Introdução
A osteossíntese de fratura da coluna cervical por via anterior com o uso de parafusos, placas e outros dispositivos metálicos para fixação dos fragmentos é um procedimento cirúrgico amplamente usado e geralmente bem tolerado.1 No entanto, embora rara, a perfuração faringoesofágica pode ocorrer como complicação no peri e no pós-operatório imediato deste procedimento. Já a perfuração tardia, surgindo anos após a intervenção cirúrgica é uma complicação ainda menos frequente2-5 e poucos são os casos descritos de localização na faringe.
A sua apresentação clínica pode variar desde sintomas ligeiros como odinofagia e sensação de corpo estranho faríngeo, até complicações graves e potencialmente fatais, como abcesso cervical e mediastinite. Dada a raridade desta situação clínica, a sua apresentação, avaliação e abordagem terapêutica não estão estabelecidas. (1
O objetivo dos autores é apresentar um caso clínico raro de perfuração tardia da faringe, como resultado da extrusão de um parafuso de osteossíntese 30 anos após a sua implantação na coluna cervical, com revisão da literatura.
Descrição do caso clínico
Doente do género masculino, de 49 anos, foi enviado ao Serviço de Urgência por odinofagia, disfagia e sensação de corpo estranho faríngeo com seis semanas de evolução. Negava outros sintomas como sialorreia, dispneia, hemoptise, cefaleia, febre e parestesias. Apresentava antecedentes de cirurgia da coluna cervical por via anterior com osteossíntese de fratura da apófise odontoide com parafuso interfragmentário, realizada há 30 anos e no contexto de politraumatismo. Ao exame objetivo, na inspeção da orofaringe, observou-se um objeto metálico ao nível da amígdala esquerda (Fig. 1). Na fibroscopia faringolaríngea observou-se a sua inserção ao nível da parede lateral da hipofaringe à direita, associado a edema e hematoma dos tecidos adjacentes.
A radiografia (Fig. 2 e 3) e a tomografia computorizada (TC) cervicais (Fig. 4 e 5), confirmaram a presença de um parafuso, com inserção na parede lateral da hipofaringe à direita, com trajeto oblíquo e terminação distal ao nível da amígdala esquerda, condicionando hematoma da parede e dos tecidos moles adjacentes, mas com integridade dos vasos sanguíneos. Não se verificaram outras complicações.
No Serviço de Otorrinolaringologia procedeu-se à extração do corpo estranho por via trans-oral sob anestesia local e com controlo endoscópico (Fig. 6), sem intercorrências.
Após a avaliação pela Especialidade de Ortopedia, na ausência de défices neurológicos e de instabilidade da coluna cervical, optou-se pela vigilância clínica. O doente foi internado, alimentado por sonda nasogástrica nas primeiras 48 horas, sendo introduzida a posteriori dieta líquida por via oral que o doente tolerou. Os resultados laboratoriais não evidenciaram infeção com atingimento sistémico, não obstante foi administrada antibioterapia por via endovenosa: amoxicilina com ácido clavulânico 1200 mg de 8 em 8 horas e clindamicina 600 mg de 6 em 6 horas durante sete dias.
Durante o internamento, a evolução clínica foi favorável e na radiografia e TC cervicais de controlo (Fig. 7 e 8) não se verificaram complicações.
O doente teve alta clínica após sete dias, orientado para consulta externa de Otorrinolaringologia e de Ortopedia.
Dois meses depois foi realizada uma ressonância magnética de controlo que relatou apenas sinais imagiológicos de cirurgia prévia, sem sequelas do episódio de migração do parafuso e sem migração de outro tipo de dispositivo metálico de osteossíntese.
Discussão
Na literatura existem poucos relatos de migração de parafuso de osteossíntese da coluna cervical e consequente perfuração tardia da faringe com extrusão pela cavidade oral. (2,4-7 Uma vez que as complicações podem ser devastadoras, poucos são os doentes com sintomatologia ligeira, resolução total com tratamento conservador e sem morbilidade significativa associada. (4-7 Da revisão bibliográfica efetuada, este é o primeiro caso clínico com um intervalo de tempo tão extenso, 30 anos, entre a cirurgia da coluna cervical e a perfuração da faringe por migração e extrusão do parafuso de osteossíntese. Dada a sua raridade, não existe ainda uma incidência descrita da ocorrência de perfuração tardia da faringe. A ocorrência de perfuração faringoesofágica tem vindo a ser reportada na literatura com uma frequência de cerca de 0,25% que corresponde, na maioria dos casos, a perfuração esofágica. (8
As perfurações faríngeas ocorrem habitualmente no pós-operatório precoce ou, excecionalmente, podem ser tardias, até cerca de uma década após a intervenção cirúrgica. (3
A causa mais frequente para perfuração faríngea após a cirurgia da coluna cervical por via anterior é a migração do material de osteossíntese. (1,6 Neste caso, há vários fatores que o podem precipitar, sendo o mais frequente a sua inserção inadequada, (2,4,6 situação mais comum nas perfurações no peri e pós-operatório imediato. Outros fatores precipitantes são: material defeituoso, mobilização cervical excessiva, anomalias congénitas da coluna cervical, osteoporose e infeção local. (2,9 Outras causas que justificam a perfuração tardia da faringe são a compressão do material de osteossíntese contra a parede posterior da faringe, resultando em isquemia, necrose e consequente perfuração, (1,2,6,7 bem como doenças que enfraqueçam a sua musculatura. (10 Posto isto, uma vez que o doente não apresentava sinais imagiológicos de patologia congénita cervical, osteoporose, infeção, ou história de patologia faringoesofágica e cervical, assumimos que a causa mais provável terá sido a migração do material devido à mobilidade cervical ao longo de vários anos.
Apesar dos mecanismos sugeridos para as perfurações da faringe e do esófago serem os mesmos, (6 a faringe é um local menos comum para ocorrer perfuração, devido às diferentes características anatómicas entre a faringe e o esófago, a maior resistência de tecidos na faringe3 e, o facto mais importante no nosso ponto de vista, o nível da coluna cervical em que é realizada a cirurgia. O nível C4-C7 é o nível mais frequente a que é realizada a cirurgia da coluna cervical, (1,6 tal facto explica a menor incidência de casos com localização na faringe, que será atingida no caso da cirurgia se realizar ao nível de C2-C3, (2,6,7 como o caso descrito.
A perfuração faríngea pode ter várias apresentações clínicas. Com uma história pregressa de cirurgia da coluna cervical por via anterior e na presença de sintomas como odinofagia, disfagia, sensação de corpo estranho faríngeo, tumefação cervical de novo, febre, dispneia e tosse devemos equacionar a hipótese de perfuração faringoesofágica, (1,2 sendo que, por vezes pode ser visível o material em extrusão. Destes sintomas, a disfagia é o sintoma mais frequentemente reportado na literatura. (6,10 Pode também apresentar-se, ab initio, com complicações como a formação de fístula faringoesofágica e abcesso cervical, (1,8 com compromisso da via aérea, (9 pneumonia de aspiração, (1 podendo culminar em sépsis e até morte. (8 A taxa de mortalidade é cerca de 20% nas primeiras 24 horas, aumentando para 50% após esse período. (1
Para além da perfuração faríngea ou esofágica, outras complicações podem advir da cirurgia cervical por via anterior com migração do material de osteossíntese, como lesão do nervo laríngeo recorrente com paralisia da laringe, lesão da traqueia, dos grandes vasos, compressão de estruturas nervosas, fístula de líquor, meningite, entre outros. (2
A abordagem das perfurações faríngeas, diagnóstica e terapêutica, deve ser individualizada, com base na gravidade e evolução do quadro clínico, do status basal e comorbilidades do doente, dos resultados dos exames imagiológicos e das complicações. (5
Quanto à abordagem diagnóstica, alguns autores recomendam que inicialmente seja por via endoscópica, nomeadamente trans-oral. (3,11 Esta técnica apresenta baixa morbilidade e possibilita acesso direto à parede posterior da faringe, tal como foi realizado neste caso, tanto para diagnóstico inicial, como para tratamento e com bons resultados.
Além disso, a realização de exames imagiológicos é essencial na abordagem da perfuração. A radiografia da coluna cervical informa-nos sobre a eventual presença de enfisema, pneumomediastino, ar na retrofaringe e nos espaços paravertebrais. (1 A TC cervical informa acerca da localização do material e da sua relação com as estruturas anatómicas, bem como o atingimento dos tecidos moles e vasos sanguíneos adjacentes e a existência de complicações como hematoma, lesão laríngea, abcesso e presença de ar extra-esofágico. (1,11 O exame contrastado, nomeadamente o trânsito esofágico, tem um papel importante na avaliação da perfuração, podendo inferir acerca da presença e extensão de fístula faringoesofágica. (11
Quando nenhum destes exames complementares de diagnóstico é suficiente para informar acerca do estado do doente ou quando existe forte possibilidade de complicações (infeciosas ou outras) pode ser necessário a exploração cirúrgica,1,6,10 com traqueotomia de urgência. (9,10
Alguns autores recomendam que, no caso de perfurações sem outras complicações associadas, principalmente perfurações pequenas (inferiores a 1 ou 2 cm), (11,12 deve-se optar por tratamento conservador. O tratamento conservador inclui fluidoterapia, antibioterapia endovenosa e alimentação por sonda nasogástrica, com posterior introdução da dieta líquida por via oral. (2,6,11 Este timing é variável na literatura e tem que ser tido em conta o encerramento espontâneo da perfuração e as complicações associadas. No caso de perfurações que não encerram espontaneamente, é necessário o encerramento cirúrgico. (2 Quando há falência do encerramento primário ou o defeito é extenso, deve-se realizar reconstrução no mesmo tempo operatório com recurso a retalho muscular, microvascular ou outro. (1
A raridade desta condição clínica não permitiu ainda um consenso em relação às abordagens diagnóstica e terapêutica, pelo que estas devem ser individualizadas. É importante ter um índice de suspeição elevado para um diagnóstico precoce e tratamento atempado, prevenindo ou minimizando as potenciais complicações. No caso clínico descrito, e como alguns autores recomendam, optou-se por um tratamento conservador, resultando em recuperação completa, sem morbilidade significativa ou sequelas associadas.