Introdução
A surdez súbita neuro-sensorial (SSNS) define-se como uma perda auditiva de pelo menos 30dB em três frequências consecutivas do audiograma tonal, que se instala em 72 horas ou menos1,2. Estima-se que a incidência seja entre 5-30 casos/100-000/ano3. Apesar de poder ocorrer em todas as idades, o pico de incidência é entre a quinta e sexta décadas de vida, com igual incidência nos homens e nas mulheres2,4,5. Entre 2-5% dos doentes têm envolvimento bilateral e tipicamente o envolvimento bilateral é sequencial2.
Os sintomas acompanhantes incluem acufeno (80-90%), vertigem (29-56%)2,4,6,7 e sensação de ouvido tapado (80%)8. Quando os sintomas são severos, podem associar-se a ansiedade, depressão e perturbações do sono9,10.
Apenas é possível identificar causa etiolóica para a SSNNS em 10% dos doentes11, sendo os restantes casos denominados “idiopáticos” (SSNSI) 2,4,12. O diagnóstico diferencial inclui causas infeciosas, traumáticas, vasculares, neoplásicas, autoimunes, metabólicas e neurológicas2,3. Na maioria dos casos onde é possível identificar a etiologia, a hipoacusia resulta do dano irreversível das células ciliadas2. Em resposta à mensagem auditiva incongruente, os centros auditórios corticais adaptam-se e remodelam o sinal transmitido, podendo esta neuroplasticidade levar à perceção de sons irreais (acufenos) 13.A maioria dos doentes com SSNSI recuperam espontaneamente a audição em algum grau (32-65%), nas duas primeiras semanas4. Quadros com evolução superior a 2-3 meses tornar-se-ão, muito provavelmente, permanentes2,4. Alguns fatores de prognóstico incluem a idade, grau de hipoacusia, frequências afetadas, presença de vertigem e a janela temporal entre o início dos sintomas e o início do tratamento2,3.
Diversos tratamentos já foram propostos e utilizados para esta patologia, incluindo vasodilatadores, expansores de plasma, corticóides, anti-coagulantes diuréticos e anti-virais. De momento, a corticoterapia sistémica ou intra-timpânica parece ser o mais recomendado2,3,9, parecendo reduzir a inflamação e edema no ouvido interno.
A Oxigenoterapia Hiperbárica (OHB) é uma terapêutica coadjuvante que consiste na administração de oxigénio a 100% em pressões superiores a 1 ATM. Apesar da utilização difundida, apresenta resultados controversos14-16, em parte explicados pela elevada variabilidade de critérios clínicos e protocolos aplicados. A OHB aumenta a pressão parcial de oxigénio e concentração de oxigénio no ouvido interno, melhorando a microvascularização e reduzindo o edema associado9,17. A OHB parece melhorar a hipoacusia após SSNSI, mas há muito pouca evidência sobre o benefício no acufeno associado16. A diminuição da qualidade de vida do doente na SSNS parece estar mais relacionada com a intensidade do acufeno do que com a perda auditiva em si18. Por conseguinte, é importante estabelecer qual o efeito da OHB no acufeno quando associado à SSNS, além do seu impacto na acuidade auditiva per se.
Este trabalho teve por objetivo avaliar o efeito da OHB na evolução dos acufenos e dos limiares auditivos em doentes com surdez neuro-sensorial súbita e acufeno associado, cujo tratamento com corticoterapia sistémica ou transtimpânica não resultou em melhoria significativa do quadro.
Métodos: Estudo prospetivo não controlado realizado entre Maio e Dezembro de 2018, no Centro de Medicina Subaquática e Hiperbárica da Marinha Portuguesa, incidindo sobre doentes com diagnóstico de Surdez Súbita refratária a terapêutica com corticoterapia sistémica e/ou transtimpânica, referenciados ao Centro. Todos os doentes tinham mais de 18 anos à data do estudo e assinaram consentimento informado.
Definiu-se como critério para tratamento (e consequentemente inclusão no estudo) a presença de hipoacusia igual ou superior a 30dB, em pelo menos três frequências contíguas, de aparecimento em menos de 72h. Na ausência de audiograma tonal prévio à surdez ou história de hipoacúsia assimétrica, admitiu-se como valor basal a Pure Tone Average (PTA - média dos limiares auditivos nas frequências de 500, 1k, 2k e 4k)) do ouvido contra-lateral. Em caso de cofose quantificou-se a PTA como 110 dB.
O protocolo de OHB incluiu em média 20 sessões a 2.5ATM durante 90 minutos. Após 10 sessões de tratamento foi realizada uma avaliação clínica e repetido audiograma.
Foram excluídos todos os doentes que não tenham completado o número proposto de tratamentos pelo médico (devido a intercorrências ou desistência pelo doente).
Para avaliação qualitativa do acufeno e do seu impacto na qualidade de vida do doente foi aplicado o Tinnitus Handicap Inventory (THI) antes e após o tratamento com OHB (questionário de avaliação qualitativa do impacto do acufeno na qualidade de vida do doente). Todos os doentes realizaram audiograma e timpanograma antes e após cumprimento do número proposto de tratamentos. A melhoria da acuidade auditiva foi classificada de acordo com a Classificação de Siegel19.
Grau de severidade dos acufenos | Caracterização |
Grau 1 (0-16) - Reduzido | Só percetível em ambientes sem ruído. Sem perturbações evidentes. |
Grau 2 (18-36) - Ligeiro | Facilmente mascarado pelo ruído ambiente e esquecido com as atividades diárias. Pode eventualmente interferir com o sono |
Grau 3 (38-56) - Moderado | Percetível até em ambientes com algum ruído. As tarefas diárias não são perturbadas, interferindo com o sono e com atividades em silêncio. |
Grau 4 (58-76) - Severo | Interferência com quase todas as atividades diárias, particularmente com as que decorrem em ambientes sossegados. |
Grau 5 (78-100) - Catastrófico | Todos os sintomas associados aos acufenos estão presentes, sendo de prever uma eventual presença de psicopatologia associada. |
Critérios de Classificação de Siegel19 | |
Melhoria Completa | PTA Final <25 dB |
Melhoria Parcial | Melhoria PTA >15 dB e PTA final entre 25-45dB |
Melhoria Ligeira | Melhoria PTA >15d B e PTA final >45 d B |
Ausência de Melhoria | Melhoria PTA < 15 dB |
A base de dados realizada incluiu dados demográficos e clínicos (género, idade, unilateralidade/bilateralidade e ouvido afetado), intervalo de tempo entre o início dos sintomas e início de oxigenoterapia hiperbárica, PTA inicial, PTA final, classificação THI inicial e classificação THI final.
O trabalho de análise estatística foi realizado com recurso ao software IBM SPSS Statistics 26. Definiu-se como nível de significância estatística p<0.05. Foram aplicados os testes de correlação de Pearson e teste t de Student.
Resultados:
Dos 57 doentes incluídos no estudo, 52 apresentavam Surdez Súbita Unilateral (91%) e 5 (8,8%) apresentavam Surdez Súbita Bilateral. Os participantes apresentavam idades entre 25-78 anos (média 51 anos), sendo 50,8% do sexo feminino e 49,2% do sexo masculino.
O intervalo de tempo entre o aparecimento de sintomas e início de OHB foi entre 7-103 dias (média de 34,9 dias). A relação inversa entre a janela temporal entre início de sintomas e tratamento (intervalo sintomas-tratamento) de OHB e melhoria da acuidade auditiva foi estatisticamente significativa (p=0,045). Foi também possível estabelecer relação inversa entre o intervalo sintomas-tratamento e a melhoria do THI, mas o valor não foi estatisticamente significativo (p=0,08). A melhoria audiométrica correlacionou-se positivamente com a melhoria do acufeno, mas o valor também não foi estatisticamente significativo (p=0,06).
Melhoria Audiométrica | Melhoria THI | Nº Dias entre Início Sintomas e Início OHB | ||
Melhoria Audiométrica | Correlação de Pearson | 1 | 0,064 | -0,267* |
Significância (p) | - | 0,638 | 0,045 | |
Melhoria THI | Correlação de Pearson | 0,064 | 1 | -0,086 |
Significância (p) | 0,638 | - | 0,527 | |
Nº Dias entre Início sintomas e Início OHB | Correlação de Pearson | -0,267* | -0,086 | 1 |
Significância (p) | 0,045 | 0,527 | - |
* A correlação é significativa ao nível 0,05 (2 extremidades).
Foi possível estabelecer uma relação inversa entre a idade dos doentes, a melhoria audiométrica e a melhoria do acufeno, mas o valor não foi estatisticamente significativo (p=0,256 para a melhoria audiométrica e p=0,193 para a melhoria do THI).
Melhoria Audiométrica | Melhoria THI | Idade | ||
Melhoria Audiométrica | Correlação de Pearson | 1 | 0,064 | -0,256 |
Significância (p) | - | 0,638 | 0,054 | |
Melhoria THI | Correlação de Pearson | 0,064 | 1 | -0,193 |
Significância (p) | 0,638 | - | 0,150 | |
Idade | Correlação de Pearson | -0,256 | -0,193 | 1 |
Significância (p) | 0,054 | 0,150 | - |
Verificaram-se recuperações de PTA (média dos limiares auditivos 500, 1k, 2k e 4k) entre 0 e 63 dB, com melhoria média de 17 dB (média da melhoria da PTA de todos os doentes incluídos no estudo). Segundo os critérios de recuperação auditiva de Spiegel, verificou-se melhoria completa em 19% dos doentes, melhoria parcial em 23%, melhoria ligeira em 33% e ausência de melhoria em 25% dos doentes. A gravidade da perda auditiva inicial não teve relação com a melhoria dos limiares auditivos.
PTA Inicial (dB) | Média da melhoria da PTA (dB) | Número de Doentes | Nº dias sintomas-OHB (média) |
20-40 (Hipoacúsia Ligeira) | 11,93 | 14 | 41,36 |
40-70 (Hipoacúsia Moderada) | 17,40 | 21 | 39,76 |
70-90 (Hipoacúsia Severa) | 14,75 | 15 | 31,2 |
90-110 (Hipoacúsia Profunda) | 24,28 | 7 | 32,39 |
A classificação média de THI antes de tratamento com OHB foi de 3,1 (audível mesmo na presença de barulho) e após OHB foi de 1,98 (facilmente mascarável e esquecido). A melhoria mais significativa verificou-se nos doentes que apresentavam acufenos de classificação THI grau 3 e grau 4. Não se conseguiu estabelecer relação estatisticamente significativa entre o grau de acufeno e grau de perda auditiva antes e após o tratamento. Verificou-se melhoria da severidade do acufeno mesmo em doentes sem melhoria audiométrica de acordo com a classificação de Spiegel.
Classificação THI | Pré-OHB | Pós-OHB |
Grau 1 - Reduzido | 10% | 40% |
Grau 2 - Ligeiro | 12% | 37% |
Grau 3 - Moderado | 39% | 12% |
Grau 4 - Severo | 32% | 5% |
Grau 5 - Catastrófico | 7% | 5% |
Discussão
Verificou-se uma melhoria significativa da classificação THI para a gravidade do acufeno, principalmente nos doentes com melhoria audiométrica completa, ainda que sem significância estatística (p=0,206). De uma forma geral, verificou-se melhoria do acufeno, independentemente da melhoria audiométrica. Estes resultados vão de encontro aos de alguns estudos anteriores, que parecem indicar haver um papel significativo da oxigenoterapia hiperbárica na melhoria do acufeno associado a surdez súbita neuro-sensorial14,16,22. Por outro lado, a história natural da surdez súbita neuro-sensorial muito raramente mostra recuperação espontânea após os 14 dias de evolução1,2,15,23, pelo que se considera improvável que houvesse uma melhoria tão significativa do acufeno e da PTA de forma espontânea neste intervalo de tempo (relembrando que todos os casos incluídos foram refractários a corticoterapia prévia). São necessários mais estudos que avaliem a evolução natural do acufeno na surdez súbita, por forma a poder avaliar a melhoria espontanea do acufeno ao longo do tempo, particularmente nos doentes sem melhoria auditiva.
A meta-análise mais recente sobre o tema, publicada em Janeiro de 202215, conclui que a OHB, como parte de tratamento combinado com a corticoterapia, aumenta a recuperação audiométrica em cerca de 15dB, sendo a mesma mais significativa nas frequências de 250, 500, 1000 e 4000, bem como em doentes com idade inferior a 50 anos2.
A melhoria média da acuidade auditiva foi de 17dB, o que está dentro dos intervalos descritos na literatura (12.9-50 dB2,22). Parece haver uma tendência na literatura para considerar que doentes com maior perda auditiva inicial (PTA maior) têm pior prognóstico e menor probabilidade de recuperação espontânea em termos audiométricos 2,15,22. Neste estudo, verificámos que doentes com PTA inicial >90 dB tinham melhoria média de cerca de 24 dB, o que apenas irá corresponder a uma melhoria ligeira segundo os critérios de Spiegel, mas em termos quantitativos corresponde a uma recuperação superior à de doentes com menor PTA inicial. Os doentes com maior perda auditiva apresentam pior prognóstico inicial e tendem, por este motivo, a ser referenciados mais precocemente para tratamento hiperbárico (ver tabela 5), o que pode traduzir-se num viés de seleção (poderão ter recuperado mais por terem sido referenciados mais cedo).
A incidência de surdez neuro-sensorial bilateral neste estudo foi de 8,8%, um valor cerca de duas a quatro vezes superior ao mencionado em estudos anteriores (2-5%)2. Tal pode dever-se ao facto de estes doentes serem especificamente referenciados ao nosso centro após falha terapêutica da corticoterapia e a SNSS bilateral ser um fator de pior prognóstico para recuperação espontânea ou melhoria com corticoterapia2. Assim, este aumento dever-se-á mais provavelmente a um viés de seleção do que a uma incidência de SNSS bilateral aumentada na população portuguesa. O intervalo de tempo entre o aparecimento de sintomas e início de OHB foi entre 7-103 dias (média de 34,9 dias), marcadamente superior a outros estudos publicados, que apresentavam tempo intervalo médio de 11.2-17 dias14,16. O intervalo de tempo entre sintomas e início de OHB foi o principal fator determinante na melhoria da acuidade auditiva, o que vai de encontro ao anteriormente publicado9,17.
A principal limitação deste trabalho prende-se com o facto de não ter incluído grupo de controlo, que permitiria tornar mais robusta a relação causal entre a melhoria do acufeno e a realização deste tratamento, sendo para isso necessários mais estudos.
Conclusão
A oxigenoterapia hiperbárica parece melhorar o acufeno, com impacto na qualidade de vida do doente, mesmo quando a melhoria audiométrica não é significativa. Permite também melhorar a acuidade auditiva na SNSSI refractária à corticoterapia, sendo os resultados mais significativos quanto menor o intervalo entre o início dos sintomas e o início do tratamento.