Introdução
A evolução do paradigma da saúde para uma perspetiva biopsicossocial foi acompanhada do desenvolvimento de uma base conceptual para a definição e mensuração do estado de saúde e sua universalização - Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS). O resultado da intervenção, ou seja, o «outcome», deixou de ser apenas avaliado pela mudança no estado físico - como tradicionalmente através de índices baseados em medidas fisiológicas e de capacidade funcional -, para incluir a perceção do indivíduo sobre a sua saúde relacionada com a funcionalidade e/ou com a qualidade de vida. Nesse sentido foram criados os patient reported outcome measurements (PROMs) e Proxys (preenchimento pelos cuidadores) uma medida subjetiva e individualizada diferente dos instrumentos de avaliação clínica.
Uma das primeiras tentativas de criação de um PROM na área da voz deu-se nos anos 80 para medir a perceção da qualidade de vida de pacientes com cancro laríngeo1. Nos anos 90 surgiram mais quatro PROMS na área da voz entre os quais o Voice Handicap Index (VHI) (1, e posteriormente, a partir do século XXI, verificou-se um aumento exponencial. Numa revisão sistemática da literatura, em língua inglesa, foram identificados 67 PROMs e Proxys na área da voz no adulto, sendo que o VHI com 30 itens (VHI-30) foi considerado o mais promissor tendo como critério a taxonomia COnsensus-based Standards for the selection of health Measurement INstruments (COSMIN) (2.
O VHI, questionário fechado com 30 frases, tem três domínios (funcionalidade física, emocional e funcional), cada um com 10 itens1. Para cada frase o paciente tem de assinalar o nível de concordância através de uma escala de tipo Likert de 5 pontos. O total permite determinar um índice de desvantagem vocal (máximo possível de 120 pontos para pior desvantagem). Inclui ainda uma pergunta sobre a perceção global da voz classificada numa escala de quatro pontos. É um dos PROMs na área da voz, com adaptação linguístico-cultural em mais de 25 línguas diferentes incluindo o português europeu (PE) (1,3.
Com base no pressuposto de que um questionário mais curto é mais viável na prática clínica, porque os pacientes são sujeitos a várias avaliações, foi desenvolvida a versão reduzida com 10 frases selecionados das 30 do VHI4. O VHI-10 original mostrou ter a mesma robustez que o VHI para detetar diferenças numa ampla gama de perturbações da voz4. Posteriormente, foram publicadas versões reduzidas como o VHI-9i e adaptações - pediátrico (pVHI) e cantores (SVHI) (5-7.
Dada a forte divulgação e utilização do VHI a nível internacional, e a sua expansão para versões reduzidas e adaptadas, compreende-se a pertinência da identificação das versões utilizadas em PE, dos processos utilizados na adaptação linguístico-cultural, a sua validação e utilidade clínica e científica. Assim, os objetivos do presente estudo sobre o VHI em PE são: (i) Identificar as versões em uso; (ii) Analisar os processos utilizados na adaptação linguístico-cultural; (ii) Verificar as propriedades clinimétricas e, (iii) Determinar a utilidade clínica e científica.
Material e Métodos
Estratégia de pesquisa
Foi efetuada uma pesquisa nas bases de dados Pubmed, SciElo Portugal, Index das Revista Médicas Portuguesas (IndexRMP) e Repositórios Científicos de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP). Foram utilizados descritores em inglês, com ligação através de operadores booleanos. No IndexRMP e RCAAP incluíram-se os descritores em português (impacto da voz) AND (autoavaliação), e também a pesquisa pelos nomes dos autores portugueses dos documentos identificados. Posteriormente identificaram-se os artigos sobre a temática «voz» nos arquivos da Revista Portuguesa da Sociedade de Otorrinolaringologia e da Revista Portuguesa de Terapia da Fala e os instrumentos de voz no Repositório de Instrumentos de Medição e Avaliação em Saúde (RIMAS) do Centro de Estudos e Investigação em Saúde (CEISUC). A pesquisa foi realizada em novembro de 2022 e não foi definido intervalo temporal para a mesma.
Critério de elegibilidade
Na seleção dos PROMs, consideraram-se apenas estudos com população portuguesa publicados em revistas com arbitragem científica nacional ou internacional, teses de doutoramento e dissertações de mestrado.
Seleção da informação
As autoras realizaram a pesquisa, de forma independente, através do título seguindo-se a comparação dos artigos selecionados com eliminação dos repetidos. De seguida, procederam à leitura dos resumos, excluindo os documentos que não cumpriam os critérios pré-definidos. Realizaram também a leitura da lista das referências bibliográficas dos documentos selecionados para deteção de mais informação.
Análise de dados
As propriedades clinimétricas foram analisadas seguindo as recomendações da COSMIN (Quadro 1).
Para a análise da utilidade clínica e científica usaram-se as recomendações internacionais, e.g., COSMIN2: (1) Recomendado - evidência das 10 propriedades recomendadas (cumprindo a maioria dos critérios) e existência de estudos de aplicabilidade por autores diferentes da adaptação em PE, em publicações periódicas com arbitragem científica; (2) Recomendado com restrições - evidência das 9 propriedades clinimétricas de fidedignidade e validade (cumprindo os critérios) e os restantes critérios descritos no ponto 1; (3) Potencialmente recomendado - Ausência e/ou falhas graves na adaptação linguístico-cultural e nas propriedades clinimétricas, e ausência de estudos de aplicabilidade por autores diferentes da adaptação em PE, em publicações periódicas com arbitragem científica.
Resultados
Dos 73 potenciais documentos foram apenas elegíveis 14 artigos, 6 dissertações de mestrado e 4 teses de doutoramento (Figura 1). Do total, 12 (50%) são estudos sobre adaptação linguístico-cultural e/ou validação de instrumentos e os restantes são estudos com aplicação dos instrumentos.
Versões do VHI em PE
Foram identificadas cinco versões - VHI, VHI-9i, VHI-10, pVHI e SVHI3,5,8-12.
O VHI cumpre o original - instruções, número de itens e domínios, escala de 5 pontos e pergunta final sobre a perceção global da gravidade da voz com escala de 4 pontos3. Permite a pontuação total e por subescala porque foi confirmada a estrutura com três domínios na versão em PE13. A primeira adaptação foi realizada de acordo com as orientações de 1998 para instrumentos em saúde e posteriormente analisada por peritos (terapeutas da fala) e as suas frases reformuladas com o parecer de um professor doutor de língua inglesa, bilingue (inglês-português) (14-15. É o PROM mais divulgado, 7 artigos internacionais, 4 artigos nacionais, 5 teses e uma dissertação3,5);(8,10-23.
O VHI-9i (a letra i corresponde à abreviatura de internacional) foi desenvolvida num estudo internacional com 1,052 pessoas com disfonia (121 portugueses) e os itens selecionados correspondem aos com a melhor equivalência entre as oito versões de línguas diferentes e o original5. A pontuação possível é apenas do total (36 para pior desvantagem). Foram apenas identificados estudos académicos de mestrado24-25.
No VHI-10, as 10 frases em PE são as correspondentes à versão original com posterior apreciação por peritos4,8. Cumpre o formato do original VHI, mas não apresenta a pergunta final sobre a perceção global da voz.
O pVHI mantém o formato do original - instruções, frase para avaliação do tipo de fala, questionário com 23 frases (funcional - 7; físico- 9 e emocional-7) e escala de 5 pontos. Resulta numa pontuação total máxima possível de 92 para pior desvantagem. Contempla uma pergunta final sobre a perceção global da gravidade do problema de voz com escala visual análoga (EVA) de 100 milímetros (ancorada por zero-sem problema e 10 problema grave) (6,9. Não foram identificados estudos de aplicabilidade por autores diferentes do original da adaptação ao PE9(,) embora o processo de validação tenha sido realizado posteriormente por outros autores10.
O SVHI cumpre o formato original, mas não apresenta a frase final de perceção global da gravidade dos problemas de voz no canto avaliado com EVA de 100 milímetros como no original, mas foi utilizada no estudo da validade convergente) (7,11-12. O questionário é composto por 36 frases, quatro domínios e escala de 5 pontos com um total máximo possível de 144 para pior desvantagem. Não foram identificados estudos de aplicabilidade por autores diferentes dos responsáveis pela versão em PE.
Propriedades clinimétricas das versões do VHI em PE
O VHI tem a melhor representatividade da população-alvo, de outras populações e o maior número de estudos de aplicabilidade em pessoa com voz saudável, voz profissional falada e cantada (Quadro 2). Os estudos de validação e de aplicabilidade contribuíram para a informação sobre as 10 propriedades psicométricas, mostrando cumprimento da maioria dos critérios propostos pela COSMIN e é o único instrumento com equivalência a versões adaptadas em outras línguas e ao original13 (Quadro 2).
O VHI-9i tem evidência de 7 das propriedades clinimétricas numa população alvo superior a 100, atingindo o critério recomendado (≥ 0.70), mas não existem informações sobre a sua reprodutibilidade (Quadro 3).
O VHI-10 tem apenas um estudo de validação numa amostra não representativa da população-alvo, em dimensão e condição (patologia laríngea) (8. O questionário foi respondido através de entrevista telefónica, estratégia diferente do recomendado e diferente do utilizado no original. Não obstante a versão PE do VHI-10 tem evidência de 5 das propriedades clinimétricas recomendadas (Quadro 3).
O pVHI apresenta resultados para 8 propriedades clinimétricas e todas atingem os critérios recomendados com a exceção da validade concorrente (r s=0.412 inferior a 0.70) (Quadro 3).
O estudo de validação do SVHI, realizado com 75 cantores e/ou atores, 50 com disfonia, dos 324 profissionais observados na consulta de ORL num Hospital em Lisboa11) cumpre 5 das propriedades clinimétricas porque não foram analisadas a validade estrutural, a sensibilidade à mudança e na validade preditiva não atinge o critério recomendado pela COSMIN (≥ 0.70) (Quadro 3).
Utilidade clínica e científica das versões em PE
O VHI é o único instrumento que atinge o critério de recomendado (Quadro 4).
Discussão
As adaptações dos quatro PROMs e um Proxy ao PE estão em consonância com os respetivos originais. Destes o VHI é o recomendado para utilização na clínica e na investigação porque existe análise e robustez das 10 propriedades clinimétricas. A informação confirma que o VHI é o instrumento «padrão de ouro», pois correlaciona-se forte e significativamente com as versões reduzidas (VHI-9i e VHI-10) e com o SVHI à semelhança do identificado a nível internacional2. Tem ainda a vantagem de ser possível a utilização das pontuações das suas subescalas de forma independente (funcional, físico e emocional) para além do valor total, o que não é possível com a aplicação das suas versões reduzidas - VH9i e VHI-10 - escalas unidimensionais com apenas total dos resultados5,8. Não obstante existe ainda potencial para o seu aprimoramento como, por exemplo, a determinação: (i) do valor de corte para falantes com disfonia, um indicador útil para aplicação em situações de rastreio para posterior encaminhamento para avaliação clínica; (ii) da equivalência entre a sua utilização em papel e em formato eletrónico pois existem estudos a utilizar o formato eletrónico16.
Os restantes instrumentos em PE - VHI-9i; VHI-10; pVHI e SVHI - apesar de terem publicação de dados sobre as suas propriedades clinimétricas5,8,10-11, a informação é apenas em estudos académicos (não sujeitos a arbitragem científica) (11, e/ou insuficiente em relação às 10 propriedades clinimétricas recomendadas e/ou não atinge os valores recomendados pela COSMIN5,8,10-11. No entanto, têm potencial para virem a ser recomendados assim que exista evidência das propriedades clinimétricas não analisadas, por exemplo, em população-alvo representativa (e.g., VHI-10), informação sobre a reprodutibilidade (e.g., VH9i), validade concorrente (e.g., ≥ 0.70 no pVHI) e com metodologia em consonância com a utilizada no original (e.g., VHI-10). De entre os instrumentos potencialmente recomendados o pVHI é o que reúne melhores condições para utilização clínica e científica, num momento, porque a propriedade clinimétrica em falha (sensibilidade à mudança) não é crucial para estudos transversais, os restantes resultados são robustos (exceto a validade concorrente) e resultam de uma amostra de mais de 300 crianças muito superior ao original6,10. De salvaguardar que na análise da validade concorrente não foi utilizado um questionário que medisse o mesmo construto, pela inexistência em PE. Uma outra mais-valia do pVHI é a divulgação do ponto de corte, um indicador útil para rastreio de voz em crianças10.
Limitações
Uma possível limitação, no presente estudo, pode advir da opção pelos descritores utilizados, eventualmente insuficientes para identificação da informação em PE. Por exemplo, foram usados os descritores «impacto da voz» e «autoavaliação», mas não se incluíram outros como «impacto psicossocial» e «questionário de opinião». No entanto, procedeu-se também à pesquisa pelo nome dos autores portugueses na área da voz, identificados nos documentos selecionados ou do conhecimento das autoras. Outra limitação óbvia foi a opção pela exclusão da informação de monografias de licenciatura para diminuição da probabilidade de erro, mas excecionalmente foram utilizados dados sobre a reprodutibilidade do VHI. Salienta-se ainda como limitação a não utilização estrita dos critérios recomendados pela COSMIN tendo sido realizada uma «adaptação». A maioria dos estudos identificados não descreve os resultados usando as medidas recomendadas (e.g., EPM, 95% intervalo de confiança; CCI; Kappa de Cohen) o que coincide com o observado internacionalmente2, e, por essa razão, na presente revisão aceitou-se, por exemplo, a correlação de Spearman na análise da reprodutibilidade.