Introdução
A traqueostomia em idade pediátrica está associada a uma taxa elevada de complicações graves, que varia entre 10 e 58%1, a uma mortalidade geral de 22.1% e a uma mortalidade relacionada à traqueostomia de 1.2%2. Os efeitos psicossociais são também marcantes para as crianças e as suas famílias, incluindo impacto negativo na qualidade de vida, sono, relacionamentos, vida social e académica3,4. A descanulação é um objetivo compartilhado pelos doentes, cuidadores e equipas de profissionais de saúde. Apesar do grande anseio pela descanulação, é necessário um planeamento cuidadoso prévio, já que o insucesso agudo na descanulação está associado potencialmente a grande morbilidade e mortalidade.
A descanulação só é possível quando as condições subjacentes que levaram a criança ou adolescente a necessitar da realização da traqueostomia se resolveram ou melhoraram consideravelmente. A literatura existente é limitada em relação à melhor prática de descanulação pediátrica. Além disto, existem possíveis abordagens diferentes de acordo com as co-morbilidades subjacentes, a indicação para traqueostomia, possível necessidade de ventilação, idade na descanulação, distância do local de residência aos cuidados de saúde e recursos disponíveis5. Existem ainda complicações associadas à cânula de traqueostomia que necessitam de ser abordadas antes da descanulação como a existência de tecido de granulação peri-traqueostoma, estenose subglótica ou infeção do traqueostoma. Após a descanulação, o doente pode apresentar obstrução aguda ou crónica das vias aéreas, aspiração crónica ou via área difícil6.
Este artigo reflete a revisão bibliográfica sistemática sobre protocolos de descanulação de traqueostomia pediátrica, incluindo os métodos usados para avaliar a possibilidade da descanulação, o circuito hospitalar adotado e os resultados clínicos associados. Posteriormente, é elaborado um protocolo para um hospital pediátrico terciário português, o Hospital Dona Estefânia (HDE), refletindo as melhores práticas clínicas internacionais, mas espelhando a realidade e recursos portugueses.
Material e Métodos
Este artigo foi escrito de acordo com as diretrizes Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) (7. As bases de dados online MEDLINE, Cochrane Central Register of Controlled Trials (CCRCT) e Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL) foram utilizadas para identificar a literatura relevante. A pesquisa foi realizada entre 1 de novembro de 2022 e 18 de novembro de 2022 e foram incluídos estudos publicados entre janeiro de 2011 e dezembro de 2021.
Os estudos incluídos abordaram o processo de descanulação de traqueostomia em crianças e adolescentes com idade igual ou inferior a 18 anos e que foram escritos em língua inglesa ou portuguesa. Foram excluídos os artigos que apenas discutiram o processo de realização de traqueostomia, mas não o protocolo de descanulação; os artigos cujo objetivo de estudo não foi o de investigar os resultados da descanulação; os artigos que não continham pesquisas originais (como os artigos de revisão) e aqueles que não envolveram a população pediátrica.
Os artigos duplicados foram excluídos inicialmente. Dois revisores independentes analisaram os títulos e resumo e excluíram as publicações que não atendiam aos critérios de inclusão. O texto completo dos artigos foi obtido e avaliado para elegibilidade final pelos dois revisores. Estes procederam ainda à colheita independente dos dados necessários.
Os dados demográficos recolhidos dos estudos incluíram o sexo, a idade à realização da traqueostomia, a idade à descanulação e o período de tempo em que o doente se manteve traqueostomizado. Os métodos utilizados para avaliar a possibilidade dos doentes progredirem para descanulação foram analisados e incluíram a utilização de modificações da cânula de traqueostomia (redução do tamanho, utilização de cânula fenestrada ou utilização de tampa), medições das trocas de gases respiratórios (oximetria diurna e/ou noturna, polissonografia (PSG), capnografia ou gasimetria) e realização de laringotraqueoscopia (flexível ou rígida). Após a descanulação da traqueostomia, as informações sobre o local de admissão, duração do período de observação, modo de ventilação, taxas de sucesso e de insucesso e complicações foram recolhidas. A definição de tentativa de descanulação com insucesso correspondeu aos doentes com impossibilidade de serem descanulados de forma aguda ou àqueles que necessitaram de recanulação num período subsequente de 6 meses.
As características clínicas e demográficas, bem como os métodos utilizados para avaliar a possibilidade de descanulação e a monitorização pós-descanulação foram apresentadas por meio de estatística descritiva. As taxas de sucesso e insucesso foram calculadas como percentagem de todas as tentativas de descanulação.
Resultados
Seleção de Estudos
A pesquisa nas bases de dados previamente referidas produziu um total de 699 artigos (Figura 1), sendo que após a eliminação dos artigos duplicados, foram analisados 436 artigos. Destes, após a leitura do título e resumo e aplicação dos critérios de inclusão e exclusão, foram selecionados para leitura integral 41 artigos. Por fim, pela análise completa, 22 estudos foram selecionados (21 de coorte retrospetiva e um de coorte prospetiva) (Tabela 1). Mais de metade dos artigos (63.6%) foram publicados a partir do ano de 2017, inclusive.
Características demográficas
Nos 22 estudos incluídos, houve um total de 2387 doentes analisados, com um rácio masculino:feminino de 1.4:1. O número de doentes em cada um dos estudos variou de 18 a 439. A idade à traqueostomia variou de 1 mês a 18 anos, com uma média de 1 ano e 7 meses. A idade à descanulação variou de 0 a 18 anos, com uma média de 4 anos. Apenas 10 artigos referem o período de tempo em que os doentes ficaram traqueostomizados, com uma média de 2 anos e 8 meses. As características demográficas estão resumidas na Tabela 1.
Estudo (Autores) | Ano de Publicação | Desenho de Estudo | Número de Doentes (M/F) | Idade à Traqueostomia, anos (média) | Idade à descanulação, anos (média) | Duração da traqueostomia, anos (média) |
Funamara et al. (8 | 2012 | Coorte Retrospetiva | 113 (NR) | 5.2 | 0.1-18 | 0 - 5 |
Han et al. (9 | 2012 | Coorte Retrospetiva | 25 (13/12) | NR | NR | 8 |
Prickett et al. (10 | 2015 | Coorte Retrospetiva | 50 (29/21) | 0-16.6 | 5.5 | NR |
Beaton et al. (11 | 2016 | Coorte Retrospetiva | 45 (25/20) | NR | 2.5 | 2.8 |
Henningfield et al. (12 | 2016 | Coorte Retrospetiva | 46 (25/21) | 0.3 | 3.4 | NR |
Lee et al. (13 | 2016 | Coorte Retrospetiva | 30 (20/10) | NR | 7.6 | 2.5 |
Liptzin et al. (14 | 2016 | Coorte Retrospetiva | 18 (17/1) | NR | 2.6 | NR |
Wirtz et al. (15 | 2016 | Coorte Retrospetiva | 35 (NR) | NR | 0.4-17 | 1.5 |
Maslan et al. (16 | 2017 | Coorte Retrospetiva | 46 (NR) | 1.6 | 4.3 | 2.5 |
Pozzi et al. (17 | 2017 | Coorte Retrospetiva | 84 (54/30) | NR | 9.5 | NR |
Sachdev et al. (18 | 2017 | Coorte Retrospetiva | 49 (35/14) | NR | 3 | 0.7 |
Bashir et al. (19 | 2018 | Coorte Retrospetiva | 148 (88/60) | 0.4 | 3.1 | NR |
Quinlan et al. (20 | 2019 | Coorte Retrospetiva | 125 (72/53) | NR | NR | NR |
Seligman et al. (6 | 2019 | Coorte Retrospetiva | 23 (11/12) | 0.3 | 2 | NR |
Canning et al. (21 | 2020 | Coorte Retrospetiva | 131 (76/55) | NR | 4.8 | 2.3 (0 - 12) |
Chauhan et al. (22 | 2020 | Coorte Prospetiva | 67 (45/22) | 4.9 | NR | NR |
Schweiger et al. (23 | 2020 | Coorte Retrospetiva | 160 (93/67) | 0.6 | NR | 1.2 |
Chorney et al. (24 | 2021 | Coorte Retrospetiva | 239 (120/119) | 0.6 | NR | NR |
Hebbar et al. (25 | 2021 | Coorte Retrospetiva | 164 (95/69) | 0.6 | 2.6 | NR |
Karlic et al. (26 | 2021 | Coorte Retrospetiva | 125 (NR) | 0.3 | 6.1 | 2.8 |
Kolb et al. (27 | 2021 | Coorte Retrospetiva | 439 (259/180) | 0.4 | 1 | NR |
Veder et al. (28 | 2021 | Coorte Retrospetiva | 225 (133/92) | 0.2 | 1.8 | NR |
M, masculino; F, feminino; NR, não referido
Avaliação prévia à descanulação
Dos estudos selecionados, 20 referem as modificações da cânula de traqueostomia realizadas (Tabela 2). Em 18 incluíram a utilização de tampa (82%), em 12 a redução do tamanho da cânula de traqueostomia (55%) e apenas um estudo refere a utilização de cânula fenestrada (5%). Dos 22 protocolos analisados, 11 fazem referência ao processo de utilização de tampa, existindo um (9.1%) que refere a sua utilização inferior a 12 horas previamente à descanulação18, três protocolos (27.3%) entre 12 a 24 horas6,8,11, quatro (36.4%) uma progressão gradual diurna para noturna ao longo de vários dias10,16,19,20 e três (27.3%) referem um teste noturno único de utilização de tampa13,14,26. As medições das trocas de gases respiratórios prévias à descanulação foram descritas em 17 dos 22 estudos analisados e incluíram PSG (n = 14, 64%), oximetria (n = 9, 41%), capnografia (n = 3, 14%) e gasimetria (n = 2, 9%). Dos 9 artigos que referem a utilização de oximetria, 8 especificam no período realizado, havendo dois que referem oximetria diurna apenas, três oximetria noturna e outros três protocolos que realizam oximetria diurna e noturna. A laringotraqueoscopia foi utilizada rotineiramente em 21 dos 22 (95.5%) protocolos, havendo apenas um grupo de trabalho que refere não recorrer a técnicas endoscópicas prévias à descanulação17. Nove estudos especificaram o tipo de broncoscopia utilizada, que incluiu broncoscopias flexíveis e rígidas em 6 (66.7%) protocolos, broncoscopia rígida em 2 (22.2%) protocolos e broncoscopia flexível em 1 (11.1%) protocolo.
Estudo (Autores) | Modificações da cânula de traqueostomia | Medições das trocas de gases respiratórios | Laringotraqueoscopia, tipo |
---|---|---|---|
Funamara et al. (8 | Tampa | Oximetria diurna | Sim |
Han et al. (9 | Redução de Tamanho | PSG, Gasimetria | Sim |
Prickett et al. (10 | Tampa | PSG | Sim |
Beaton et al. (11 | Redução de Tamanho, Tampa | Oximetria noturna, PSG | Sim |
Henningfield et al. (12 | Tampa | PSG | Sim, flexível e rígida |
Lee et al. (13 | Redução de Tamanho, Tampa | PSG | Sim |
Liptzin et al. (14 | Redução de Tamanho, Tampa | PSG, Capnografia, Gasimetria | Sim, flexível e rígida |
Wirtz et al. (15 | Nenhuma | NR | Sim, flexível e rígida |
Maslan et al. (16 | Tampa | Oximetria diurna e noturna, PSG | Sim, flexível e rígida |
Pozzi et al. (17 | Redução de Tamanho, Tampa | Oximetria diurna e noturna, PSG | Não |
Sachdev et al. (18 | Tampa | Oximetria diurna | Sim, flexível |
Bashir et al. (19 | Redução de Tamanho, Tampa | Oximetria noturna, PSG, Capnografia | Sim |
Quinlan et al. (20 | Redução de Tamanho, Tampa | PSG | Sim |
Seligman et al. (6 | Cânula Fenestrada, Tampa | Oximetria diurna e noturna | Sim, rígida |
Canning et al. (21 | Redução de Tamanho, Tampa | Oximetria noturna, PSG, Capnografia | Sim, flexível a e rígida |
Chauhan et al. (22 | Redução de Tamanho, Tampa | NR | Sim, rígida |
Schweiger et al. (23 | Redução de Tamanho, Tampa | NR | Sim |
Chorney et al. (24 | NR | NR | Sim |
Hebbar et al. (25 | NR | NR | Sim |
Karlic et al. (26 | Tampa | Oximetria, PSG | Sim |
Kolb et al. (27 | Redução de Tamanho, Tampa | PSG | Sim |
Veder et al. (28 | Redução de Tamanho, Tampa | PSG | Sim, flexível e rígida |
NR, não referido; PSG, polissonografia
Resultados após descanulação
Após a descanulação, os doentes foram admitidos mais frequentemente na enfermaria (n = 7; 53.8%) ou na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) (n = 5; 38.5%). Apenas num protocolo (7.7%) as crianças eram internadas numa unidade de reabilitação (Tabela 3) e em nove estudos (40.9%) não há referência ao local de admissão após descanulação. A duração do período de observação hospitalar variou entre 0 e 32 dias, existindo apenas um protocolo no qual os doentes receberam alta no dia da descanulação. Nos 12 protocolos que especificaram a duração da observação após a descanulação, 10 (76.9%) estabeleceram um período de observação igual ou inferior a 48 horas.
Informações sobre o método de ventilação adotado após a descanulação foram referidas em 10 dos estudos analisados. Todos fizeram a transição total das crianças para o ar ambiente, porém cinco (50%) incluíram o uso de ventilação não invasiva (VNI) e apenas um (10%) estudo referiu a manutenção dos doentes com entubação orotraqueal em UCI prévia à transição para ar ambiente.
As taxas de sucesso globais variam entre 22 e 100%, com um sucesso na descanulação médio de 78.2%. Apenas 13 artigos fazem referência às complicações associadas à descanulação, sendo que destes, três (23.1%) não reportam qualquer complicação. Dos 10 restantes, cinco fazem referência ao desenvolvimento de fístulas traqueocutâneas, num total de 67 doentes, o que corresponde a 22% das crianças estudadas nestes artigos. É importante notar que, embora a fístula traqueocutânea tenha sido a complicação mais frequentemente relatada, vários estudos a consideraram uma sequela de traqueostomia de longa duração e não uma complicação da descanulação. Em quatro artigos há referência a 10 doentes (4% da população estudada) com necessidade de recanulação. Destes, cinco foram resultado da presença de granulomas peri-traqueostoma obstrutivos (50%), um por hipóxia (10%), outro por infeção das vias aéreas (10%) e em três doentes não está especificada a causa da recanulação. Como complicações, há ainda referência a um caso de sépsis (2%), outro de infeção das vias aéreas (3%) e um artigo faz referência a 5 casos de hipóxia, o que corresponde a 4% dos doentes estudados nesse artigo. Nenhuma morte foi relatada com associação ao processo de descanulação.
Estudo (Artigos) | Admissão após descanulação | Período de Observação, dias | Ventilação pós-descanulação | Taxa de Sucesso (%) | Taxa de Insucesso (%) | Complicações (%) |
---|---|---|---|---|---|---|
Funamara et al. (8 | NR | NR | NR | 32 (100%) | 0 (0%) | NR |
Han et al. (9 | NR | 12-32 | NR | 13 (52%) | 12 (48%) | Nenhuma |
Prickett et al. (10 | UCI | 2 | Ar ambiente, VNI | 41 (89%) | 5 (11%) | Nenhuma |
Beaton et al. (11 | NR | 2 | Ar ambiente | 33 (58%) | 24 (42%) | Fístula Traqueocutânea (n = 19, 42%) |
Henningfield et al. (12 | NR | NR | Ar ambiente, VNI | 46 (98%) | 1 (2%) | Sépsis (n = 1, 2%) |
Lee et al. (13 | Enfermaria | NR | Ar ambiente, VNI | 26 (87%) | 4 (13%) | Infeção das Vias Aéreas (n = 1, 3%) |
Liptzin et al. (14 | Enfermaria | 1-5 | NR | 18 (86%) | 3 (14%) | NR |
Wirtz et al. (15 | UCI | 1-5 | Ar ambiente | 33 (94%) | 2 (6%) | Fístula Traqueocutânea (n = 1, 3%) |
Maslan et al. (16 | Enfermaria | 0-1 | NR | 45 (98%) | 1 (2%) | Recanulação (n = 2, 4%) |
Pozzi et al. (17 | Unidade de Reabilitação | NR | NR | 84 (100%) | 0 (0%) | Nenhuma |
Sachdev et al. (18 | UCI ou Enfermaria | 2 | Ar ambiente | 38 (88%) | 5 (12%) | Recanulação (n = 5, 10%) |
Bashir et al. (19 | UCI | NR | Ar ambiente, VNI | 146 (95%) | 7 (5%) | NR |
Quinlan et al. (20 | Enfermaria | 1-2 | NR | 101 (95%) | 5 (5%) | NR |
Seligman et al. (6 | NR | 1-2 | Ar ambiente | 22 (85%) | 4 (15%) | Fístula Traqueocutânea (n = 11, 48%) |
Canning et al. (21 | UCI ou Enfermaria | 2 | Ar ambiente, VNI, Entubação Orotraqueal | 132 (84%) | 26 (16%) | Fístula Traqueocutânea (n = 2, 2%) |
Chauhan et al. (22 | NR | NR | NR | 61 (91%) | 6 (9%) | NR |
Schweiger et al. (23 | Enfermaria | 1-2 | NR | 36 (23%) | 124 (77%) | NR |
Chorney et al. (24 | NR | NR | NR | 57 (23%) | 182 (77%) | NR |
Hebbar et al. (25 | NR | NR | NR | 36 (22%) | 128 (78%) | NR |
Karlic et al. (26 | UCI | 1 | NR | 103 (98%) | 2 (2%) | Recanulação (n = 1; 0.8%) Hipóxia (n = 5; 4%) |
Kolb et al. (27 | UCI | 2 | Ar ambiente | 159 (92%) | 14 (8%) | NR |
Veder et al. (28 | NR | NR | NR | 141 (63%) | 84 (37%) | Recanulação (n = 2; 1%); Fístula Traqueocutânea (n = 34; 15%) |
NR, não referido; UCI, Unidade de Cuidados Intensivos; VNI, Ventilação Não-Invasiva
Protocolo de Descanulação do HDE
No protocolo proposto para o HDE (Figura 2), os doentes a iniciar o processo de descanulação são avaliados em consulta externa de laringologia pediátrica, onde se verifica se a indicação subjacente para realização de traqueostomia se encontra resolvida, bem como as co-morbidades existentes e o estado funcional da criança/adolescente. A nasofibrolaringoscopia realizada na consulta é uma etapa essencial nesta avaliação, auxiliando na confirmação da resolução da patologia subjacente e da permeabilidade da via área. Após a realização da nasofibrolaringoscopia, nos doentes aptos a iniciar o processo de descanulação, procede-se à troca da cânula de traqueostomia para um tamanho inferior (nunca para cânulas com diâmetro interno inferior 3.5mm) e à adaptação de válvula fonatória. A tolerância ao uso de válvula fonatória, em muitos doentes, exige a colaboração da terapia da fala, segundo o protocolo já estabelecido no HDE. Os cuidadores são instruídos a avaliarem os sinais de dificuldade respiratória dos doentes com válvula durante o dia (tanto para atividades quotidianas como em exercício). Estes realizam também a vigilância e registo do sono, em vídeo, dos doentes a utilizarem válvula fonatória, devendo a mesma ser retirada na ausência de vigilância. Após um período sem evidência de dessaturações ou dificuldade respiratória (diurna, noturna e em exercício), nos registos fornecidos pelos cuidadores, progride-se para utilização de tampa na cânula de traqueostomia, podendo ser necessário a manutenção do apoio de terapia da fala. Após novo período sem evidência de dessaturações ou dificuldade respiratória procede-se à descanulação.
Nos doentes com evidência de dificuldade respiratória com a adaptação de válvula fonatória e/ou adaptação da tampa, realiza-se uma laringotraqueoscopia flexível sob sedação, nomeadamente Drug-Induced Sleep Endoscopy (DISE), no bloco operatório. Durante este exame avalia-se a existência de alterações com carácter obstrutivo que impeçam a descanulação. As alterações mais comuns são a presença de tecido de granulação supraestomal, traqueomalácia, estenose subglótica ou hipertrofia do tecido linfático adenóideu e amigdalino. Sempre que possível estas alterações são corrigidas no mesmo momento cirúrgico. Se o processo de descanulação for novamente mal sucedido, com incongruências entre os achados da DISE e a clínica, os doentes são encaminhados para a realização de PSG.
Nos doentes traqueostomizados de longa duração é programado encerramento cirúrgico da fístula traqueo-cutânea geralmente um a três meses após a descanulação. Este intervalo permite assegurar que o orifício residual não é funcionante e reduzir o risco de enfisema pós-descanulação. Caso permaneçam dúvidas sobre a total permeabilidade da via área realiza-se DISE no mesmo tempo cirúrgico do encerramento
da fístula traques-cutânea.
Discussão
A ausência de linhas orientadoras baseadas na evidência que definem a melhor estratégia para o processo de descanulação em idade pediátrica, particularmente em Portugal, tem levado a uma grande variabilidade na prática clínica. Nesta revisão, resumimos os principais protocolos existentes para descanulação da traqueostomia em crianças.
Antes da descanulação, na maioria dos protocolos (90.1%), é referido que os doentes são submetidos a modificações da cânula de traqueostomia. Embora as modificações sejam prática clínica comum, o tipo de modificação e o tempo associado variam consideravelmente entre protocolos. O uso de tampa foi a modificação mais comum, seguido de redução do tamanho da cânula. Cânulas de traqueostomia fenestradas foram apenas referidas num artigo6. O objetivo das modificações nas cânulas de traqueostomia é o de avaliar a respiração através das vias aéreas superiores4. Contudo, a diminuição do tamanho das cânulas acarreta um risco aumentado de obstrução da cânula e da via aérea, nomeadamente por secreções. Os sinais de falência incluem aumento do esforço respiratório, estridor ou tosse4. Por este motivo, Seligman et al. recomendou o uso de cânulas fenestradas em crianças com idade inferior a 2 anos6. No entanto, este tipo de cânula está também associado a um risco aumentado da formação de tecido de granulação4. Existe ainda grande variabilidade no período mínimo necessário para manutenção destas modificações. Nesta revisão constatou-se entre os 11 protocolos que faziam referência ao período de tempo em que mantinham os doentes com tampa, este era inferior ou igual a 24h em sete (63.6%) desses protocolos.
A PSG e a oximetria foram as medições de trocas de gases respiratórios mais frequentemente utilizadas previamente à descanulação. A principal vantagem da PSG é a sua capacidade de avaliar a função respiratória durante o sono quando o tônus muscular faríngeo está diminuído. A principal desvantagem da PSG é a baixa disponibilidade e longo tempo de espera para o seu agendamento em muitos centros hospitalares portugueses. Lee et al. descrevem que o índice de Apneia-Hipopneia (IAH) foi significativamente menor em crianças que tiveram sucesso na descanulação, face àquelas que não puderam ser descanuladas13. No entanto, outros estudos não demonstraram associações claras entre os achados da PSG e os resultados da descanulação4. Existe ainda variabilidade nos protocolos de PSG adotados, podendo os doentes realizar a PSG sem terem efetuado as mudanças na cânula de traqueostomia ou já no período em que estão a tolerar a colocação de tampa.
A laringotraqueoscopia foi utilizada rotineiramente em 21 dos 22 (95.5%) protocolos, previamente à tentativa de descanulação. Essa prática relativamente consistente entre protocolos, permite a confirmação de uma via aérea adequada, reavaliando possíveis patologias subjacentes que motivaram a traqueostomia. Pozzi et al. foram os autores do único protocolo que não incluiu a laringotraqueoscopia rotineiramente na avaliação dos doentes pediátricos, procurando minimizar os procedimentos nesta faixa etária e destacando que o papel da endoscopia não era ainda claro17. Apesar deste grupo não apresentar nenhum caso de falência à descanulação, o seu protocolo inclui um período de internamento longo prévio à descanulação, o que pode fornecer uma garantia adicional às tentativas de descanulação praticadas. Não existe consenso entre protocolos sobre o momento ideal da descanulação após a laringotraqueoscopia, podendo variar de uma descanulação imediata até 3 meses após o exame.
A duração dos períodos de observação hospitalar após a descanulação também variou entre os protocolos incluídos. Nesta revisão, 76.9% dos protocolos estabeleceram um período de observação igual ou inferior a 48 horas. Alguns autores sugerem que períodos de observação mais curtos são seguros e promovem a gestão mais eficiente dos recursos4. Prickett et al. descrevem que todas as falências de descanulação ocorreram nas primeiras 12 horas, em ambiente hospitalar10. A maioria das crianças não necessitou de suporte ventilatório após a descanulação e pôde ser transferida com segurança para o ar ambiente.
Esta revisão bibliográfica apresenta algumas limitações, nomeadamente o facto de 21 dos 22 estudos incluídos serem coortes retrospetivas que dependem da qualidade dos registos clínicos recolhidos. Depois, a população incluída em cada estudo é heterogénea e os protocolos não refletem as características individuais dos doentes, nomeadamente as diferenças expectáveis em termos de resultados considerando a indicação primária para traqueostomia. Nenhum dos estudos incluídos nesta revisão comparou os resultados da descanulação com base na indicação primária para traqueostomia. Em terceiro lugar, a maioria dos estudos relata os resultados de um único centro pediátrico, o que pode afetar a capacidade de generalização da informação recolhida, face à grande variabilidade de recursos humanos e materiais entre cada centro. Por outro lado, esta revisão restringiu as complicações a 6 meses após a descanulação, o que pode não refletir outros resultados negativos a longo prazo.
Estudos futuros que espelhem a realidade do serviço nacional de saúde português são necessários, na medida em que nenhum dos artigos incluiu a população portuguesa. Ademais, o papel da PSG prévia à descanulação ainda não está completamente claro, sendo necessário mais estudos que indiquem quais as crianças que podem beneficiar da sua realização de acordo com as condições subjacentes.
Conclusão
Nesta revisão sistemática foram discutidas as etapas necessárias para avaliar o doente pediátrico durante o processo de descanulação, bem como o seguimento hospitalar inerente após o procedimento.
Uma vez corrigida a indicação subjacente para a realização de traqueostomia, o doente pode ser considerado candidato para iniciar o processo de descanulação. Assim, no protocolo proposto para o HDE, a criança deve encontrar-se sem necessidade de suporte ventilatório, a tolerar a diminuição do tamanho da cânula de traqueostomia e a utilização de tampa, sem dessaturações ou sinais de dificuldade respiratória, diurnos ou noturnos.
Esforços futuros são necessários para o desenvolvimento de protocolos de descanulação em idade pediátrica relacionados com a causa subjacente à realização de traqueostomia, devido à grande variabilidade de resultados inerente.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.