Introdução
A disfonia é um sintoma frequente na população pediátrica, afetando 6-23% das crianças. 1,2 É também um sintoma frequentemente desvalorizado, dada a etiologia geralmente benigna e o desafio que a avaliação diagnóstica e abordagem terapêutica corretas podem constituir nesta faixa etária.1-3 Ainda que a etiologia da disfonia pediátrica seja na sua maioria benigna, com os nódulos das cordas vocais (CV) a constituírem a causa de mais de metade dos casos, existem casos mais raros relacionados com patologias potencialmente mais graves, como a papilomatose laríngea recorrente, a paralisia das CV ou a presença de lesões neoplásicas, cuja exclusão é mandatória. 2,4,5 Por outro lado, tem sido demonstrado que a disfonia crónica apresenta um impacto significativo na qualidade de vida das crianças, com compromisso da sua comunicação e vivência escolar e social. 6 Assim, a disfonia pediátrica carece de uma abordagem atempada e dirigida ao diagnóstico etiológico correto, cuja definição tem de ter por base a visualização da laringe. 2,5 Atualmente, existem várias técnicas disponíveis para visualizar a laringe. Na população pediátrica avaliada em consulta de Voz do Hospital Dona Estefânia (HDE), esta visualização é geralmente conseguida através do uso de vídeolaringoscopia flexível, que pode ser realizada com endoscópios de fibra ótica ou com chip distal. Os endoscópios com chip distal fornecem imagens de alta resolução, tendo o potencial de melhorar a deteção e o diagnóstico de pequenas lesões das CV7,8. Scholman et al. demonstraram a superioridade deste tipo de endoscópio na identificação de laringes normais e de lesões laríngeas pré-malignas e malignas e na deteção de alterações da mucosa faringolaríngea, em avaliações de vídeos de laringes de adultos.7,8 Após revisão da literatura, não encontrámos qualquer estudo dedicado a comparar a utilização destes diferentes tipos de videolaringoscópios na população pediátrica. O presente trabalho tem como objetivos descrever a casuística da consulta de Voz do HDE e avaliar as diferenças nos diagnósticos realizados utilizando videolaringoscópio flexível de fibra ótica (FOL) e videolaringoscópio flexível com chip distal (DCL).
Material e Métodos
Realizou-se o estudo retrospetivo dos processos clínicos da coorte consecutiva de doentes avaliados em primeira consulta de Voz no HDE de setembro de 2018 a dezembro de 2021. Este intervalo temporal compreendeu os períodos de 20 meses anterior e posterior à disponibilidade de DCL. Foi obtida uma população de 85 casos, tendo sido excluídos 12 casos, 8 por não apresentarem disfonia (7 com alteração da linguagem e 1 com insuficiência velofaríngea) e 4 por disfonia aguda autolimitada presente à data de referenciação, mas já resolvida aquando da consulta. Foram revistos dados demográficos, a história clínica relativa à disfonia, comorbilidades, diagnósticos, tratamentos e laringoscopias dos casos incluídos. As consultas de seguimento não foram consideradas para obtenção de novos casos, mas foram utilizadas na recolha dos dados referidos.
Todas as consultas e laringoscopias foram realizadas pelo mesmo Otorrinolaringologista sénior. A vídeolaringoscopia com FOL foi realizada utilizando um nasofaringolaringoscópio flexível de fibra ótica com cabeça de câmara acoplada e diâmetro de 3.5 mm (Pentax, Corp Japan, Tokyo, Japan), sob iluminação com luz contínua. A videolaringoscopia com DCL foi realizada com nasofaringolaringoscópio flexível com diâmetro de 2.7 mm (XION GmbH, Berlin, Germany), sob iluminação com luz contínua seguida de luz estroboscópica. Todos os diagnósticos realizados e utilizados nas comparações do presente estudo foram estabelecidos aquando da observação sob luz contínua, não tendo sido alterados pelo exame posterior sob luz estroboscópica, nos casos em que este foi realizado. Estes procedimentos foram realizados sob anestesia tópica, com aplicação em cada fossa nasal de 1 ml de mistura de 1:1 de solução de oximetazolina a 0.25% e lidocaína a 1%.
A análise estatística dos dados foi realizada utilizando o software IBM SPSS® Statistics 25. As variáveis nominais são apresentadas em percentagem. A variável contínua (idade à data da primeira avaliação) é apresentada através da média ± desvio padrão, após confirmação da sua normalidade. As diferenças entre grupos foram exploradas utilizando tabelas de contingência e os testes Chi-quadrado ou exato de Fisher, no caso das variáveis nominais e conforme adequado, e utilizando o teste t de Student para amostras independentes no caso da variável contínua normal. A comparação de proporções dentro de variáveis dicotómicas foi realizada com recurso ao teste binomial. O nível de significância estatística considerado foi de 0.05.
Resultados
Foram identificados e incluídos 73 novos casos de disfonia crónica observados na consulta de Voz do HDE no período de estudo. A idade média (± desvio padrão) à data da primeira avaliação foi de 9.6 (± 3.7) anos, variando entre os 2 e os 20 anos. A maioria das crianças avaliadas tinham entre 6 e 11 anos (65.8%), seguindo-se as crianças com 12 ou mais anos (20.5%) e, finalmente, as crianças entre os 2 e os 5 anos (13.7%). A coorte de estudo incluía 53 crianças do sexo masculino (72.6%) e 20 do sexo feminino (27.4%).
Foi realizada vídeolaringoscopia em 78.1% dos casos, com definição dos seguintes diagnósticos: nódulos das CV (42.5%), refluxo faringolaríngeo (RFL) (12.3%), disfonia por tensão muscular (DTM) (9.6%), quisto das CV (2.7%), cordite (2.7%) e pólipo das CV (1.4%) (Gráfico 1).
Esta observação foi realizada com recurso a FOL em 49.3% dos casos e a DCL em 28.8% dos casos. O grupo avaliado com FOL não apresentou diferenças significativas em relação ao grupo avaliado com DCL, nomeadamente em relação às variáveis demográficas (p sexo = 0.352; p idade = 0.288), à existência de perfil comportamental fonotraumático (p = 0.435) e à presença de queixas nasais (p = 0.182) ou sugestivas de RFL (p = 0.248) (Tabela I).
FOL | DCL | ||
Sexo (%) | p = 0.352 | ||
Masculino | 75.0 | 66.7 | |
Feminino | 25.0 | 33.3 | |
Idade média 1ª avaliação (anos) | 9.57 | 10.57 | p = 0.288 |
Perfil comportamental fonotraumático (%) | 58.3 | 52.4 | p = 0.435 |
Sintomas nasais (%) | 20.0 | 35.0 | p = 0.182 |
Sintomas de RFL (%) | 17.1 | 28.6 | p = 0.248 |
FOL: videolaringoscópio flexível de fibra ótica;DCL: videolaringoscópio flexível com chip distal;RFL: refluxo faringolaríngeo.
A utilização de FOL associou-se a maior proporção de diagnósticos de nódulos das CV (FOL 58.3%; DCL 47.6%) e de laringoscopias classificadas como normais (FOL 11.1%; DCL 4.8%) e a menor proporção de diagnósticos de RFL (FOL 8.3%; DLC 28.6%), não tendo estas diferenças atingido significância estatística (p = 0.479) (Gráfico 2).
Foram referidos sintomas nasais em 26.0% dos casos e sintomas compatíveis com RFL em 20.5% dos casos. Foram identificados hábitos sugestivos de perfil comportamental fonotraumático em 57.5% dos casos. Não se observou uma relação significativa entre os diagnósticos estabelecidos e o sexo (p = 0.671), a presença de sintomas nasais (p = 0.096) ou a existência de perfil comportamental fonotraumático (p = 0.100). Verificou-se uma relação significativa entre a presença de queixas compatíveis com RFL e o estabelecimento deste diagnóstico (p < 0.001) (Gráfico 3).
A terapêutica mais comummente aplicada foi a terapia da fala (93.2%), seguida de inibidores da bomba de protões (21.9%).
Discussão
Entre Setembro de 2018 e Dezembro de 2021 foram avaliadas em primeira consulta de Voz do HDE 73 crianças com disfonia crónica objetivada aquando da observação clínica. A média das idades destas crianças foi de 9.6 anos, 65.8% tinham entre 6 e 12 anos e 72.6% eram do sexo masculino. Estas caraterísticas demográficas estão de acordo com o esperado dada a situação clínica em estudo e coincidem com o reportado noutras séries de crianças disfónicas, que descrevem idades médias de 9 e de 11 anos1,4, 64% de crianças com idade entre os 7 e os 12 anos5 e 62% a 70.1% de crianças do sexo masculino. 1,4,5
Todos os diagnósticos encontrados foram benignos, sendo o principal o de nódulos das CV (42.5%). Os nódulos das CV são reportados na literatura como a principal causa de disfonia pediátrica, sendo o diagnóstico etiológico em 40% a 57.6% dos casos descritos por outros autores. 1,4,5 O segundo diagnóstico mais frequente foi o de RFL (12.3%). Esta patologia tem sido definida como frequente em crianças com disfonia, constituindo o diagnóstico etiológico em 24% a 36% dos casos. 4,9 Uma revisão sistemática atual demonstrou a existência de uma forte relação entre o refluxo gastroesofágico ou faringolaríngeo e o desenvolvimento de disfonia na população pediátrica. 10
No presente trabalho, foi detetado um perfil comportamental fonotraumático em 57.5% dos casos, valor semelhante aos 54.7% reportados por outros autores.5 A presença de comportamentos fonotraumáticos, que incluem gritar ou falar alto, falar muito, sussurrar intensamente, fazer ataques glótico abruptos e efeitos sonoros (como, por exemplo, imitar personagens) e pigarrear, deve ser sistematicamente questionada ao doente e aos cuidadores, pois estará presença na maioria dos casos e constitui um campo indispensável de intervenção terapêutica. 11
A presença de patologia inflamatória com papel no desenvolvimento de disfonia deve também ser sistematicamente pesquisada. 4 Na presente série, estavam presentes sintomas nasais em 26% e de RFL em 20.5% dos casos, tendo existido uma associação significativa entre os sintomas e o diagnóstico de RFL. Martins et al. descreveram uma proporção superior de sintomas nasais (36.2%) e inferior de sintomas de RFL (3.6%).5 Dada a subjetividade inerente à descrição de sintomas, é de esperar alguma variabilidade nas proporções encontradas, já que estas podem variar não só com a valorização atribuída a estas queixas pelos doentes e seus cuidadores, mas também com a forma como o médico questiona a sua presença.
A realização de laringoscopia para determinar o diagnóstico em crianças com disfonia é considerada indispensável e exequível na maioria dos casos. 12 Foi realizada visualização da laringe em 78.1% das crianças da nossa amostra, utilizando laringoscópios flexíveis em todos os casos (49.3% FOL e 28.8% DCL). Um estudo comparando a exatidão diagnóstica da laringoscopia rígida e flexível, utilizando a laringoscopia direta como gold standard, demonstrou superioridade da primeira (64% versus 30%), mas apenas as laringoscopias rígidas haviam sido realizadas sob luz estroboscópica e todas as laringoscopias flexíveis utilizaram dispositivos de fibra ótica com cabeça de câmara acoplada e não com chip distal. 13 Embora a laringoscopia rígida seja descrita na literatura como associada à obtenção de imagens de elevada qualidade, com maior aumento e melhor iluminação, e como sendo possível em 85% das crianças com mais de 7 anos14, pode ser difícil de efetuar, dependendo da colaboração e tolerância de cada criança, e tendo em conta que esta população apresenta um reflexo faríngeo mais marcado e um tempo fonatório mais reduzido15. Na nossa experiência, a DCL fornece imagens de elevada qualidade e tem uma aceitação elevada por parte dos doentes e cuidadores, permitindo uma abordagem satisfatória das crianças com disfonia, pelo que a utilização de laringoscopia rígida na consulta não é uma prática comum no nosso centro.
No presente estudo, após exclusão de diferenças demográficas, comportamentais e clínicas entre as crianças avaliadas com recurso a DCL e FOL, observou-se uma tendência para a redução da proporção de nódulos das CV diagnosticados e de laringoscopias classificadas como normais, bem como para o aumento da proporção de RFL com a utilização de DCL, embora as diferenças descritas não tenham sido estatisticamente significativas. Estas variações podem ser atribuídas à resolução e qualidade superior das imagens obtidas com DCL7,8, não sendo encontradas irregularidades que poderiam corresponder a artefactos das imagens previamente obtidas e que eram valorizadas como nódulos das CV, dada a epidemiologia da população em estudo. 12 Por outro lado, os autores consideram que o aumento dos diagnósticos de RFL se relaciona com a obtenção de imagens de resolução e brilho superiores com DCL1,12, que permitem detetar pequenas alterações epiteliais e alterações pouco contrastantes, como diferenças subtis na coloração e rugosidade da mucosa faringolaríngea, e que podem passar despercebidas em imagens obtidas através de métodos óticos com resolução insuficiente. 7,8
Os diagnósticos realizados com recurso a DCL foram posteriormente confirmados por observação sob luz estroboscópica. Ramos et al. compararam os diagnósticos pré e pós utilização de estroboscopia laríngea e relataram uma redução na proporção de nódulos das CV diagnosticados de 54% para 33%, a par de um aumento do diagnóstico de quistos das CV de 13% para 32%, demonstrando o interesse desta técnica na distinção de lesões bilaterais de lesões unilaterais com alterações reativas da CV contralateral. 1,4,5,14 Embora tenhamos detetado também uma tendência à redução dos diagnósticos de nódulos das CV, não encontrámos esse aumento de lesões unilaterais, pelo que esta variação se pode dever a uma avaliação mais precisa da estrutura das CV, graças à resolução superior das imagens obtidas com DCL. 7,8
Este estudo apresenta como principal limitação o seu caráter retrospetivo, com eventual prejuízo da recolha, análise e comparação de informações e avaliações não uniformes. Contudo, consideramos que tal é mitigado pelo facto de todas as consultas e laringoscopias incluídas terem sido realizadas pelo mesmo Otorrinolaringologista sénior, segundo um protocolo predefinido, gerando consultas, observações e orientações mais uniformizadas. Embora algumas casuísticas de disfonia pediátrica incluam etiologias mais particulares, como papilomatose laríngea recorrente e paralisias da CV1,5, estas estão ausentes da presente série, apesar de serem patologias abordada com alguma frequência na nossa instituição. Tal deve-se ao seguimento destas crianças na consulta de Laringe do HDE, situação semelhante à descrita por Centeno e Penna 2019. 16 Os videolaringoscópios utilizados não diferiram apenas na tecnologia que empregada, mas, também, no seu diâmetro e nas opções de iluminação. O diâmetro inferior do DCL poderá ter contribuído para que o exame fosse mais bem tolerado, permitindo observações mais detalhadas e prolongadas, com eventual enviesamento das comparações dos diagnósticos realizados. A utilização sistemática de anestesia tópica poderá ter reduzido o eventual impacto desta disparidade. A diferença nas opções de iluminação não interferiu nas conclusões obtidas, uma vez que todos os diagnósticos foram realizados a partir de observações sob luz contínua e não foram alterados pela observação posterior sob luz estroboscópica, nos casos em que esta opção estava disponível. A existência de múltiplos diagnósticos etiológicos leva a que o número de crianças representativas de alguns deles seja reduzido, com impacto em termos de poder de associação estatística que pode justificar que alguns dados aqui descritos não tenham atingido significância estatística. Assim, estudos futuros com amostras de maiores dimensões e mais observadores são necessários para confirmar os achados relatados e estabelecer conclusões mais robustas.
Conclusão
Os doentes avaliados em consulta de Voz do HDE foram maioritariamente do sexo masculino e com idades entre os 6 e os 12 anos, sendo a principal causa de disfonia encontrada os nódulos das CV. Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os dois métodos de avaliação estudados, embora pareça existir, nesta população, uma associação entre a utilização de DCL e uma redução dos diagnósticos de nódulos das CV e de laringoscopias normais e um aumento dos diagnósticos de RFL.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesses relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que garantiram a confidencialidade na publicação dos dados dos pacientes.