Introdução
No ano de 2021 foi recebida, no Museu de História da Medicina Maximiano Lemos da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), uma rica e avultada doação de material médico-cirúrgico e de livros raros e antigos, tanto de Medicina como de Humanidades, proveniente do espólio do Dr. Samuel Allenby Bentes Ruah. Esta generosa doação partiu da iniciativa do seu filho, o Prof. Moisés Carlos Bentes Ruah, que reconhecendo a relevância dos seus livros pessoais para o conhecimento da Medicina do seu tempo, decidiu associá-los neste projeto aos de seu Pai. A doação revela apenas uma pequena fração da grandeza destas duas personalidades, representando quer a incessante busca pelo conhecimento, curiosidade e espírito de auto-atualização, como também a nobreza de espírito e o altruísmo que motivam esta entrega.
Este artigo propõe-se a rever a carreira destes dois médicos otorrinolaringologistas, cada um na sua geração, enquanto exemplos de excelência, sacrifício, dedicação e serviço. Através deste estudo, pretende-se lembrar alguns dos seus contributos, não só para a Otorrinolaringologia (ORL), mas também para a Medicina em geral, e preservar a memória de duas personalidades excecionais, quer em qualidades humanas, como técnicas, para que possam continuar a inspirar gerações vindouras de jovens médicos, tal como o fizeram durante as suas longas e frutíferas carreiras.
Material e Métodos
Na elaboração do presente artigo e no interesse de ganhar o melhor entendimento possível das personalidades visadas, foram consultadas diversas fontes. Em primeiro lugar, foi efetuada uma pesquisa online de toda a informação disponível acerca do Prof. Carlos Ruah e do Dr. Samuel Ruah, entre os quais artigos de revistas, as entrevistas dadas pelo Prof. Carlos Ruah aos media e o obituário do Dr. Samuel Ruah, disponível no website da Sociedade Portuguesa de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço (SPORL-CCP). De seguida, foi requisitada toda a documentação relevante ao Arquivo da Universidade de Lisboa, do qual, infelizmente, não foi obtida resposta em tempo útil para a sua inclusão no artigo. Adicionalmente, o autor principal participou, a 6 de maio de 2022, no 69.º Congresso da SPORL-CCP, no qual foi realizada uma homenagem ao seu Presidente de Honra, o Prof. Carlos Ruah.
Decorrida esta fase, foram realizadas várias entrevistas a pessoas de interesse na vida e carreira do Dr. Samuel Ruah e do Prof. Carlos Ruah: o Prof. Jorge Spratley, a Prof. Clara Capucho a Dra. Luísa Monteiro e o próprio Prof. Carlos Ruah e a sua esposa, a Arq. Fany Ruah.
Paralelamente a todo este processo, foi realizado pelo autor principal, com a colaboração dos coautores, a Prof. Amélia Ricon Ferraz e o Prof. Jorge Spratley, um esforço de catalogação do espólio doado ao Museu de História da Medicina Maximiano Lemos da FMUP, do qual resultou a catalogação total dos livros doados e uma catalogação parcial do material médico e cirúrgico.
Resultados
Doutor Samuel Allenby Bentes Ruah
Primeiros anos e Carreira Hospitalar
O Doutor Samuel Ruah nasceu a 20 de setembro de 1920, em Lisboa, onde completou toda a sua educação básica, tendo estudado no Liceu Camões. Terminou o curso de Medicina em novembro de 1944, iniciando, subsequentemente, a formação em ORL em 1946, no Hospital de S. José, sob a orientação do Dr. Alberto Mendonça. Terá sido o último discípulo deste médico que se reformou em 1949 por atingimento do limite de idade.1,2
Em fevereiro desse mesmo ano, 1949, foi-lhe concedido, pela Ordem dos Médicos, o título de Especialista e, em 1954, encontrava-se a realizar o Internato Intermédio, a cargo do Dr. Luís Macieira. Em 1959, foi aprovado no concurso para Assistente de ORL, tendo sido colocado no Serviço do Hospital de D. Estefânia (HDE). (1,2
Com o falecimento do Dr. Luís Macieira, em 1964, o Dr. Samuel Ruah assumiu, inicialmente de forma provisória, a Direção do Serviço, tendo sido promovido, definitivamente, ao cargo de Diretor em 1965. (1,2
Diretor do Serviço de ORL do Hospital Dona Estefânia
O Dr. Samuel Ruah foi Diretor do Serviço de ORL do HDE, durante 25 anos, até se aposentar, em 1990, por ter atingido o limite de idade. Durante estes anos, por sua iniciativa, foram fortemente incentivadas obras de remodelação e renovação assim como a modernização do Serviço: foram adquiridos importantes materiais de diagnóstico, observação e cirurgia, melhoradas as condições da enfermaria e fundado o Departamento de Alergologia, que, pelo facto de, nessa altura, se encontrar adstrito ao Serviço de ORL, ficou também sob a sua direção. (2,3 Por sua iniciativa foram promovidos ciclos de conferências e cursos de aperfeiçoamento. (2 Não obstante a importância da obra previamente mencionada, a que mais marcou a sua Direção foi a construção do Centro de Diagnóstico de Otorrinolaringologia e Imuno-Alergologia, aberto em dezembro de 1988, dotado dos meios tecnológicos mais modernos e das condições necessárias para um exercício da Medicina humano e tecnicamente avançado. Este Centro representou o culminar de um longo esforço em prol dos doentes contra as condições pouco dignas em que, até então, eram atendidos. (1-5
Relações Nacionais e Internacionais
Foi desde cedo que a dedicação e a tenacidade do Dr. Samuel Ruah se dilataram para além da sua carreira hospitalar, tendo relançado, junto do Dr. Silva Alves, a Sociedade Portuguesa de Otorrinolaringologia (SPORL), da qual foi Secretário-Geral entre 1959 e 1961.1 Participante ativo nas suas reuniões, seria o Sócio n.º1 da SPORL em 2010. (1,2 Paralelamente à sua função de diretor de Serviço, foi também Presidente do Colégio de Especialistas de ORL da Ordem dos Médicos entre 1978 e 1983. Foi ainda o representante de Portugal, primeiro como observador e depois como membro efetivo, na Union Europeènne des Medecins Specialistes, função que exerceu durante seis anos, e também no European Working Group in Pediatric Otorhinolaryngology. Assumiu a presidência e a vice-presidência da Sociedade Médica dos Hospitais Civis de Lisboa. (1,2 Era uma presença assídua e ativa em Congressos Nacionais e Internacionais e foi autor de uma vasta bibliografia, da qual constam cerca de 120 trabalhos publicados em revistas nacionais e estrangeiras, diversos capítulos de livros e um livro de texto em ORL sobre Otite Média, escrito em conjunto com o seu filho, o Prof. Carlos Ruah. (1,2
Medicina Privada
O Dr. Samuel Ruah exerceu na Clínica da Cruz Vermelha, em Lisboa. Contudo, a sua prática clínica no setor privado atingiu o seu expoente máximo com a criação da Clínica ORL Drs. Ruah, na Av. António Augusto Aguiar, em Lisboa. Nesta, trabalhou sozinho, e ao lado do seu filho, durante 55 anos, até ao seu falecimento. Altamente prestigiada, a clínica foi, ao longo dos anos, procurada por cerca de 140 mil pacientes, entre os quais altos cargos do Estado, diplomatas, dignatários estrangeiros, entre outros. (3,6
Professor Doutor Moisés Carlos Bentes Ruah
Primeiros anos e Carreira nos E.U.A.
O Professor Doutor Carlos Ruah nasceu a 18 de julho de 1955, em Lisboa, onde morou, com os pais, na casa dos seus avós na Av. Álvares Cabral, até aos quatro anos. Frequentou o ensino primário no Liceu Francês Charles Lepierre, de 1960 a 1965, ano em que transitou para o Liceu Normal Pedro Nunes, onde realizou todo o ensino liceal. Inscreveu-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa em setembro de 1972, tendo obtido a licenciatura a 25 de outubro de 1978, com uma média final de 16 valores.5
Após terminar o curso, realizou o seu Internato Hospitalar de 2 de janeiro de 1979 a 21 de fevereiro de 1981 enquanto Interno Policlínico do Hospital de Santa Maria, tendo terminado com a classificação de Apto. De seguida, realizou o Serviço Médico à Periferia no Centro de Saúde do Cadaval, de março de 1981 a março de 1982. No fim desse período, realizou, na embaixada americana, os exames de admissão ao Internato da Especialidade, nomeadamente o ECFMG (Educacional Comission for Foreign Medical Graduates), em julho de 1980, no qual obteve aprovação com percentil 79, e o VQE (Visa Qualifying Examination), em setembro de 1981. Foi com a aprovação neste que lhe foi permitido obter o visto de entrada nos Estados Unidos da América (E.U.A.) como médico e iniciar os seus internatos de forma tutelada. (5
Por despacho superior, foi desvinculado de funções em Portugal e autorizado a prosseguir a sua carreira médica nos E.U.A, onde ficaria durante oito anos, de 1982 a 1990. (5
A sua carreira internacional começou em Boston, com um Internato em Neurologia, sob a direção do Dr. Robert C. Feldman, realizado entre 1 de julho de 1982 a 30 de junho de 1983, no Veterans Administration Medical Center. Durante este estágio, realizou o FLEX (Federal Licensing Examination), o primeiro exame obrigatório da carreira médica americana. Obteve aprovação e ingressou, de seguida, num Internato de Cirurgia Geral, obrigatório nos E.U.A. para a entrada na Especialidade de ORL. Este foi realizado no Boston University Medical Center, de 1 de julho de 1983 a 30 de junho de 1984, sob a direção do Dr. Lester Williams. Prosseguindo a sua carreira, chegou finalmente à Especialidade de ORL, a 1 de julho de 1984, realizando o Internato sob a direção do Dr. M. Stuart Strong, até julho de 1985, e o Dr. George T. Simpson, desde então até 30 de junho de 1988, ano em que terminou o seu Internato. Durante o 3.º Ano deste estágio, realizou, ainda, formações parcelares em Anatomia Patológica Otorrinolaringológica e em Cirurgia Cosmética e Reconstrutiva Cérvico-Facial. (5
Findado o Internato, realizou o Exame de Especialidade em Chicago, onde foi o 2.º classificado em 400 examinados de todos os E.U.A., com o percentil final de 98 (18 valores). Com esta elevada classificação, foi-lhe possível obter o título de Especialista em ORL nos E.U.A., dispensar da realização da prova oral e obter o título de “fellow” da American Academy of Otolaryngology, Head & Neck Surgery. (5
Enquanto especialista, realizou, num curto espaço de tempo, uma vasta atividade clínica e de investigação, começando, entre 1 de julho de 1988 e 30 de junho de 1989, com uma sub-especialidade em Otologia e Oto-Neurologia cirúrgica e experimental, sob a orientação do Dr. Michael M. Paparella. Fez parte do quadro hospitalar do Riverside Medical Center, em Minneapolis, e realizou uma consulta mensal da especialidade nos hospitais de Wheaton, Ortonville e Buffalo. Foi membro do Minnesota Deparment of Health, onde participou numa consulta externa mensal para crianças com alterações congénitas cérvico-faciais, sendo, ainda hoje, Research Collaborator no Otitis Media Research Center, University of Minnesota. (5
Regresso a Portugal e Carreira Hospitalar
Após terminar a sua carreira hospitalar nos E.U.A., o Prof. Carlos Ruah regressa a Portugal, onde obtém, a 29 de maio de 1990, a equivalência ao grau de Assistente Hospitalar, concedida pelo Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde, o Dr. Albino Aroso. Começando, de novo, a sua carreira hospitalar em Portugal, inicia atividade clínica enquanto Voluntário no Serviço n. º5 de ORL do HDE, sob a direção do seu pai, de setembro de 1989 a 1 de novembro de 1991. Esta atividade foi interrompida por duas vezes para possibilitar a continuação das suas funções enquanto Research Collaborator na University of Minnesota. A 1 de janeiro de 1992, inicia funções como Tarefeiro no Serviço de ORL do Hospital Universitário Egas Moniz, sob a direção do Prof. Ruy da Silva Santos Penha, atividade que exerceu até à abertura de concurso de provimento de Assistente Hospitalar, o qual aconteceu em 9 de junho de 1994 e no qual ficou em primeiro lugar com 19,5 valores. Enquanto Assistente Hospitalar, as suas funções repartiram-se entre a Consulta Externa de ORL e Cabeça e Pescoço, o Serviço de Urgência, o Bloco Operatório e a Enfermaria. (5
Medicina Privada
Paralelamente à sua carreira assistencial hospitalar, o Prof. Carlos Ruah também foi bastante ativo no setor privado. Exerceu na Clínica Europa, em Carcavelos, mas, à semelhança do seu pai, o expoente máximo da sua atividade foi na Clínica ORL Drs. Ruah, onde trabalhou ao lado deste desde que regressou a Portugal, em 1990, até 2016. Nesse ano, com a morte do Dr. Samuel, a clínica foi encerrada e, a convite da Dra. Luísa Monteiro, Coordenadora da Unidade de Otorrinolaringologia do Hospital Lusíadas Lisboa, o Prof. Carlos Ruah transferiu a sua atividade para este hospital. (3,4,5
Atividade Docente
A atividade docente do Prof. Carlos Ruah começou cedo. Ainda na sua estada nos E.U.A. foi Assistente da cadeira de “Biology of Desease” da Boston University Medical Center, dedicada ao ensino de semiologia médica. Foi-lhe concedido o título de “Teaching Fellow in Neurology” em 1982 e 1983. Ainda nos E.U.A., foi “Guest Lecturer” na cadeira de Oral Oncology da School of Dental Medicine da Tufts University, de fevereiro de 1988 a 1 de maio de 1988. (5
Já em Portugal, lecionou a aula “Infeções ORL em Pediatria”, na cadeira de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa (FCM-UNL), a convite do Prof. Nuno Cordeiro Ferreira, durante o ano letivo de 1989/1990. (5
Nos dias 25 e 26 de novembro de 1993, como o culminar de um já longo e notável percurso de investigação, apresentou-se a provas para obtenção do grau de Doutor em Cirurgia Otorrinolaringológica, pela FCM-UNL. Estas provas consistiram numa dissertação de Doutoramento intitulada “Evolução pós-natal da membrana do tímpano humano normal e patológico - Implicações clínicas e epidemiológicas” e uma prova complementar, no qual foi apresentada uma monografia intitulada “Granuloma de colesterol no ouvido médio - Alguns aspectos sobre sua patogénese”. Obteve por unanimidade a classificação de Aprovado com Distinção e Louvor. (5
Foi Assistente Convidado, doutorado, da disciplina de Otorrinolaringologia da FCM-UNL, da qual era regente o Prof. Ruy Penha, desde 15 de dezembro de 1993 até 17 de agosto de 1994, tendo sido nomeado Professor Auxiliar desta mesma disciplina a 18 de agosto de 1994, função que exerceu até 2008. Adicionalmente, foi Preletor dos Cursos de Mestrado em Patologia Respiratória e em Audiologia, com início nos anos de 1996 e 1998, respetivamente. (5
Produção Científica
O Prof. Carlos Ruah conta com uma vastíssima bibliografia, tendo sido o autor de mais de 70 artigos originais de investigação, mais de 200 capítulos de livros por todo o mundo e três livros publicados. (4,5
Espólio Dr. Samuel Ruah
Com o falecimento do Dr. Samuel Ruah a 15 de janeiro de 2016, apagou-se uma vida de constante busca pelo saber e pela cultura. Essa vida de busca resultou num espólio valioso de livros de várias áreas do saber, desde as Humanidades à Medicina e Religião, e também de um vasto acervo de material médico e cirúrgico. A maioria deste resultou do encerramento da Clínica ORL Drs. Ruah, mas parte constitui material obsoleto, vindo do HDE, que o Dr. Samuel Ruah decidiu preservar pelo seu valor histórico. (5,7
Com a ambição de preservar da melhor maneira possível este acervo, o Prof. Carlos Ruah entrou em contacto com a Prof. Amélia Ricon Ferraz, por intermédio do Prof. Jorge Spratley, tendo-se organizado a transferência do espólio para o Museu de História da Medicina Maximiano Lemos da FMUP em 2021. (5,7
Este vasto espólio foi catalogado parcialmente, ao longo de dois anos e mais de 600 horas de trabalho, resultando num catálogo onde constam 386 livros diferentes, muitos deles extremamente raros, o qual conta com manuscritos do século XVI, uma grande variedade de livros raros do final do século XIX e início do século XX, abrangendo temas muito além da ORL, como a Medicina de Guerra na altura da Primeira Guerra Mundial, o Judaísmo e a Causa Monárquica. Estão presentes, também, 334 itens de material médico e cirúrgico. Infelizmente, constrições temporais ditaram a impossibilidade de completar o esforço de catalogação, o qual o autor apela fortemente a que seja continuado, pela necessidade de preservar devidamente o valor incalculável deste espólio, quer para a História da ORL e Cirurgia da Cabeça e Pescoço, quer para a Medicina em Geral e para uma diversidade de temas nomeadamente sobre o Judaísmo.
Discussão
Doutor Samuel Allenby Bentes Ruah
O Dr. Samuel Ruah, Médico, Diretor de Serviço, Homem de família, Pai e Avô, deixou uma vastíssima herança. O autor deste artigo teve o privilégio de poder contactar com uma pequena parcela da manifestação física desta herança, no Espólio doado, e procurou, através daqueles que tiveram a felicidade maior de trabalhar, conviver e aprender com ele, contactar com o verdadeiro Espólio do Dr. Samuel Ruah, que foi o seu legado humano, traduzido nas palavras da sua discípula, a Dra. Luísa Monteiro, “um Mestre, um Amigo e (para) alguns, um segundo Pai, sempre protetor dos seus”. (1
Enquanto Diretor, é lembrado como alguém justo, com princípios éticos e morais invejáveis, dos quais nunca abdicou. (3,5,6,7 Era uma pessoa que cultivava no Serviço um ambiente de apoio, cordialidade, camaradagem e também de competição saudável e agradável. Um líder assertivo, mas solidário, que tratava todos os internos, e mesmo alguns especialistas, por “meu filho” ou “minha filha” e que fomentava o desenvolvimento das capacidades que via nas pessoas a seu cargo, mesmo que elas próprias não as reconhecessem. (3
Enquanto Pessoa e Médico, é recordado universalmente como extremamente sério, dedicado, respeitado por todos e respeitador, afável e que procurava sempre o melhor para os seus doentes com a humildade de os referenciar a clínicos mais especializados na patologia particular do paciente, mesmo na sua prática privada. Era um homem com um conhecimento clínico extremamente profundo e em constante busca de atualização, que tinha uma paixão por livros antigos como se evidencia pela vastíssima biblioteca doada. (3,5,6,7
Como Pai e Avô, é recordado como uma pessoa rígida, dura e exigente, mas justa e boa. (5 Embora, por vezes, pouco presente pelas exigências do trabalho, que muitas vezes o forçavam a regressar a casa após a meia-noite, vivia muito a sua família, tendo um orgulho enorme nos cinco filhos e em tudo o que estes conseguiram na vida, mas também nos seus netos. (7,8 No caso do Prof. Carlos Ruah, desde os tempos em que o levava, ainda jovem, a assistir ao seu trabalho no Hospital. (4,5,9 Enquanto marido, quem os conheceu, recorda que formava com a D. Esther Buzaglo um casal extremamente unido, que viviam ativamente a vida um do outro e, principalmente, que sempre cuidaram um do outro desde o dia em que lutaram em conjunto contra a tuberculose em 1948. (4,7
Professor Doutor Moisés Carlos Bentes Ruah
Relativamente ao Prof. Carlos Ruah, o autor gostaria de realçar que teve a grande honra de o conhecer e que é testemunha, apesar do pouco tempo que tiveram para conversar, de muito do que é referido pelos seus colegas, amigos e família, nomeadamente a sua humildade, excelente sentido de humor, boa disposição, amabilidade, cordialidade e intelecto.
É, à semelhança de seu Pai, um exemplo de serviço, dedicação, valores éticos e morais irrepreensíveis e de amor à Medicina enquanto vocação e arte. (3,6,7 Seguiu o percurso do Pai e, nas palavras do próprio, “nunca tive outra escolha senão Otorrino”, não por influência do seu Pai, mas justamente por conforto com o seu legado. (4,5 Legado esse que honrou, inquestionavelmente, em todas as etapas da sua viagem: desde o Centro de Saúde do Cadaval, no qual, demonstrando a sua característica humildade, decidiu dedicar-se, de forma praticamente exclusiva, ao estudo da teoria médica para estar o melhor preparado possível para a prática clínica. (4 Passa também pela aventura, contra as expectativas da época, da especialização nos E.U.A., onde se destacou entre os melhores do mundo na ORL e deu asas ao seu génio para a investigação, fazendo tudo para trazer conhecimentos valiosos e inovadores. No regresso a Portugal, teve de ultrapassar dificuldades durante a sua reintegração num Serviço Nacional de Saúde que não parecia querer ter lugar para médicos formados no estrangeiro. (4,6 Pela sua competência e sagacidade, transpôs os obstáculos e chegou ao Hospital Egas Moniz, onde, para além de promover ativamente a divulgação do conhecimento científico, desenvolveu um programa de internato à frente do seu tempo, dotando a sua interna de autonomia e confiança para aprender, compreender e ter sucesso. (6 Esta brilhante viagem passou também pela Clínica ORL Drs. Ruah e o Hospital Lusíadas, locais onde, tal como em todos os outros sítios onde trabalhou, demonstrou ser, recorrendo a palavras da sua discípula, a Prof. Clara Capucho, um médico muito atento, muito perspicaz, que sabia ouvir muito bem o doente, com muita tranquilidade e muita calma, uma pessoa superiormente inteligente, genial, muito humana e dotada de uma preocupação excecional com os doentes. (6
É professor, investigador, médico, mestre, colega, amigo de dezenas e respeitado por milhares, mas talvez para si mais importante do que tudo, marido, filho e pai. Pai que, à semelhança do seu, muitas vezes com menos tempo do que gostaria para dedicar à família, esteve sempre presente e que fez e faz tudo para apoiar a sua descendência. (3,6,7
Conclusão
São mais de 33 os anos que separam o início das carreiras destes dois médicos, pai e filho. Tal como referem todos os entrevistados pelo autor, imensos os avanços que separam estas duas gerações, em termos tecnológicos, científicos, técnicos e de facilidade de acesso à informação. (3,6,7 Estes factos encontram-se espelhados no acervo documental e instrumental doado ao Museu de História da Medicina Maximiano Lemos da FMUP. No entanto, é transversal aos dois percursos de vida o cerne do pensamento do Prof. Jorge Spratley, “O espírito humano, isso mantém-se, as pessoas que querem ser bons médicos têm que ter um espírito de humanidade inata, têm que ter espírito de sacrifício, e estas duas pessoas de que nós falámos são exemplos fantásticos disso, cada um na sua geração”. (7
Agradecimentos
Os autores agradecem profundamente à Prof. Clara Capucho, à Dra. Luísa Monteiro, ao Prof. Carlos Ruah, à Dra. Fany Ruah e à restante família Ruah por todo o seu tempo, disponibilidade, apoio e atenciosidade que permitiram a realização deste artigo.