser útil na avaliação da glândula tiroide e na deteção de tecido ectópico13. Quando realizada com Doppler, permite avaliar a vascularização dos tecidos. A ressonância magnética (RM) é um exame de eleição no planeamento cirúrgico, permitindo uma melhor avaliação do plano sagital que a TC. No caso reportado, a RM não foi requisitada uma vez que a tiroide lingual não condicionava qualquer tipo de sintomatologia e o tratamento cirúrgico não foi equacionado.
O diagnóstico diferencial da tiroide lingual inclui quistos do canal tiroglosso, quistos branquiais da linha média, linfomas, hemangiomas, angiomas, lipomas, fibromas, adenomas, lesões malignas e neoplasias das glândulas salivares minor24. A citologia aspirativa por agulha fina ajuda a confirmar o diagnostico em situações de dúvida11,17), (23. No caso reportado não foi necessária.
Relativamente ao tratamento não existe consenso devido à raridade desta patologia e ao limitado número de casos descritos. O tratamento depende do tamanho, da presença ou ausência de sintomas e/ou de complicações tais como hemorragia, malignização ou obstrução da via aérea. Os principais objetivos são diminuir os sintomas obstrutivos produzidos pela massa, não colocando a vida do doente em risco e não condicionando cicatrizes mutilantes. A base do tratamento médico assenta na terapêutica supressora com hormonas tiroideias exógenas. O objetivo é suprimir a produção de TSH, removendo o estímulo que provoca o aumento volumétrico do tecido ectópico1,21. Pensa-se que possa evitar a sua transformação maligna3. É esta a abordagem preconizada em doentes com sintomas ligeiros a moderados (sensação de corpo estranho e odinofagia) (9. Parece ser também, para grande parte dos autores, o tratamento indicado nos casos assintomáticos eutiroideus, de forma a prevenir o aparecimento de hipotiroidismo (que acabará por surgir na maioria e conduzirá inevitavelmente a hipertrofia glandular) (9,21. Contudo, a velocidade de redução do tamanho é muito lenta, não sendo de esperar diminuições importantes de volume9. No caso apresentado a doente encontrava-se assintomática sob terapêutica farmacológica com levotiroxina. Nos doentes sob tratamento farmacológico, segundo a literatura1, é necessária a reavaliação dos valores de hormonais tiroideus, idealmente a cada 3 meses, dando especial atenção aos períodos de maior stress metabólico (infeções, traumatismos...).
O tratamento cirúrgico é reservado para doentes com sintomas graves ou que sofrem agravamento de sintomas ligeiros a moderados sob tratamento farmacológico. É crucial nos casos de hemorragia recorrente ou importante, assim como nos doentes com disfagia, disfonia e dispneia9.
A ablação com iodo radioactivo 13 pode ser usada como alternativa à excisão cirúrgica. Está contraindicada em mulheres em idade fértil e crianças, sendo na maioria das vezes reservada para doentes idosos, que possuam contra-indicações para cirurgia ou que a recusem, sendo também necessária substituição hormonal para toda a vida após este tratamento9.
Conclusão
A tiroide lingual é uma entidade clínica rara que se apresenta como uma massa na base da língua, muitas das vezes diagnosticada de forma acidental. A investigação diagnóstica inclui o exame objetivo ORL, bioquímica tiroideia, imagiologia e histopatologia, sendo fundamental na escolha da melhor abordagem. Casos de tiroide lingual com sintomas ligeiros a moderados podem ser tratados de forma conservadora com levotiroxina. Em casos graves ou refratários à terapêutica médica, o tratamento cirúrgico ou ablativo deve ser considerado.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.