Introdução
A apneia obstrutiva do sono (AOS) é o distúrbio do sono mais comum e caracteriza-se por episódios de obstrução recorrente parcial ou completa das vias aéreas superiores durante o sono, que condicionam episódios de apneia, hipopneia ou microdespertares relacionados com o esforço respiratório1. Os fatores de risco mais comummente identificados são a idade avançada, o género masculino, a obesidade e as dismorfias craniofaciais. A AOS é responsável pelo aparecimento de sintomas bem conhecidos como hipersonolência diurna, cefaleia, insónia, alterações de concentração, memória e do humor e, quando não é devidamente abordada e tratada, condiciona o aumento do risco de eventos adversos, como acidentes de viação, disfunção neuropsiquiátrica, morbilidade cérebro e cardiovascular, hipertensão pulmonar, diabetes tipo 2 e síndrome metabólico2,3.
A AOS ligeira é definida por um IAH entre 5 e 15 eventos/h e o seu tratamento só está preconizado na presença de SAOS (Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono) caracterizado por: IAH> 5 associado a sintomas como hipersonolência diurna com ESE>11 ou na presença de 2 ou mais sintomas entre: asfixias de repetição durante o sono, sensação de sono não reparador, despertares recorrentes durante o sono, cansaço e fadiga diurna, dificuldade de concentração. O tratamento da AOS está preconizado na apneia moderada (15<IAH<30) ou severa (IAH>30), mesmo sem sintomas, pelo aumento de risco cardiovascular3.
A primeira linha de tratamento da AOS moderada ou severa é a ventilação por pressão positiva contínua, administrada de várias formas (CPAP - continuous positive airway pressure, APAP - automatic positive airway pressure e BiPAP ou BPAP - bilevel positive airway pressure). Descrita pela primeira vez em 1981, demonstrou deter elevada eficácia na melhoria ou eliminação da hipoxemia e dos microdespertares consequentes4,5. No entanto, a taxa de adesão é frequentemente sub-ótima, variando entre os 40-85%, por motivos socio-demográficos e psicossociais, mas também pelos efeitos adversos associados a esta terapia, nomeadamente a congestão nasal e a secura das vias respiratórias, o que diminui a sua efetividade6,7. Estima-se que cerca de 8% dos utilizadores abandona o uso de CPAP na primeira noite e cerca de 50 % ao longo do primeiro ano e, mesmo com a implementação de medidas comportamentais, esta tendência tem-se mantido estável nos últimos anos8. Assim, outras opções de tratamento para doentes que recusam ou não toleram a terapia ventilatória devem ser consideradas numa perspetiva personalizada, de acordo com a natureza da obstrução e a preferência do doente9. São exemplos, a terapia posicional, os dispositivos de avanço mandibular e a cirurgia, não esquecendo o uso de medidas como a perda de peso e a evicção de bebidas alcoólicas ou fármacos que causem hipotonia muscular9,10. A cirurgia, geralmente multinível, pelo seu potencial curativo e elevada efetividade (uma vez que não depende da adesão do doente) tem um papel de destaque, sendo defendida como primeira linha de tratamento, em casos selecionados, por alguns autores11,12. Ainda neste contexto, a American Academy of Sleep Medicine (AASM) recomenda fortemente que seja debatido com o doente com AOS e índice de massa corporal < 40Kg/m2, intolerante ou não aderente ao CPAP, a sua referenciação a um cirurgião do sono10.
A seleção da(s) técnica(s) cirúrgica(s) deve ter em conta vários fatores, nomeadamente a presença de obstrução anatómica fixa ou dinâmica e a preservação da função fisiológica13.
A cirurgia nasal, contribuindo de uma forma comprovada para a diminuição da resistência das vias aéreas superiores, tem efeitos benéficos na melhoria da qualidade de vida e do sono, na adaptação ao CPAP e no outcome da cirurgia multinível, mas defende-se que não diminui o índice de apneia-hipopneia, pelo que não é recomendada como procedimento isolado no tratamento da AOS moderada a severa14-16. Alguns autores contrapõem, no entanto, que, em doentes devidamente selecionados, a cirurgia nasal isolada melhora o IAH, devendo ser considerada como opção no tratamento desta patologia17,18. O objetivo deste trabalho foi determinar a eficácia da cirurgia nasal isolada no tratamento da Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono.
Material e Métodos
Foram consultados os processos clínicos dos doentes com idade superior a 18 anos que realizaram consulta de Roncopatia e Apneia do Sono no hospital CUF Tejo entre 1.1.2018 e 30.8.2021 e triados os doentes com diagnóstico de Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono, que realizaram avaliação com estudo poligráfico do sono, DISE e TC de seios perinasais e faringe. Foram selecionados os doentes submetidos a cirurgia nasal, como procedimento isolado, com objetivo terapêutico e que realizaram estudo do sono de controlo após a mesma. Foram excluídos todos os doentes com dados incompletos, que realizaram múltiplas intervenções cirúrgicas (cirurgia multinível) ou que não realizaram estudo do sono de controlo. Foram selecionados um total de 15 doentes. Foram analisadas as seguintes variáveis, antes e depois da intervenção cirúrgica: índice de apneia-hipopneia (IAH), índice de dessaturação de oxigénio (ODI - oxygen desaturation index), saturação periférica de Oxigénio mínima (SpO2min), resultado da escala de sonolência de Epworth (ESE) e peso. Esta avaliação foi realizada num intervalo de 3 a 6 meses após a cirurgia.
Procedeu-se à análise estatística descritiva da amostra com recurso aoIBM SPSS Statistics 25 software. Considerou-se o nível usual de significância 5% (p<0,05).
Resultados
Dos quinze doentes incluídos no estudo, treze (86,6%) eram do género masculino e apenas dois (13,4%) do género feminino. A idade média foi de 47 anos (mínima de 35 e máxima de 69), com um desvio padrão (DP) de 8,19. À data do diagnóstico, o peso médio foi de 85,92 Kg, com um intervalo de confiança (IC) de 95% entre 80,47 e 91,37 kg (DP 2,47). O IAH médio foi de 17,58/h (IC 11,86-23,65) (DP 2,6). O ODI médio foi de 19,73/h (IC 15,27-24,19) (DP 2,02). A SpO2min foi de 80,33 % (IC 76,24-84,41) (DP 1,85). O valor médio da ESE foi de 8,75 (IC 6,31-19,50) (DP 1,10). A tabela 1 apresenta os dados relativos aos doentes antes da intervenção cirúrgica.
Variável | N (total = 15) |
---|---|
Masculino/ feminino | 13/2 |
Idade | 47 (min. 35- max. 69) (DP 8,19) |
Peso | 85,92 kg (DP 2,47) (IC 80,47-91,37) |
IAH | 17,58/h (DP 2,6) (IC 11,86-23,65) |
ODI | 19,73/h (DP 2,02) (IC 15,27-24,19) |
SpO2 mínima | 80,33 % (DP 1,85) (IC 76,24-84,41) |
ESE | 8,75 (DP 1,10) (IC 6,31-19,50) |
Quanto aos procedimentos cirúrgicos realizados, todos os doentes foram submetidos a septoplastia e turbinoplastia inferior. Em alguns doentes houve necessidade de associar outros procedimentos cirúrgicos nasais: num doente associou-se cirurgia da válvula nasal; em 3 doentes, cirurgia endoscópica endonasal (para polipectomia, meatotomia média e/ou etmoidectomia anterior); num outro doente associou-se rinoplastia.
Quando aplicados os testes de associação, verificou-se uma melhoria estatisticamente significativa entre o IAH médio antes e depois da cirurgia, passando de 17,58/h (DP 2,6) para 9,18/h (DP 2,4) (p=0,019), entre o ODI médio antes e depois da cirurgia, passando de 19,73/h (DP 2,02) para 8,3/h (DP 2,38) (p=0,008) e entre o resultado médio da ESE antes e depois da cirurgia, passando de 8,75 (DP 1,1) para 6,5 (DP 1,01) (p=0,015). Não se verificaram associações estatisticamente significativas entre a SpO2min antes da cirurgia - 80,33% (DP 1,85) e após - 85,22% (DP 1,56) (p=0,089) nem entre o peso antes da cirurgia - 85,92 kg e depois da cirurgia - 85,86 kg (p=0.862).
Na tabela 2 constam os resultados dos testes de associação entre os resultados das variáveis analisadas, antes e após a cirurgia.
Variável | Antes da Cirurgia | Após a Cirurgia | Valor p |
IAH | 17,58/h (DP 2,6) (IC 11,86-23,65) | 9,18/h (DP 2,4) (IC 3,83 - 14,53) | 0,019 |
ODI | 19,73/h (DP 2,02) (IC 15,27-24,19) | 8,3/h (DP 2,38) (IC 3,06- 13,55) | 0,008 |
SpO2 | 80,33 % (DP 1,85) (IC 76,24-84,41) | 85,22 % (DP 1,56) (IC 81,55-88,44) | 0,089 |
ESE | 8,75 (DP 1,10) (IC 6,31-19,50) | 6,50 (DP 1,01) (IC 4,26 -8,74) | 0,015 |
Peso | 85,92 kg (DP 2,47) (IC 80,47-91,37) | 85,86 kg (DP 2,42) (IC 80,53-91,20) | 0,862 |
Discussão
No presente estudo verificou-se uma melhoria estatisticamente significativa do IAH, do ODI e da sonolência diurna após a cirurgia nasal. Os mecanismos fisiológicos através dos quais a obstrução nasal pode condicionar ou contribuir para a AOS incluem o modelo de resistência de Starling, o desvio do fluxo inspiratório para uma via aérea oral colapsável, o bloqueio do reflexo respiratório nasal e a redução da produção de óxido nítrico19. Sabe-se também que a resistência total da via aérea se correlaciona com o esforço respiratório e que as fossas nasais representam mais de metade dessa resistência20. A redução do fluxo nasal está associada à redução da qualidade do sono, ao aumento da sonolência diurna e ao aumento do risco de roncopatia e AOS21. Paradoxalmente, a cirurgia nasal demonstrou ser eficaz na melhoria da adaptação ao CPAP, da qualidade de vida e da sonolência diurna, mas o seu efeito na redução do IAH é habitualmente desprezável21,22. No nosso estudo verificámos uma melhoria significativa da sonolência diurna, avaliada pela Escala de Sonolência de Epworth, associada a uma redução significativa do IAH.
Estes resultados foram também observados por Wu et al numa meta-análise, em que os autores analisaram 18 artigos, num total de 587 doentes submetidos a cirurgia nasal isolada, e verificaram uma melhoria significativa do IAH e da ESE17. A média de idades neste trabalho foi de 44 anos, 90,5% do género masculino, semelhante à população avaliada no presente estudo.
Presentemente, o IAH é considerado o parâmetro primário na avaliação da AOS, enquanto o ODI e a SpO2 mínima, medidas secundárias. Na nossa análise apurámos uma diminuição estatisticamente significativa do ODI antes e depois da cirurgia. Não encontrámos na literatura referência a este parâmetro para avaliação da eficácia da intervenção nasal nos doentes com AOS, mas consideramos importante esta redução, uma vez que reflete também uma redução da hipoxia intermitente, cujos efeitos nocivos (libertação de espécies reativas de oxigénio e de mediadores inflamatórios) contribuem para as co-morbilidades destes doentes23.
Não verificámos, contudo, associação entre a SpO2 mínima antes e depois da cirurgia. É de referir que estes valores eram baixos ab initio, com uma média de 80,33% (IC 76,24-84,41), o que nos leva a pensar em patologia do trato respiratório inferior não diagnosticada e/ou a presença de outras variáveis importantes não avaliadas, nomeadamente o tabagismo.
A relação entre a diminuição do peso corporal e a diminuição da gravidade da AOS está bem estabelecida24. No nosso trabalho, a associação entre o peso inicial e o peso após a intervenção cirúrgica também não foi estatisticamente significativa (p=0,862), o que torna pouco provável a variação do peso como fator causal das associações encontradas.
Assim, neste estudo, verificámos que a cirurgia nasal isolada foi eficaz no tratamento da AOS em alguns doentes, tendo permitido reduzir o IAH para valores inferiores a 5 eventos/h. Além disso, foi eficaz no tratamento do SAOS em todos os doentes, uma vez que todos ficaram com IAH inferior a 15 eventos/h e sem sintomas (avaliados pelos resultados da ESE), não requerendo, portanto, tratamentos complementares.
Apesar dos resultados promissores, realçamos que a larga maioria dos estudos sobre este tema reforçam que o papel da cirurgia nasal no tratamento da SAOS ou da AOS é limitado à melhoria da roncopatia, da adesão ao CPAP ou dos outcomes da cirurgia multinível. Friedman et al realizou um estudo semelhante ao nosso, mas prospetivo, com 50 doentes, para avaliar a melhoria da apneia do sono com cirurgia nasal isolada25. Este revelou uma melhoria subjetiva expectável dos sintomas nasais e hipersonolência diurna, não se tendo, contudo, registado melhoria estatisticamente significativa consistente no RDI (Índice de distúrbio respiratório). A melhoria na SpO2min dependeu da gravidade da AOS mas registou-se uma diminuição estatisticamente significativa nos níveis de pressão do CPAP para corrigir a AOS, reforçando o papel fundamental da cirurgia nasal no tratamento da AOS. Já numa meta-análise realizada por Ishii et al, que analisa 10 artigos, num total de 320 doentes, os autores demonstraram melhoria significativa no resultado da ESE, mas não no IAH26. Da mesma forma, noutra meta-analise realizada por Li et al (13 artigos, 474 doentes) os autores relatam também melhoria da roncopatia e da sonolência diurna após a cirurgia nasal isolada, mas não do IAH27.
Embora muitos dos estudos incluídos nas meta-análises citadas17,26,27 tenham um número limitado de participantes (cerca de 20 doentes), devemos referir o tamanho reduzido da nossa amostra como principal limitação do nosso trabalho. Conquanto tenhamos um número significativo de doentes submetidos a cirurgia nasal para tratamento da AOS/SAOS, nem todos se mostram disponíveis para realizar o estudo poligráfico do sono de controlo, seja por dificuldade de acesso ou por se sentirem melhor e o considerarem desnecessário.
Julgamos, porém, importante a divulgação deste estudo, uma vez que reforça o importante papel do Otorrinolaringologista na equipa do sono, como o profissional capaz de oferecer um leque diferenciado de opções terapêuticas, nomeadamente a cirurgia, bem como a importância de monitorizar o efeito do tratamento instituído. Segundo a AASM, a AOS deve ser abordada como uma doença crónica que requer uma vigilância multidisciplinar prolongada, devendo os doentes dispor de múltiplas opções de tratamento, consoante a sua gravidade, os fatores de risco, as condicionantes anatómicas e a preferência individual28.