Introdução
Os carcinomas neuroendócrinos (CNE) da laringe são subtipos raros de tumores de Cabeça e Pescoço (CP), representando menos de 1% de todas as neoplasias primárias da laringe. São o segundo subtipo histológico mais comum de tumores da laringe a seguir ao carcinoma epidermóide. A localização mais frequente de tumores neuroendócrinos na CP é a laringe. Os CNE da laringe são mais frequentes na região supraglótica (57,9%) e a maioria dos pacientes (66,7%) apresentam-se em estádio IV ao diagnóstico 1,7.
Estes tumores têm origem a partir de células pluripotentes e segundo a classificação da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2017, são subdivididos em diferentes graus: carcinoma bem diferenciado de Grau 1, o carcinoma moderadamente diferenciado de Grau 2 e CNE pouco diferenciado de Grau 3, que inclui os subtipos de carcinoma neuroendócrino de pequenas células (CNEPC), mais frequente, e CNE de grandes células, menos frequente 1,2.
Estes tumores afetam predominantemente o sexo masculino, numa proporção de 3 para 1 em relação ao sexo feminino 4,12. O diagnóstico ocorre geralmente entre a quinta e sétima décadas de vida, e frequentemente está associado a história de tabagismo 12.
A apresentação clínica deste tumor é marcada por sintomas inespecíficos, como disfonia, disfagia e odinofagia, resultantes do efeito de massa causada pelo tumor. Em raros casos, manifestam-se como síndromes paraneoplásicas devido à superprodução hormonal pelo tumor 4.
Os diferentes subtipos de tumor podem apresentar sobreposição de características histológicas e imunohistoquímicas, tornando-se um desafio ao estadiamento e ao diagnóstico. O estadiamento desta patologia é feito com base na classificação TNM18, estando recomendada a realização de tomografia computorizada (TC) com contraste ou ressonância magnética (RM) da CP e TC torácico, podendo ser ponderada a realização de tomografia por emissão de positrões (PET).
As opções terapêuticas podem incluir uma combinação de cirurgia, quimioterapia e radioterapia 5. Para tumores bem diferenciados, a remoção cirúrgica é a principal estratégia terapêutica, passando habitualmente por uma laringectomia subtotal ou total, dependendo das dimensões do tumor, sem necessidade de linfadenectomia tendo em conta que é raro estes tumores apresentarem metastização ganglionar. A radioterapia e a quimioterapia não mostraram eficácia neste subtipo de tumores5. Já para os moderadamente diferenciados, recomenda-se a cirurgia combinada com esvaziamento ganglionar dos níveis IIA e III para os tumores supraglóticos e glóticos. A radioterapia e quimioterapia neoadjuvantes, adjuvantes ou até mesmo com intuito radical mostraram eficácia em alguns doentes 7,13. Em pacientes diagnosticados com CNEPC ou grandes células a cirurgia não mostrou impacto no controlo local da doença pelo que não é o tratamento recomendado. Este passa por radioterapia radical associada a quimioterapia concomitante ou adjuvante5. Relativamente aos esquemas de tratamento com Radioterapia radical para os tumores supraglóticos da laringe, estes podem variar, geralmente entre 66 e 70 Gy administrados em doses diárias de 2 Gy para áreas de alto risco e para áreas de baixo risco, a dose pode variar entre 45-50 Gy (2 Gy/dia) ou 54-63 Gy (1.6-1.8 Gy). Quando em concomitância com quimioterapia a dose total para zonas de alto risco é de 70 Gy administrados em doses diárias de 2 Gy e 44-50 (2Gy/dia) e 54-63 Gy (1.6-1.8 Gy) 17.
Relativamente ao esquema de quimioterapia, os esquemas classicamente utilizados nos primeiros estudos publicados incluíam agentes como ciclofosfosfamida, doxorrubicina, vincristina, metotrexato e lamustina 5, mas estudos mais recentes recorrem à cisplatina associada ou não a etoposídeo 14,15,16. Apesar de não haver, uma recomendação clara relativamente ao esquema de quimioterapia a utilizar concomitante com a radioterapia no tratamento do CNEPC da laringe, o esquema recomendado no tratamento do carcinoma de pequenas células do pulmão 19 e no carcinoma de pequenas células nasossinusal 17 é a associação de cisplatina e etoposídeo.
Dada a raridade destes tumores, a descrição detalhada das experiências de tratamento é fundamental para compreender o comportamento clínico-patológico e, assim, determinar a melhor abordagem terapêutica. Neste contexto, os autores apresentam um caso clínico de um CNEPC da laringe, seguido por uma revisão da literatura para contextualização e fundamentação do tema.
Resultados | Descrição do Caso
Doente do sexo feminino, 73 anos, com antecedentes pessoais de asma, enfisema pulmonar, fumadora de 52 unidades maço ano (UMA) e doença renal crónica grau 3b/4, menciona disfonia com anos de evolução e com agravamento há uma semana. Na nasofaringolaringoscopia (NFL) inicial apresentava lesão vegetante com cerca de 1 cm de diâmetro inserida na aritenoide/prega-ariepiglótica direita, e extensão aparente à banda ventricular ipsilateral. Os seios piriformes estavam livres bilateralmente. A visualização das cordas vocais foi dificultada pelas dimensões da lesão, mas aparentavam ter mobilidade preservada. À palpação cervical: sem adenopatias ou tumefações palpáveis. Na tomografia axial computadorizada (TAC) cérvico-torácica observava-se uma neoplasia pseudonodular, aparentemente na prega ariepiglótica direita, medindo cerca de 1,5 x 1 cm (figura 1), com aparente invasão da gordura pré-epiglótica e sem aparente invasão da cartilagem tiroideia, nem evidência de adenomegalias cervicais, mediastínicas ou hilares (figura 1).
A doente foi submetida a laringoscopia em suspensão para realização de biópsias da lesão e estadiamento da mesma. O exame histológico revelou CNEPC (figuras 2) com imunorreatividade para sinaptofisina, cromogranina, CKAE1/AE3, p16 e índice proliferativo (Ki67) de 70-80% (figuras 3). Os exames de estadiamento (RM cerebral e TC cervicotorácica) excluíram a metastização à distância.
A doente foi estadiada como tendo um CNEPC, cT3 N0 M0. A decisão da consulta de grupo multidisciplinar foi a de realizar tratamento de quimioterapia e radioterapia concomitantes.
Ainda antes de iniciar o tratamento proposto, a doente deu entrada no Serviço de Urgência por um quadro de dispneia aguda e estridor inspiratório, agravados pelo decúbito dorsal. A NFL revelou um aumento das dimensões da neoplasia, que apresentava agora um movimento de báscula para o inlet laríngeo durante a inspiração. Embora a sua visualização fosse limitada, a mobilidade das cordas vocais parecia estar preservada. Após a discussão das opções terapêuticas com a doente, de entre as quais a traqueostomia cirúrgica, foi decidida a realização de uma laringoscopia em suspensão para realização de debulking tumoral com recurso a LASER CO2 na urgência. Foi realizada uma exérese aparentemente completa da lesão, juntamente com parte da prega ariepiglótica e da banda ventricular direita, com exposição do espaço paraglótico ipsilateral. A análise anatomo-patológica ulterior comprovou o sucesso cirúrgico (pT3 N0 R0).
A doente iniciou tratamento de radioterapia com dose total de 70Gy ao leito laríngeo, em 35 frações, com fracionamento diário de 2Gy dia, com técnica Volumetric Modulated Arc Therapy (VMAT) / Image-Guided Radiation Therapy (IGRT), energia de 6MV, segundo plano de dosimetria computorizado. Realizou também quimioterapia concomitante com carboplatino (área abaixo da curva (AUC) 5, dia 1), com etoposídeo (100 mg/m2 dia 1, 2 e 3) de 21 em 21 dias. Ao final do segundo ciclo de QT a doente suspendeu o tratamento de RT durante 5 dias, por neutropenia febril com necessidade de internamento. Três meses após o fim do tratamento a doente encontra-se com bom estado geral e sem queixas relacionadas com o tratamento.
Discussão
O CNEPC é um tumor raro e heterogéneo, com características distintas do carcinoma epidermóide. Nos tumores da cabeça e pescoço a laringe é o órgão mais frequentemente afetado por esta entidade. Estes tumores surgem em qualquer região da laringe, sendo a região supraglótica a localização mais frequentemente referida 1,3,5. O prognóstico destes tumores está pouco relacionado com o estadio à apresentação, contrariamente com o que acontece no carcinoma epidermóide 3. As características histológicas destes tumores são o principal fator preditivo para o prognóstico e comportamento da doença.
Os autores relatam um caso clínico de uma paciente do sexo feminino, 73 anos, com diagnóstico de CNEPC da laringe. Trata-se de um caso peculiar não só pela raridade do tipo histológico, mas também pela sua ocorrência numa doente do sexo feminino, muito mais raro do que no sexo oposto, e pela aparente ausência de metastização ao diagnóstico, que também é pouco frequente neste grupo de doentes.
O tratamento pode incluir a combinação de quimioterapia, cirurgia e radioterapia 11. A combinação das diferentes terapêuticas é considerada mais eficaz e, devido à raridade dos CNEPC da laringe, a estratégia é semelhante ao tratamento do cancro de pequenas células do pulmão e consiste na combinação de radioterapia e quimioterapia 3,5,8,9. A radioterapia radical mostrou eficácia no controlo local da doença, contudo sem impacto na sobrevida global. A combinação com quimioterapia adjuvante é o que parece aumentar a sobrevida, resultando numa sobrevida global de 55 meses, fazendo desta a abordagem terapêutica preferencial3,5.
Não existe consenso sobre o esquema de quimioterapia a utilizar, tendo neste caso sido utilizada a associação de etoposídeo com carboplatina, baseado naquele que é o esquema mais descrito em séries de casos e revisões publicadas mais recentemente 14,15,16), sendo também o recomendado nas recomendações internacionais para o tratamento de carcinoma de pequenas células do pulmão 19 e nasossinusal 17, ou seja, a associação de cisplatina e etoposídeo. Neste caso optou-se por substituir a cisplatina por carboplatina pela história de doença renal crónica grau 3b/4.
No caso clínico descrito as características anatomopatológicas e imunohistoquímicas apresentadas e as evidências da literatura, a decisão da consulta multidisciplinar de grupo oncológico de cabeça e pescoço, para esta doente foi a realização de quimiorradioterapia concomitante, com o esquema carboplatina e etoposídeo por decisão do oncologista assistente.
Os autores referem que o esquema de tratamento aplicado ao paciente utilizando quimiorradioterapia, foi bem tolerado, com uma toxicidade aguda leve, evidenciando a viabilidade e a eficácia dessa abordagem terapêutica. Após três meses do término do tratamento, a paciente permaneceu clinicamente estável, sem queixas relacionadas ao tratamento.
Mesmo com a associação de radioterapia e quimioterapia, a taxa de recidiva é muito elevada 9. Relativamente à sobrevida, esta é superior a 5 anos após o diagnóstico inicial, apresentando uma sobrevivência global semelhante aos carcinomas de pequenas células do pulmão 8. De todos os subtipos de tumores neuroendócrinos da laringe, o pouco diferenciado (grau 3), de pequenas ou grandes células, é o que está associado a pior prognóstico, tratando-se do subtipo mais letal de tumor da laringe 8. Está associado ao desenvolvimento de metástases em 90% dos casos, existindo inclusivamente autores que defendem que deve ser abordado, ad initium, como uma doença sistémica, tal como o carcinoma de pequenas células do pulmão 5.
A revisão da literatura reforçou a escassez de dados e a complexidade na gestão deste tipo de casos, enfatizando a importância da descrição clínico-patológica detalhados para compreender melhor a evolução clínica e a resposta à terapêutica.
Por fim, alguns estudos sugeriram uma elevada taxa de recorrência, destacando a necessidade de um acompanhamento rigoroso para atuação tão precoce quanto possível, assim como follow-up a longo prazo para avaliar a eficácia do tratamento e a sobrevida dos pacientes. O caso clínico descrito tem a limitação temporal de follow-up, no entanto, até ao momento apresenta-se com bom estado geral e sem queixas.
Conclusão
O CNEPC da laringe é uma condição rara e heterogénea que apresenta desafios diagnósticos e terapêuticos. Apesar dos avanços no tratamento, a sua gestão permanece complexa, destacando a importância da descrição detalhada dos casos clínicos e do acompanhamento rigoroso a longo prazo para melhor compreensão da evolução clínica e resposta ao tratamento.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.