Introdução
A meningite bacteriana representa uma das principais causas adquiridas de surdez neurossensorial (SNS) (1, sendo que a surdez pode ocorrer dentro de 48h após o início do quadro2. A SNS profunda definitiva desenvolve-se em aproximadamente 10% dos doentes após meningite bacteriana, ocorrendo maioritariamente por lesão direta das células do órgão de Corti, através da disseminação da infeção do espaço subaracnoide ao aqueduto coclear, com consequente fibrose e ossificação da cóclea2,3.
A introdução da vacinação diminuiu drasticamente o número de casos de meningite por Haemophilus influenza do tipo B, sendo que, atualmente os agentes mais frequentes são o Streptococcus pneumoniae e a Neisseria meningitidis1,2,3,4.
A cirurgia de implantação coclear (IC) nestes doentes, uni ou bilateral, pode ser de caráter prioritário, devendo a referenciação ser feita de forma urgente. No entanto, existem factores que tornam este procedimento desafiante quando comparado com um grupo de doentes sem antecedentes de meningite. A labirintite ossificante, resultante da disseminação da infeção meníngea aos espaços cocleares, afeta principalmente a espira basal da escala tympani, e quando presente, pode ser um obstáculo à inserção dos elétrodos cocleares5. Desta forma, a labirintite ossificante, descrita em 30-57% dos doentes pós meningite bacteriana, é dos principais contribuintes para o baixo out-come funcional da reabilitação com implante coclear, mesmo na presença de ossificação mínima e introdução total dos elétrodos na cóclea1.
Este estudo tem como objetivo apresentar os resultados da implantação coclear pós MB, nomeadamente o ganho auditivo obtido, tempo de utilização e melhoria da qualidade de vida.
Material e Métodos
Estudo retrospetivo, transversal, baseado na análise de dados de doentes com SNS severa e profunda decorrente de meningite bacteriana.
Os dados recolhidos foram introduzidos nuam base de dados, sendo que o estudo estatístico foi realizado recorrendo ao Excel para iOS.
Os doentes foram submetidos a cirurgia de implante coclear uni ou bilateral. Todas as cirurgias foram realizadas pelo mesmo cirurgião, no bloco operatório central do Hospital Egas Moniz, Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, entre 2014 e 2022.
Critérios de inclusão foram SNS severa e profunda, otoscopia normal e ausência de doença do ouvido médio.
Foram excluídos todos os sujeitos com diagnóstico incerto de meningite bacteriana como causa de SNS.
A amostra englobou 13 doentes.
A língua materna de todos os doentes é o português. Este grupo inclui doentes com nacionalidade portuguesa, mas também de países de língua oficial portuguesa (PALOPs).
Foram recolhidos dados demográficos, tempo entre a meningite bacteriana e a IC, lateralidade da IC, presença de ossificação da cóclea, inserção dos elétrodos e telemetria de resposta neuronal (NRT) peri operatória.
Todos os doentes foram submetidos a avaliação formal da audição através de audiograma tonal e vocal pré e pós IC. O tempo mínimo de follow-up foi de um ano.
A presença de ossificação da cóclea foi avaliada através de tomografia computorizada (TC) do ouvido pré-operatória.
Informações relativas ao grau de satisfação dos doentes foram recolhidas através da aplicação da Escala Nijmegen Cochlear Implant Questionnaire (NCIQ) validada para português europeu, e da média de utilização diária do implante.
Resultados
Foram submetidos a IC 13 doentes com SNS adquirida, severa a profunda, pós meningite bacteriana. A amostra incluiu 7 doentes do sexo feminino e 6 do sexo masculino. Sete são de nacionalidade portuguesa e residentes em Portugal e 6 foram referenciados de PALOPs.
Deste grupo, 4 foram diagnosticados com meningite bacteriana durante a infância, 3 durante a adolescência e 6 na idade adulta. Apenas 3 doentes foram referenciados precocemente. O tempo decorrido entre a MB e IC foi em média 24 anos, sendo que o tempo mínimo foi de 1 mês e o máximo de 59 anos (tabela 1).
No pré-operatório, apenas 4 doentes apresentavam ossificação parcial da cóclea na TC do ouvido.
No total, 17 ouvidos foram submetidos a IC. O procedimento foi unilateral em 9 doentes, e bilateral em 4 doentes. A implantação bilateral foi realizada no mesmo tempo cirúrgico em 2 casos e nos outros 2 casos foi realizada de forma sequencial, com intervalo de 4 e 11 meses entre as cirurgias. A inserção dos elétrodos na cóclea foi total em todos os ouvidos, à exceção de 1. A telemetria de resposta neuronal (NRT) peri operatória não teve resposta nos elétrodos basais de 5 ouvidos, 2 dos quais apresentava ossificação parcial da cóclea (tabela 2).
Tabela 1: Dados relativos à idade da infeção, ano da infeção, ano da cirurgia de implantação coclear e tempo decorrido entre a infeção meníngea a e cirurgia de implantação coclear em anos. n=13
| Doente | Idade da infeção (anos) | Ano da infeção | Ano da cirurgia de IC | Tempo infeção-IC (anos) |
| 1 | 16 | 2010 | 2018 | 8 |
| 2 | 63 | 2013 | 2018 | 5 |
| 3 | 54 | 2018 | 2018 | 0,33 |
| 4 | 42 | 2016 | 2018 | 2 |
| 5 | 39 | 2019 | 2019 | 0,08 |
| 6 | 14 | 2001 | 2021 | 20 |
| 7 | 56 | 2021 | 2022 | 1,25 |
| 8 | 4 | 1958 | 2017 | 59 |
| 9 | 0,60 | 1963 | 2014 | 51 |
| 10 | 0,20 | 1996 | 2018 | 22 |
| 11 | 13 | 1961 | 2019 | 58 |
| 12 | 42 | 2021 | 2022 | 0,58 |
| 13 | 1 | 1960 | 2014 | 54 |
Dos 13 doentes iniciais, 6 foram perdidos durante o follow-up. Dos restantes 7 doentes: Seis ouvidos atingem inteligibilidade de 100% com a utilização do implante (2 dos quais apresentavam ossificação da cóclea na TC pré-operatória), e 3 apresentam inteligibilidade de 0%.
Não se encontrou uma relação entre a ossificação da cóclea e a inteligibilidade.
A média de utilização diária foi de 12,4h.
Tabela 2: Dados relativos à presença de ossificação da cóclea em imagem de TC do ouvido pré-operatória, lateralidade da cirurgia, informação relativa à inserção dos elétrodos na cóclea e telemetria de resposta neuronal realizada no peri operatório. n=13
| Doente | Sinais de ossificação | Lateralidade da cirurgia | Inserção dos elétrodos na cóclea | Telemetria de resposta neuronal |
| 1 | Ausente | Unilateral | Total | Presente em todos os elétrodos |
| 2 | Ausente | Unilateral | Total | Presente em todos os elétrodos |
| 3 | Ausente | Unilateral | Total | Presente em todos os elétrodos |
| 4 | Presente | Bilateral | Total | Ausente nos elétrodos basais |
| 5 | Ausente | Bilateral | Total | Ausente nos elétrodos basais |
| 6 | Presente | Unilateral | Total | Presente em todos os elétrodos |
| 7 | Presente | Unilateral | Total | Presente em todos os elétrodos |
| 8 | Ausente | Unilateral | Total | Ausente nos elétrodos basais |
| 9 | Ausente | Unilateral | Total | Presente em todos os elétrodos |
| 10 | Presente | Unilateral | Total | Ausente nos elétrodos basais |
| 11 | Ausente | Unilateral | Total | Presente em todos os elétrodos |
| 12 | Ausente | Bilateral | Total | Presente em todos os elétrodos do ouvido direito Ausente nos elétrodos basais do ouvido esquerdo |
| 13 | Ausente | Unilateral | Parcial | Presente em todos os elétrodos |
A média da satisfação global do NCIQ foi 49,38, e a média dos subdomínios relativas à perceção básica do som e perceção avançada do som foi 50,36 e 34,29, respetivamente. A tabela 3 resume os resultados do questionário NCIQ.
| Doente | PBS | PAS | PF | AE | LA | IS | Score Total |
| 2 | 37,5 | 47,5 | 80 | 32,5 | 35 | 55 | 60,42 |
| 5 | 30 | 20 | 87,5 | 42,5 | 42,5 | 65 | 46,25 |
| 7 | 37,25 | 47,5 | 80 | 32,5 | 35 | 55 | 37,25 |
| 8 | 60 | 30 | 55 | 47,5 | 47,5 | 50 | 53,33 |
| 9 | 27,5 | 20 | 35 | 27,5 | 40 | 47,5 | 46,25 |
| 11 | 67,5 | 40 | 70 | 60 | 57,5 | 56,25 | 47,5 |
| 12 | 62,5 | 40 | 50 | 47,5 | 37,5 | 45 | 58,75 |
| Média | 50,36 | 34,29 | 61,07 | 43,93 | 50,00 | 56,61 | 49,38 |
Discussão
Ossificação da Cóclea
A ossificação da cóclea constitui uma adversidade à implantação da coclea em doentes pós meningite bacteriana, uma vez que a sua presença interfere com a correta e total inserção dos elétrodos cocleares na escala tympani. A presença de ossificação coclear, mesmo que ligeira e associada à inserção total dos elétrodos, é o principal factor de risco para um baixo out-come audiométrico pós-operatório. (1
No entanto, resultados deste estudo mostraram uma introdução total dos elétrodos na cóclea, em todos os 4 doentes que apresentavam ossificação da cóclea na TC do ouvido pré-operatória. Destes 4, 2 não apresentaram NRT nos elétrodos basais, mas a avaliação audiométrica mostra uma inteligibilidade de 100% aos 40dB num caso e aos 60dB no outro caso.
Estes resultados são corroborados por Carvalho et al., na presença de ossificação coclear sem obliteração, a inserção parcial dos elétrodos pode ser realizada com out-comes audiométricos favoráveis. Contudo, devido à menor estabilidade dos elétrodos parcialmente inseridos, existe maior risco de extrusão a longo prazo. (6
Tempo entre infeção e cirurgia de implantação coclear
Uma vez que o processo de osteoneogénese da cóclea ocorre nas primeiras semanas após o início do quadro de meningite, todos os doentes devem ser submetidos a avaliação audiométrica 4 a 8 semanas após a alta hospitalar. Um estudo mostrou que o sucesso da implantação coclear foi superior em crianças implantadas até 6 meses após infeção meníngea, quando comparado com um grupo de crianças implantadas com mais de 6 meses após a infeção. (7
No presente estudo, o tempo mínimo entre a infeção meníngea e a cirurgia de implantação coclear foi de 4 semanas, enquanto o tempo máximo foi de 59 anos.
Uma puérpera de 39 anos, com meningite bacteriana iatrogénica após epidural, com isolamento de Streptococcus agalactea na cultura do líquido cefalorraquidiano, foi submetida a implantação coclear bilateral simultânea 1 mês após o início do quadro. A TC pré-operatória não evidenciou sinais de ossificação coclear mas, no intraoperatório, observou-se tecido de granulação na janela redonda bilateralmente. Um ano após implantação coclear, apresenta uma inteligibilidade máxima de 70% aos 50dB, com diminuição da inteligibilidade com o aumento da intensidade em ambos os ouvidos.
Contrariamente, um doente com antecedentes de meningite bacteriana aos 2 anos de idade, cuja TC pré-operatória evidenciava ossificação coclear bilateral, foi submetido a implantação coclear do ouvido direito aos 22 anos. A inserção dos elétrodos na cóclea foi incompleta e o NRT intraoperatório estava ausente nos elétrodos basais. Um ano após implantação coclear, o ouvido implantado apresenta uma inteligibilidade de 100% aos 60dB.
Estes resultados levam-nos a acreditar, que o tempo entre a infeção meníngea e a cirurgia de implantação coclear não é, por si só, factor determinante do sucesso audiométrico pós-operatório.
Lateralidade
Perante uma SNS pós-meningite em crianças e em adultos, recomenda-se a implantação coclear precoce e bilateral pelo risco de ossificação da cóclea. Além disso, vários estudos mostram o benefício do implante coclear bilateral na inteligibilidade da fala no silêncio e no ruído1.
Neste estudo, apenas 4 doentes foram submetidos a implantação coclear bilateral. Um dos doentes implantados bilateralmente diz respeito à doente já mencionada, sendo que a implantação coclear foi simultânea e ocorreu 1 mês após a meningite bacteriana. O outro caso de implantação coclear simultânea diz respeito a um doente que contraiu meningite bacteriana aos 42 anos de idade, tendo sido submetido a cirurgia 7 meses após a infeção. A TC de ouvido pré-operatório não evidenciou sinais de ossificação do labirinto e a inserção dos elétrodos foi total em ambos os ouvidos, mas o NRT estava ausente nos elétrodos basais do implante coclear esquerdo. Atualmente, apresenta uma inteligibilidade de 0% no ouvido direito, atingindo os 100% aos 50dB no ouvido esquerdo.
Uma doente de 24 anos, com infeção meníngea aos 16 anos, foi implantada bilateralmente 8 anos após o início da surdez. A implantação foi sequencial, com intervalo de 7 meses entre as cirurgias. Atualmente, atinge discriminação de 100% a 50dB em ambos os ouvidos. Outro caso de implantação sequencial, com intervalo de 11 meses entre as cirurgias, diz respeito a um doente com antecedentes de infeção meníngea aos 14 anos de idade, tendo a sido submetido à primeira cirurgia aos 35 anos (tempo infeção-implantação 21 anos).
Este estudo apresenta limitações, nomeadamente o desenho retrospetivo do estudo, o tamanho da amostra, heterogeneidade da amostra (diferentes idades, diferentes timings de surdez e de implantação) e a perda de follow-up ao longo do tempo. Consequentemente não permitiu tirar uma conclusão relativamente à relação entre a ossificação da cóclea e a inteligibilidade da fala após implantação coclear. O ponto forte do estudo é que todas as cirurgias foram realizadas pelo mesmo cirurgião.
Conclusão
Os resultados apresentados sugerem que a reabilitação auditiva com implante coclear dos doentes com surdez induzida por MB é eficaz, melhorando os níveis de inteligibilidade e de qualidade de vida, mesmo nos casos de referenciação tardia e na presença de fibrose/ossificação parcial da cóclea. Assim sendo, estes dois fatores não deverão ser por si só uma contraindicação à implantação coclear.














