Introdução
A prática cirúrgica é um elemento essencial na formação de novos especialistas em Otorrinolaringologia (ORL).
No treino cirúrgico moderno a experiência operatória dos internos tem vindo a diminuir. Esta diminuição relaciona-se com fatores como um ênfase crescente na segurança do doente, a necessidade de supervisão adequada dos internos e compliance com o horário laboral1. Esta situação foi agravada pelos constrangimentos impostos pela pandemia SARS-CoV-22. Estudos recentes têm feito soar o alarme sobre a falta de confiança cirúrgica: Um questionário realizado a médicos de cirurgia geral mostrou que até 25% dos recém-especialistas não estão confiantes em realizar uma grande variedade de procedimentos cirúrgicos abertos3.
Os currículos de ORL Europeu e do Reino Unido não fazem referência a números cirúrgicos mínimos necessários para a conclusão do internato11,12.
Sendo a ORL uma especialidade médico-cirúrgica, o treino cirúrgico é essencial para o adequado desenvolvimento destas competências. A exposição a um volume adequado de casos, com repetição dos procedimentos em diferentes contextos, garante uma formação mais robusta. A experiência cirúrgica adquirida durante o internato parece ser determinante na forma como cada médico aborda posteriormente as diferentes patologias4. Neste sentido, procurámos caracterizar o estado do treino cirúrgico dos internos de primeiro ano do Internato de Formação Específica em ORL em Portugal.
Material e Métodos
Recolhemos de forma retrospetiva a casuística cirúrgica dos internos que realizaram o primeiro ano do seu Internato de Formação Específica em ORL em 2021. Os dados foram obtidos através do preenchimento de um formulário de Google Forms®, tendo sido pedido aos participantes que partilhassem os números cirúrgicos dos procedimentos mais frequentemente realizados nesta fase da sua formação. Os procedimentos considerados foram a adenoidectomia, amigdalectomia, colocação de tubos de ventilação transtimpânicos (TVTT) e traqueotomia. Obtiveram-se 18 participantes, tendo as suas respostas sido analisadas com recurso ao software Microsoft Excel® versão 16.72. Os resultados obtidos são expressos em número médio, mínimo e máximo de procedimentos cirúrgicos realizados.
A diferença entre o número de procedimentos realizados por área geográfica foi obtida através da realização do teste “T de Student”, utilizando o software IBM SPSS Statistics® versão 25 e considerando um nível de significância de 0.05.
Resultados
Obtiveram-se as respostas de 18 participantes, representando 82% dos internos de ORL que realizaram o primeiro ano de internato em 2021.
A média de amigdalectomias realizadas foi de 16, sendo o número máximo 65 e mínimo 0 (Gráfico 1). 40% dos internos realizaram 5 ou menos amigdalectomias durante o seu primeiro ano de internato. A média anual de amigdalectomias realizadas pelos 3 internos que menos realizaram este procedimento foi 1 e pelos 3 internos que mais o realizaram foi de 48.
Em relação à realização de adenoidectomias, a média anual foi de 22 procedimentos. O número mínimo realizado foi 1 e o máximo foi 53 (Gráfico 2). 22% dos internos realizaram 10 ou menos adenoidectomias.
Quanto à colocação de TVTT, a média anual foi de 18, com um valor mínimo de 1 e máximo de 38 (Gráfico 3).
Na realização de traqueotomias, a média foi de 5 procedimentos, com um valor mínimo de 0 e máximo de 17 (Gráfico 4). 22% dos internos não realizaram qualquer traqueotomia. Os 4 internos que mais praticaram este procedimento realizaram entre 11 e 17 traqueotomias em 2021.
Combinando todos os procedimentos avaliados, foram realizados, em média, 58 procedimentos durante o primeiro ano de internato. O valor mínimo foi de 4 e o valor máximo foi de 135, tendo 17% dos internos realizado menos de 20 procedimentos (Gráfico 5).
A média de procedimentos realizados por região geográfica foi de 64 procedimentos na região Norte (6 internos avaliados) e de 59 procedimentos na região Sul (10 internos avaliados). Não se observou uma diferença estatisticamente significativa entre o número de procedimentos realizados por região geográfica (p= 0.20).
Discussão
A aquisição de competências cirúrgicas ao longo do internato médico assenta no treino e repetição tutelados dos procedimentos mais relevantes da especialidade. O treino cirúrgico realizado no internato influencia as práticas adotadas posteriormente enquanto especialistas4. Ao longo dos últimos anos, tem-se assistido a uma redução da disponibilidade de tempos operatórios, com prejuízo óbvio na formação dos internos e na sedimentação destas competências5,6. Este é o primeiro estudo realizado em Portugal que visa avaliar o número de procedimentos cirúrgicos realizados ao longo do primeiro ano de internato de formação específica em ORL.
Os resultados obtidos demonstram uma variabilidade significativa de oportunidades cirúrgicas entre os diferentes internos. Na realização de amigdalectomias verificamos que os 3 internos que menos realizaram este procedimento têm uma média de 1 amigdalectomia durante o primeiro ano de internato enquanto os 3 internos que mais operaram têm uma média de 48 amigdalectomias. Este mesmo padrão repete-se para os restantes procedimentos avaliados. Destaca-se ainda que 4 dos internos avaliados não realizaram qualquer traqueotomia, contrastando com os 4 internos que mais realizaram este procedimento que executaram entre 11 a 17 traqueotomias. A enorme variabilidade de treino cirúrgico existente é também demonstrada pela diferença entre o mínimo de 4 e o máximo de 135 procedimentos realizados globalmente, ao longo do ano de 2021. Estes resultados são coincidentes com a variabilidade reportada por outros autores7.
Os resultados obtidos no presente estudo sugerem que não existe uma uniformização do currículo cirúrgico dos internos de ORL. Por outro lado, mostram que podem existir internos cuja prática cirúrgica é limitada, com eventual compromisso do correto desenvolvimento das suas capacidades técnicas ao longo do internato.
A inexistência de qualquer estudo que avalie a experiência cirúrgica de internos de ORL ao longo da sua formação quer a nível europeu, quer a nível americano torna impossível a comparação da realidade portuguesa com a de outros países.
Consideramos que seria útil o desenvolvimento de objetivos cirúrgicos nacionais, adaptados a cada ano do internato, de forma a uniformizar a formação cirúrgica dos internos de ORL em Portugal. A criação de currículos cirúrgicos baseados em objetivos nacionais pré-definidos, para cada ano de internato, com subsequente verificação da aquisição das competências necessárias no âmbito dos procedimentos listados, tem sido defendida por outros autores3 e utilizada com sucesso noutros países8. A capacidade de medir de forma objetiva a evolução de competências técnicas é apontada como essencial na formação cirúrgica moderna9,10.
Dada a redução da disponibilidade de tempos operatórios, a prática de competências cirúrgicas noutros contextos que não o bloco operatório deverá também ser enfatizada5,6. A utilidade da disseção em laboratório de cirurgia experimental é indiscutível, existindo também a possibilidade de utilizar modelos experimentais que mimetizem situações do quotidiano cirúrgico6.
Embora a amostra do presente estudo não seja de grande dimensão (18 participantes), considera-se que os resultados obtidos são representativos da realidade nacional, uma vez que representam 82% do total de médicos que realizaram o seu primeiro ano de internato em ORL em 2021.
Conclusão
O número de procedimentos cirúrgicos realizados durante o primeiro ano de internato varia significativamente entre internos de ORL.
A realização de 9 procedimentos cirúrgicos (média dos 3 internos que menos operaram) ao longo do primeiro ano de internato é claramente insuficiente para aquisição de capacidade e confiança cirúrgica nos procedimentos avaliados.
O desenvolvimento futuro de objetivos cirúrgicos nacionais, adaptados a cada ano do internato, poderá ser útil para a uniformização da formação cirúrgica dos internos de ORL em Portugal.