Introdução
A traqueostomia é um dos procedimentos mais antigos da história da Medicina1. Embora tradicionalmente estivesse associada à especialidade de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço, o advento e difusão da traqueostomia percutânea (TP) como alternativa à traqueostomia cirúrgica (TC) trouxe um alargamento do espectro de especialidades que passaram a realizar este procedimento e, consequentemente, a prestar cuidados a doentes traqueostomizados2,3.
Previamente à pandemia por SARS-CoV2, havia já uma tendência clara de aumento do número de traqueostomias realizadas em todo o mundo, sobretudo à custa da TP3-5. Durante a pandemia, pelo elevado número de doentes a necessitar de entubação prolongada, verificou-se uma acentuação desta tendência 6,7.
As complicações associadas à traqueostomia encontram-se já devidamente descritas, sendo uma parte significativa destas devida a causas preveníveis2,8. Alguns autores defendem que estas complicações podem ser mitigadas através da formação adequada dos diversos profissionais de saúde que contactam com estes doentes 8. Na verdade, vários trabalhos previamente publicados revelaram que médicos de outras especialidades que não a Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço manifestam bastante desconforto na prestação cuidados a doentes traqueostomizados4,9,10.
Algumas destas inseguranças poderão ser explicadas por lacunas na sua formação durante o curso de medicina10,11).
Deste modo, com este trabalho, pretendemos avaliar o conhecimento que os médicos portugueses recém-formados possuem sobre traqueostomias e sobre a prestação de cuidados a doentes traqueostomizados.
Material e Métodos
Este estudo observacional transversal consistiu na aplicação de um questionário anónimo online a médicos que se encontravam a frequentar o Internato de Formação Geral (IFG) em Portugal no ano de 2022.
O questionário era composto por duas secções. A primeira pretendia colher informações sobre as características sociodemográficas dos participantes e avaliar o tipo de contacto que estes tiveram com traqueostomias quer durante o curso de Medicina, quer durante o Internato de Formação Geral. A segunda parte pretendia avaliar conhecimentos teóricos e práticos sobre traqueostomias através de 8 questões de escolha múltipla, algumas das quais em formato de vinhetas clínicas. Estas questões foram criadas de raiz e posteriormente validadas por 5 médicos especialistas de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Pedro Hispano.
O questionário foi partilhado sob a forma de um Google Forms por email com as Direções de Internato Médico de várias instituições hospitalares portuguesas, tendo sido solicitada a divulgação do mesmo junto dos seus médicos internos de formação geral.
Foram aceites todas as respostas submetidas entre os dias 1 e 30 de outubro de 2022.
A análise estatística dos resultados foi realizada com o software SPSS - versão 28 (SPSS inc., Chicago IL., USA). Para comparação de médias foram utilizados o teste t para amostras independentes e o One-Way ANOVA. O nível de significância considerado foi p=0,05.
Resultados
Neste trabalho foram analisadas as respostas de 132 participantes, a maioria dos quais eram do sexo feminino (n=95; 72,0%). A mediana de idades foi de 25 anos.
Obtivemos respostas de médicos formados em todas as faculdades de Medicina do país e também de 7 médicos formados no estrangeiro. De entre as faculdades portuguesas, aquela que surge mais representada na nossa amostra é a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, com um total de 29 respostas (22%) de médicos que completaram o seu curso nesta instituição. De seguida, surgem a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, cada uma com um total de 22 respostas (16,7%).
A maioria dos médicos que participaram neste trabalho completaram o curso de Medicina em 2021 (n=121, 91,7%).
Todos os participantes encontravam-se a realizar o IFG no ano de 2022. Obtivemos respostas de médicos a frequentar o IFG em todas as Administrações Regionais de Saúde (ARS) do país, tendo sido a ARS Norte a mais representada na nossa amostra (n=51; 38,6%).
Na tabela 1 encontram-se descritos detalhadamente os dados sociodemográficos dos participantes do nosso trabalho.
No que diz respeito à avaliação da formação sobre traqueostomias durante o curso de Medicina, 74,2% (98/132) dos participantes responderam “Não” à questão “Durante o curso de Medicina recebeu alguma formação sobre traqueostomias?”. Apenas 18,2% (24/132) dos médicos inquiridos responderam afirmativamente a esta questão, sendo que os restantes 7,6% (10/132) responderam “Não sabe/ Não responde” (figura 1).
De entre os que afirmaram ter recebido algum tipo de formação sobre traqueostomias durante o curso de Medicina, 79,2% (19/24) tiveram apenas formação teórica, 16,7% (4/24) receberam formação teórico-prática e apenas 1 (4,2%) teve unicamente formação prática.
Quando inquiridos sobre a Unidade Curricular (UC) na qual ocorreu a formação sobre traqueostomias, 41,7% (10/24) indicaram a UC de Otorrinolaringologia, 20,8% (5/24) responderam “Não sabe/ Não responde” e os restantes 37,5% (9/24) identificaram outras UC, das quais se destacaram a Medicina Intensiva e a Anestesiologia (figura 1).
Relativamente ao contacto com doentes traqueostomizados durante o IFG, 49,2% (65/132) dos participantes responderam ter tido esse mesmo contacto, tendo os restantes respondido negativamente. Na maioria dos casos, o contacto com os doentes traqueostomizados ocorreu em contexto de internamento (n=53; 81,5%), seguido da urgência (n=9; 13,8%) e da consulta externa (n=3; 4,6%).
No que concerne à avaliação de conhecimentos dos participantes do estudo sobre traqueostomias, a distribuição das respostas nas várias perguntas encontra-se disponível na figura 2.
A média de respostas certas foi de 4,60 (d.p.=1,283). Não foram encontradas diferenças significativas na média de respostas certas dos participantes que tiveram formação sobre traqueostomias durante o curso de Medicina e os que não tiveram formação (tabela 2). Também não houve diferença no número médio de respostas certas quando ajustado para o tipo de formação recebido (teórico apenas vs com algum componente prático).
Quando comparados os resultados dos médicos que tiveram contacto com doentes traqueostomizados durante o IFG com os resultados daqueles que não tiveram esse mesmo contacto, não se verificaram diferenças estatisticamente significativas no número médio de respostas certas (tabela 2).
A comparação da média de respostas certas dos participantes por faculdade onde completaram o curso de Medicina também não revelou diferenças estatisticamente significativas (p=0,383).
Discussão
Este trabalho, que contou com a participação de 132 médicos internos de formação geral, avalia pela primeira vez a formação recebida durante o curso de Medicina e os conhecimentos sobre traqueostomias dos médicos recém-formados.
Apesar do número de respostas obtidas corresponder a cerca de 5,5% do número total de médicos internos de formação geral no ano de 2022, neste estudo pudemos contar com médicos a frequentar o IFG em instituições de todas as ARS do país e oriundos de todas as faculdades de Medicina portuguesas e até de algumas estrangeiras. Tal como esperado, a esmagadora maioria dos inquiridos terminou o curso de Medicina em 2021.
A maioria dos médicos inquiridos (74,2%) referiu não ter recebido qualquer formação sobre traqueostomias durante o curso de Medicina. De entre aqueles que tiveram a referida formação, em apenas 41,7% dos casos esta foi da responsabilidade da Otorrinolaringologia. Os conhecimentos transmitidos foram principalmente teóricos (79,2%).
Embora se refiram a uma realidade formativa relativamente diferente da portuguesa, em 2016, Tokarz et al. obtiveram resultados semelhantes numa amostra de médicos internos dos Estados Unidos da América, onde 86% dos participantes daquele estudo referiam ausência prévia de formação sobre traqueostomias durante o curso 9). Várias outras publicações de autores americanos apontam para resultados similares indicando como uma das possíveis causas para este fenómeno, a exposição limitada dos estudantes de medicina à Otorrinolaringologia durante a sua formação pré-graduada 10,12).
Os nossos resultados demonstram, assim, uma realidade preocupante, apontando para uma possível lacuna na formação médica em Portugal. O facto da TP ter passado a envolver outras especialidades na realização de traqueostomias e na prestação de cuidados a doentes traqueostomizados pode ter contribuído para que estes temas possam ter ficado esquecidos entre os programas formativos das unidades curriculares ao cargo destas várias especialidades. Contudo, pelo papel histórico e pela experiência acumulada, a Otorrinolaringologia tem uma responsabilidade acrescida no ensino destes temas aos estudantes de medicina.
Uma percentagem significativa dos médicos inquiridos (49,2%) afirmou ter contactado com doentes traqueostomizados durante o IFG, tendo sido o internamento o local onde mais frequentemente tiveram de prestar cuidados a estes doentes.
Os nossos resultados vêm reforçar que o contacto com doentes traqueostomizados é uma realidade frequente e transversal a várias especialidades11. De facto, em apenas 10 meses, quase metade dos participantes já havia prestado cuidados a estes doentes, sendo que a otorrinolaringologia não faz parte das rotações do IFG.
A avaliação de conhecimentos sobre traqueostomias foi feita a partir de 8 questões de escolha múltipla especialmente elaboradas para o efeito. A média de respostas certas foi de apenas 4,60, o que corresponde a pouco mais de metade do número total de respostas.
Estes resultados sugerem que os médicos recém-formados apresentam dificuldades e falta de conhecimento relativamente a estes temas. De forma semelhante, vários trabalhos previamente publicados descrevem défices significativos no que diz respeito a conhecimentos sobre traqueostomias em médicos internos americanos5,11,13).
Contrariamente ao que seria expectável, não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os resultados dos participantes que receberam formação neste tema durante o curso e aqueles que não receberam. Estes resultados poderão sugerir uma de duas hipóteses. Por um lado, as questões colocadas poderão não ter sido sensíveis o suficiente para permitir a distinção entre estes dois grupos de participantes. De facto, a falta de um instrumento validado que permita avaliar este tipo de conhecimentos é uma das limitações deste trabalho. No entanto, procurámos ultrapassá-la ao fazer passar este questionário por um processo de validação cuidadosa por 5 especialistas de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Pedro Hispano. Por outro lado, esta ausência de diferenças poderá sugerir que a formação dada durante o curso de medicina terá sido insuficiente e pouco eficaz na transmissão de conhecimentos básicos e essenciais relativamente a este tema.
A ausência de diferenças de resultados entre os médicos que contactaram e os que não contactaram com doentes traqueostomizados durante o IFG era, de certa forma, previsível, tendo em conta o tempo reduzido destes contactos.
Médicos das mais diversas especialidades podem, então, deparar-se e ter que prestar cuidados de saúde a doentes traqueostomizados nos mais variados contextos11. Dados do UK National Confidential Enquiry into Patients Outcomes and Death revelaram que existe mortalidade e morbilidade significativa nos doentes traqueostomizados devido a erros e complicações preveníveis14. Parte da solução para este problema passará pela formação e capacitação dos profissionais de saúde que lidam com estes doentes, nos quais se incluem os médicos8. Desta forma, com o intuito de melhorar os cuidados prestados a estes doentes e de tornar os médicos mais capazes e confortáveis nessas tarefas, será importante reforçar a formação sobre estes temas no ensino médico pré-graduado, devendo, na nossa opinião, a Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço liderar esse processo.
Conclusão
O doente traqueostomizado pode representar um verdadeiro desafio para os profissionais de saúde, nomeadamente para os médicos.
Para uma melhor prestação de cuidados de saúde a estes doentes é necessário possuir um conjunto de conhecimentos que deverão ser transmitidos logo a partir da faculdade.
Os médicos portugueses recém-formados parecem apresentar falhas nos conhecimentos sobre traqueostomias que se poderão dever, em parte, a uma deficiente formação sobre este tema durante o curso de medicina.
A Otorrinolaringologia tem a responsabilidade de promover junto dos estudantes de medicina uma formação mais ajustada e de melhor qualidade sobre traqueostomias.
Agradecimentos
Os autores gostariam de agradecer a todos os médicos internos de formação geral que participaram no trabalho. Gostaríamos também de agradecer os colegas do serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Pedro Hispano que colaboraram na validação do questionário.