Introdução
Os distúrbios do sono definem englobam um conjunto alargado de patologias. A patologia obstrutiva do sono inclui a síndrome de apneia obstrutiva do sono (SAOS) e a roncopatia. A SAOS resulta de períodos repetidos de colapso ou estreitamento da via aérea superior durante o sono, associado a esforço respiratório. A roncopatia consiste no som produzido por vibração das estruturas anatómicas do trato aerodigestivo superior durante o sono, podendo ou não estar associada a SAOS.1 O seu diagnóstico é frequentemente suspeitado clinicamente, quer pelas características anatómicas do doente que poderão constituir fatores de risco, quer pelo aparecimento de sintomas sugestivos. (2 A confirmação do diagnóstico é realizada com recurso à polissonografia, que quantifica a frequência e intensidade de episódios de apneia/hipopneia e o seu tratamento deverá ser individualizado de acordo com os fatores predisponentes de doença. (3
A relação da patologia do sono com as neoplasias da cabeça e pescoço é controversa. Evidência recente sugere que as estratégias terapêuticas ou paliativas de neoplasias da cabeça e pescoço, nomeadamente radioterapia e cirurgia, são fatores de risco para o desenvolvimento de SAOS, provavelmente por processos de dano neuromuscular, xerostomia e consequente instabilidade da via aérea. (4,5,6,7) No entanto, a prevalência de roncopatia e apneia do sono em doentes com neoplasias do trato aerodigestivo superior é pouco conhecida. (7) A descrição de roncopatia e SAOS como forma de apresentação de neoplasias da cabeça e pescoço é rara na literatura. Contudo, recentemente tem-se verificado um aumento de publicações de casos clínicos relativos a esta questão.
A avaliação clínica realizada pelo Otorrinolaringologista, associada ou não a métodos imagiológicos, é frequentemente necessária para identificar patologia neoplásica como causa de SAOS. Apesar de quantificar a gravidade da doença, a polissonografia não auxilia na identificação da sua etiologia. Por outro lado, a melhoria sintomática com a introdução de terapêutica ventilatória poderá contribuir para o atraso no diagnóstico. (8
Os autores reportam dois casos clínicos de doentes adultos que recorreram à consulta de Roncopatia e Apneia do Sono do Hospital CUF Tejo com queixas de roncopatia e sintomatologia sugestiva de SAOS, com diagnóstico final de neoplasia maligna da amígdala palatina (carcinoma pavimento-celular e linfoma folicular).
Descrição dos casos
Caso clínico 1:
Doente do sexo masculino, com 48 anos de idade, recorreu à consulta de Roncopatia e Apneia do Sono por queixas de roncopatia com um mês de evolução, de agravamento progressivo, episódios de apneia e despertares com respiração agónica, testemunhados pela esposa. Referia ainda sonolência diurna e, mais recentemente, queixas compatíveis com globus ao nível da orofaringe.
Como antecedentes pessoais, destacava-se a realização de septoplastia em 2005. Ao exame objetivo apresentava um índice de massa corporal (IMC) de 28.1 kg/m2 e marcada assimetria amigdalina. A amígdala direita ultrapassava a linha média e apresentava uma superfície lisa, brilhante, coloração rosada com evidentes vasos superficiais e consistência elástica, sem aparente fixação à parede faríngea. A amígdala esquerda classificava-se como grau I de Friedman. A nasofaringolaringoscopia excluiu outras lesões ao nível do trato aerodigestivo superior.
A tomografia computorizada (TC) cervical demonstrou uma lesão tumoral com origem na amígdala palatina, que media 30 mm de diâmetro transversal e 22 mm de diâmetro antero-posterior, sem alteração da permeabilidade do espaço parafaríngeo ou presença de adenopatias cervicais (Figura 2).
Foi proposta e realizada amigdalectomia unilateral diagnóstica com recurso a técnica LigaSure® (BiZactTM ). Intraoperatoriamente não houve evidência macroscópica de envolvimento extracapsular da lesão (Figura 3).
O exame anatomopatológico revelou um linfoma de células B, do tipo linfoma folicular, grau 3B (OMS 2017)/ linfoma folicular de grandes células (OMS 2022) (Figura 4).
Após a cirurgia, ocorreu resolução completa da sintomatologia do sono. O doente iniciou seguimento na consulta de Hematologia onde realizou avaliação complementar com tomografia por emissão de positrões, endoscopia digestiva alta e avaliação da medula óssea, que excluíram envolvimento sistémico, tendo iniciado quimioterapia com rituximab, ciclofosfamida, doxorrubicina e prednisolona. Não houve evidência de recorrência ou progressão de doença durante o período de follow-up de 6 meses no nosso hospital (nota: o doente optou por realizar o tratamento sistémico noutra instituição).
Caso clínico 2:
Doente do sexo masculino com 67 anos de idade recorreu à consulta de Roncopatia e Apneia do Sono por quadro clínico caracterizado por roncopatia, episódios de apneia do sono e obstrução nasal com dois meses de evolução e rápido agravamento nas três semanas prévias à consulta.
Como antecedentes pessoais relevantes, destacava-se um consumo tabágico de 60 unidades-maço-ano. Ao exame objetivo apresentava um IMC de 26.5 kg/m2 e assimetria amigdalina marcada, com aumento de volume da amígdala palatina direita condicionado por uma lesão infiltrativa com áreas de ulceração, sem extensão aparente aos pilares anteriores, posteriores ou sulco glosso-amigdalino. A nasofaringolaringoscopia identificou diminuição do espaço velo-faríngeo, resultante do aumento do volume amigdalino à direita e excluiu outras lesões ao nível do trato aerodigestivo superior.
A TC cervical confirmou a presença de uma neoformação ao nível da amígdala direita com dimensão transversal de 35 mm, não se excluindo atingimento dos pilares amigdalinos, sem aparente extensão à nasofaringe ou espaço mastigador, parafaríngeo ou carotídeo. Não se visualizou a presença de adenomegálias cervicais (Figura 5). A TC tóraco-abdomino-pélvica não evidenciou adenopatias ou imagens sugestivas de metastização.
O doente foi submetido a amigdalectomia diagnóstica com recurso a técnica LigaSure® (BiZactTM ), 15 dias depois da primeira consulta. Intraoperatoriamente, observou-se um aumento ligeiro do tamanho da lesão em relação ao momento da primeira observação, com atingimento do pilar amigdalino anterior, que foi também parcialmente excisado (Figura 6). A histologia revelou um carcinoma pavimento-celular da amígdala palatina, com atingimento focal da margem profunda (R1). Observou-se positividade difusa para p16 nas células neoplásicas, que se associa fortemente a infeção pelo vírus do papiloma humano (HPV). (Figura 7). Considerando o exame anátomo-patológico e os exames de imagem, o tumor foi estadiado como pT2N0M0R1. Após discussão em consulta multidisciplinar, o doente iniciou quimioterapia e radioterapia definitivas. Após a cirurgia houve resolução completa da sintomatologia do sono, e o doente manteve-se em vigilância sem sinais de recorrência da neoplasia após 6 meses de seguimento.
Discussão
Neste artigo descrevem-se dois casos clínicos com o diagnóstico final de um processo neoplásico maligno da amígdala palatina, em que o motivo de consulta foi o surgimento de sintomas de roncopatia e apneia obstrutiva do sono. Nos casos descritos, a causa anatómica para o aparecimento desta sintomatologia foi facilmente identificada no exame objetivo da orofaringe.
Durante o sono, devido ao decúbito e ao relaxamento dos músculos do pescoço, ocorre um estreitamento da via aérea, facilitando o seu colapso e vibração. Um calibre menor da via aérea promove ainda mais este colapso. (9 Podemos assim inferir que o crescimento de tumores em qualquer posição da via aerodigestiva superior poderá cursar com roncopatia e apneia obstrutiva pela redução do calibre da mesma, pelo que seria expectável que uma percentagem relevante de doentes com neoplasia da via aérea superior desenvolvessem este tipo de sintomas (em graus variáveis) no período prévio ao diagnóstico de cancro. No entanto, estes sintomas são raramente reportados na literatura. Vários motivos poderão justificar este facto, nomeadamente: ausência de sintomatologia relacionada com o sono até estádios muito avançados de doença; diagnóstico da neoplasia pela presença de outros sinais e sintomas mais precoces; desvalorização de sintomas ou não deteção por parte do doente e/ou parceiro de sono; desvalorização dos sintomas por parte dos profissionais de saúde ou orientação clínica inapropriada.
Moore e colaboradores realizaram em 2021 uma revisão da literatura que inclui um total de 79 doentes em que a SAOS foi a forma de apresentação de neoplasias da cabeça e pescoço.8 Os sintomas de SAOS apresentaram-se de forma isolada em 28 casos, surgindo, em média, 29.2 meses antes do diagnóstico definitivo de neoplasia. Os sintomas acompanhantes mais frequentemente reportados foram a disfagia (18.9%), disfonia (12.6%) e globus faríngeo (8.8%). Os tumores lipomatosos do espaço parafaríngeo e retrofaríngeo foram os mais frequentes (18.9%), sendo ainda descritos tumores da orofaringe, laringe, nasofaringe, espaços cervicais profundos, cavidade oral e nasal. Os linfomas foram as neoplasias malignas mais frequentemente identificadas, a maioria correspondendo ao linfoma difuso de grandes células B (n=3/11). Apenas um doente apresentou um carcinoma pavimento-celular da amígdala como causa de SAOS. Em todos os casos houve suspeição de malignidade durante a realização de nasofaringolaringoscopia e, em metade dos doentes, com recurso apenas à observação direta da boca e orofaringe. À data do diagnóstico, 55 doentes haviam realizado polissonografia e 22 encontravam-se sob terapêutica com ventiloterapia por pressão positiva contínua (CPAP). (8
Os casos clínicos que se descrevem neste artigo são exemplos paradigmáticos desta problemática. No primeiro caso, o doente apresentava um mês de evolução das queixas de roncopatia e apneias testemunhadas pela esposa, com agravamento recente. Os sintomas acompanhantes de globus faríngeo foram apurados durante a entrevista da consulta. O diagnóstico final foi de linfoma folicular da amígdala. Os linfomas da amígdala palatina são as neoplasias malignas que mais frequentemente se apresentam como SAOS. (8 Este facto poderá relacionar-se com o crescimento frequentemente limitado pela cápsula amigdalina, promovendo um estreitamento da via aérea semelhante à hipertrofia amigdalina benigna. (10 Neste caso, o tumor foi classificado como linfoma folicular de alto grau (3B), que apresenta um crescimento mais rápido que a maioria dos restantes, justificando o agravamento relativamente rápido das queixas. Por outro lado, em estádios iniciais de linfomas indolentes (de que é exemplo o linfoma folicular), existe frequentemente ausência de sintomatologia local ou sistémica adicional. (11 O cansaço é um sintoma frequentemente relatado em patologias hematológicas, no entanto, a melhoria imediata das queixas do doente após cirurgia favorece uma relação de causalidade com a presença de SAOS.
No segundo caso clínico, o diagnóstico final foi de carcinoma pavimento-celular da amígdala. Este apresenta mais frequentemente um comportamento infiltrativo quando comparado com o linfoma. (10 Neste doente, foi possível constatar o rápido crescimento macroscópico durante o período que decorreu entre a suspeita diagnóstica e a cirurgia sugerindo uma forte agressividade local e, consequentemente, o benefício de um diagnóstico célere.
Nenhum dos doentes apresentava previamente episódios de roncopatia ou apneia do sono e o perfil de agravamento relativamente rápido e progressivo foi comum a ambos. Para além do excesso de peso, não foram identificados outros fatores de risco para SAOS. Uma vez que se verificou resolução completa dos sintomas após amigdalectomia, a polissonografia não foi realizada, visto que iria ainda acrescentar custos sem benefício e promover ansiedade.
De acordo com os casos clínicos apresentados e a revisão da literatura, consideramos que alguns contextos clínicos deverão levantar a suspeita de patologia neoplásica como causa de roncopatia e apneia do sono e suscitar uma avaliação ou reavaliação da via aerodigestiva, designadamente: sintomatologia recente em doente sem fatores de risco; agravamento da sintomatologia sem causa aparente; ausência de melhoria ou agravamento em doente sob terapêutica de ventilação; e sintomatologia sugestiva de neoplasia da via aerodigestiva, nomeadamente disfagia, disfonia, globus faríngeo e perda ponderal.
Papel do otorrinolaringologista
Os casos clínicos e a revisão da literatura apresentada justificam a necessidade de rever a abordagem das patologias obstrutivas do sono. As neoplasias da cabeça e pescoço são raramente consideradas como diagnóstico diferencial de roncopatia e SAOS porque a prevalência destes sintomas não está estudada na população geral de doentes com neoplasias da cabeça e pescoço.
Com o reconhecimento das patologias do sono por parte da comunidade científica e pelos próprios doentes, é natural que haja uma maior valorização destes sintomas, com consequente identificação de um maior número de doenças associadas. Uma abordagem diagnóstica adequada da patologia do sono permitirá, por um lado, identificar etiologias prevalentes, mas também excluir patologia grave associada, nomeadamente do foro neoplásico.
A avaliação por “cirurgiões do sono”, onde se inclui a otorrinolaringologia, apenas é “recomendada” pela Academia Americana de Medicina do Sono em adultos com SAOS e IMC < 30 que são intolerantes, não aceitam ou não aderem à terapêutica com CPAP, sendo “sugerida” em doentes com uma alteração anatómica major da via aérea. 12 Esta abordagem poderá ser insuficiente e excluir a avaliação de doentes que beneficiariam de uma observação por otorrinolaringologia.
A realização de polissonografia permite um diagnóstico formal de SAOS e apresenta-se cada vez mais acessível. A eficácia e disponibilidade do tratamento com CPAP tem minimizado o importante impacto desta patologia, mas a adesão ao mesmo continua a ser um fator limitante. 13 Muitos dos doentes com SAOS iniciam tratamento com CPAP sem uma avaliação adequada da via aerodigestiva superior. Assim, a prescrição deste tratamento deverá ser ponderada caso a caso, com a realização de uma história clínica cuidada e identificação de fatores de risco para SAOS. Uma má utilização destes recursos diagnósticos e terapêuticos poderá conduzir a um atraso na identificação de patologias graves para as quais o tratamento deve ser dirigido e realizado precocemente.
Os autores consideram benéfica a avaliação de todos os doentes com patologias obstrutivas do sono pelo otorrinolaringologista. A via aerodigestiva superior é simultaneamente a área de estudo e de intervenção nesta patologia. No entanto, a observação direta ou indireta da mesma é frequentemente negligenciada. Apesar de esta avaliação resultar num custo económico adicional numa fase inicial da abordagem ao doente com SAOS, a avaliação pelo otorrinolaringologista promove benefícios clínicos evidentes que se traduzem em ganhos em Saúde, evitando atrasos e erros no diagnóstico e, consequentemente, intervenções inadequadas. A nasofaringolaringoscopia realizada neste contexto é um exame acessível, inócuo, que permite exclusão de patologia grave, caracterização da via aérea e identificação de fatores anatómicos potencialmente corrigíveis no tratamento de doença e/ou adaptação a CPAP. É assim essencial que se identifiquem os benefícios da colaboração do otorrinolaringologista numa equipa multidisciplinar, quer na abordagem diagnóstica desta patologia, quer no tratamento cirúrgico da mesma.
Conclusão
As neoplasias da amígdala palatina são causas raras de roncopatia e SAOS. Esta patologia deverá ser identificada precocemente e a sua terapêutica individualizada. A avaliação adequada da via aerodigestiva superior pelo otorrinolaringologista fornece múltiplos benefícios, nomeadamente a exclusão de patologia neoplásica como causa de SAOS, devendo ser integrada em contexto multidisciplinar. A realização da polissonografia e/ou melhoria com introdução de terapêutica com CPAP não deverão atrasar esta avaliação, quando indicada.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.