Introdução
Para os atletas, um estado de saúde ideal é indispensável para proporcionar o melhor desempenho físico. As funções mais importantes das vias áreas superiores passam pela humidificação e aquecimento do ar inspirado, sendo também estas a primeira barreira contra partículas ambientais, como alérgenos, patógenos ou irritantes.1) Os atletas ao realizarem exercício físico intenso e atendendo ao aumento da demanda metabólica aumentam significativamente a ventilação por minuto, tornando as vias aéreas um dos seus sistemas orgânicos mais importantes. (2 Os efeitos agudos do exercício nas vias aéreas superiores encontram-se bem estabelecidos: a vasoconstrição dos vasos de capacitância, com o consequente aumento do volume da cavidade nasal e aumento da ventilação nasal absoluta. (3 No entanto, as consequências a longo prazo do exercício nas vias áreas não são ainda totalmente compreendidos.
A prevalência de rinite em atletas varia amplamente na literatura, de 15 a 47%.4 As disparidades nas definições de rinite, na metodologia do estudo e nas populações de atletas estudadas podem ser responsáveis por esta ampla prevalência encontrada. Por exemplo, alguns estudos incluíram populações de atletas que praticavam desportos aquáticos ou em ambientes de ar frio. No entanto, tanto o ar frio quanto o cloro são irritantes para a mucosa nasal, e os atletas que praticam exercícios nesses ambientes estão mais predispostos a fenótipos de rinite não alérgica. (5),(6
A associação entre exercício físico intenso e asma tem sido alvo de debate na comunidade científica de longa data, mas, mais recentemente, o interesse nas vias aéreas superiores dos atletas ganhou mais atenção. (7 Os atletas parecem sofrer mais frequentemente de sintomas nasais em comparação com a população não ativa8, e alguns dados da literatura sugerem que fatores relacionados à ventilação excessiva e/ou exposições ambientais podem ser o fator causal para a disfunção das vias aéreas superiores. (9
O questionário Allergy Questionnaire for Athletes (AQUA), desenvolvido a partir do European Community Respiratory Health Survey Questionnaire, sendo o primeiro questionário validado para rastreio de alergias em atletas. (10 Este questionário reúne também informações sobre a modalidade praticada, intensidade do treino e hábitos relevantes. O questionário é uma ferramenta simples, composta de 25 perguntas, fácil de usar e auto-aplicável que permite a identificação, com alto valor preditivo positivo (0.94), de atletas que necessitam de um estudo adicional para alergia.
A escala Nasal Obstruction Symptom Evaluation (NOSE) é uma ferramenta desenvolvida por Stewart et al. e que avalia a qualidade de vida dos doentes com obstrução nasal. (11 Encontra-se validada para a população pediátrica12 e para português europeu13. Consiste num escala Likert de 5 pontos (0 até 4) e 5 questões que resultam numa pontuação somada (variando de 0 a 20) que é multiplicada por 5 para uma pontuação total de 0 a 100. Pontuações mais altas significam maior sintomatologia de obstrução nasal.
O estudo dos sintomas nasais e alérgicos não é feito por rotina no âmbito da medicina desportiva e o real impacto destas patologias na qualidade de vida e desempenho físico dos atletas não é conhecido. A maioria dos estudos inclui apenas população adulta, porém, é conhecido que cada vez mais cedo, os jovens praticam desporto de competição, tornando-se importante extender o estudo da sintomatologia alérgica em atletas em idade pediátrica. O objetivo deste estudo é o de determinar a incidência dos sintomas nasais/respiratórios e alérgicos tanto em atletas em idade pediátrica, como na população não ativa, mostrando a importância da combinação dos questionários AQUA e NOSE no rastreio destes doentes.
Material e Métodos
Este foi um estudo transversal com recurso a um questionário on-line de auto-preenchimento por jovens entre os 12 e 18 anos. Os participantes foram recrutados durante os meses de novembro e dezembro de 2023. Tanto atletas como controlos não ativos preencheram o inquérito composto pelos questionários AQUA e NOSE. Atletas foram definidos como indivíduos que realizam 4 horas ou mais de exercício por semana, fora do âmbito do desporto escolar obrigatório. Controlos “sedentários” foram definidos como aqueles que participam em menos de 4 horas de atividade por semana. Os critérios de exclusão foram: idade inferior a 12 anos ou superior a 18 anos e aqueles com comorbidades cardiorrespiratórias significativas (por exemplo, hipertensão não controlada, enfarte agudo do miocárdio prévio ou doença pulmonar conhecida e sem controlo conseguido). Os atletas foram identificados através de clubes desportivos e contactados com um convite para participar. Os grupos de controlos sedentários foram identificados por contacto com escolas portuguesas a lecionar às idades selecionadas. Cada participante forneceu consentimento informado para que os seus dados anónimos fossem usados para fins estabelecidos para este estudo. Das 436 respostas recebidas, 407 foram consideradas completas e incluídas neste estudo (290 atletas e 117 controlos não ativos).
Os participantes foram solicitados a fornecer dados demográficos (por exemplo, idade, sexo e tabagismo) e detalhes sobre sua carga de treino semanal e ambiente (por exemplo, número de horas de exercícios e exercícios em ambiente interno, externo ou misto). Os participantes foram também solicitados a fornecer informações específicas sobre os seus sintomas nasais. Especificamente, eles foram questionados se sofriam de obstrução nasal, rinorreia, prurido nasal ou esturnutos na maioria dos dias do ano. Os participantes foram ainda questionados acerca de informações adicionais sobre uso de fármacos tópicos e sistémicos, lesões ou procedimentos cirúrgicos prévios no nariz e sintomas de infeções das vias aéreas superiores (IVAS). Aos participantes sintomáticos, tanto atletas como controlos, foi oferecida uma consulta de imunoalergologia e de otorrinolaringologia, onde se realizou uma história clínica completa e exame objetivo de cada especialidade incluindo endoscopia nasal, bem como alguns exames complementares de diagnóstico, de referir rinometria acústica, teste cutâneos e provas de função respiratória.
Análise Estatística
O teste exato de Fisher foi utilizado para variáveis categóricas e o student t test ou teste U de Mann-Whitney para variáveis não categóricas, com o valor de p < 0.05 considerado estatisticamente significativo. Os dados foram avaliados pelo software SPSS versão 25 (Statistical Package for the Social Sciences; SPSS Inc., Chicago, IL).
Resultados
Um total de 407 jovens completaram o estudo (290 atletas e 117 controlos não ativos). A idade média do grupo de atletas foi de 15.2 ± 1.7 anos (variando entre 12 a 18 anos). O grupo não ativo apresentou uma média de idades de 14.4 ± 2.0 anos (variando entre 12 a 18 anos). A coorte de atletas consistiu predominantemente de indivíduos do sexo masculino (63.1%, n = 183), bem como o grupo controlo (59.8%, n = 70). Ambos os grupos coincidem em termos de distribuição por idade e sexo. Estes dados estão relatados na Tabela 1.
Tabela 1 Comparação das características da população de atletas com a população não ativa.
| Atletas (n = 290) | Não Ativos (n = 117) | p | |
|---|---|---|---|
| Sexo, masculino | 183, 63.1% | 70, 59.8% | 0.5376 |
| Idade | 15.2 ± 1.7 | 14.4 ± 2.0 | 0.2101 |
| IVAS de repetição | 71, 24.5% | 14, 12.0% | 0.0049 |
| Diagnóstico médico de uma doença alérgica | 95, 32.8% | 35, 29.9% | 0.5776 |
| Diagnóstico médico de asma | 18, 6.2% | 5, 4.3% | 0.4446 |
| Diagnóstico médico de rinite alérgica | 34, 11.7% | 17, 14.5% | 0.4390 |
| Suspeita de doença alérgica pelo próprio | 83, 28.3 % | 35, 29.9% | 0.7946 |
| Sintomas nasais referidos no AQUA | 95, 32.8% | 30, 25.7% | 0.1589 |
| Dispneia referida no AQUA | 52, 17.9% | 11, 9.4% | 0.0313 |
IVAS, Infeção das Vias Aéreas Superiores; AQUA, Allergy Questionnaire for Athletes.
A maioria dos atletas eram jogadores de rugby (37.9%, n = 110), seguidos de jogadores de futebol (12.8%, n = 37) e praticantes de ballet (10.3%, n = 30). A maioria dos atletas treinava em espaços exteriores (n = 170; 58.6%) e mais do que 3 vezes por semana (n = 153, 52.8%).
IVAS de repetição foram relatas em 71 atletas (24.5%), por comparação com 14 controlos não ativos (12.0%), o que representa um aumento significativo na incidência de IVAS em atletas (p = 0.0049). Mais de 45% dos atletas faltaram ao treino pelo menos uma vez por ano devido a IVAS e 14.5% faltaram ao treino mais de 3 vezes no ano passado por este motivo. A maioria dos atletas com IVAS de repetição refere que as infeções são frequentes em períodos de “excesso de treino” (76.1 %).
No que diz respeito à sintomatologia, não existiu uma diferença significativa (p = 0.1589) no número de atletas que relataram sintomas nasais (32.8%, n = 95) no questionário AQUA por comparação com não atletas (25.7%, n = 30); porém, os atletas apresentam pontuações significativamente mais elevadas no questionário NOSE (p < 0.0001). Na tabela 2 está expressa a comparação da pontuação nas perguntas do questionário NOSE entre a população de atletas e a população não ativa. Todas as 5 questões apresentam diferença estatisticamente significativas (p < 0.0001) entre as duas populações estudadas.
Tabela 2 Comparação da pontuação nas perguntas do questionário NOSE entre a população de atletas (n = 290) e a população não ativa (n = 117).
| Atletas | Não Ativos | p | |
|---|---|---|---|
| 1. Congestão nasal ou nariz cheio | 0.9 ± 0.9 | 0.4 ± 0.6 | < 0.0001 |
| 2. Obstrução ou bloqueio nasal | 0.7 ± 0.9 | 0.3 ± 0.6 | < 0.0001 |
| 3. Dificuldade em respirar pelo nariz | 0.7 ± 0.9 | 0.3 ± 0.6 | < 0.0001 |
| 4. Dificuldade em dormir | 0.6 ± 0.9 | 0.2 ± 0.4 | < 0.0001 |
| 5. Incapaz de respirar pelo nariz durante o exercício físico | 0.7 ± 0.9 | 0.3 ± 0.5 | < 0.0001 |
| Total* | 17.8 ± 17.8 | 7.1 ± 11.6 | < 0.0001 |
* O total é definido pela soma da pontuação das 5 questões, multiplicando por 5 (pontuação final entre 0 e 100). NOSE, Nasal Obstruction Symptom Evaluation
Noventa e cinco atletas (32.8%) referem apresentar pelo menos uma doença alérgica com diagnóstico médico, por oposição a 35 jovens não ativos (29.9%), sem diferenças significativas entre os grupos (p = 0.5776), mesmo no que diz respeito à prevalência de asma (p = 0.4446) ou rinite (p = 0.4390). Oitenta e três atletas (28.3%) referem suspeitar que sofrem de alguma doença alérgica, independentemente do diagnóstico médico, sem diferença face aos controlos não ativos (n = 35, 29.9%, p = 0.7946). No questionário AQUA, 17.9% (n = 52) dos atletas referem dispneia com a prática de exercício, face a 9.4% da população não ativa (n = 11), o que representa uma diferença significativa (p = 0.0313).
Discussão
Este estudo é o primeiro em Portugal a comparar diretamente a prevalência de sintomas nasais/alérgicos em atletas e na população não ativa pediátrica.
As IVAS foram significativamente mais comuns no grupo de atletas face à população de jovens não ativos. No caso, mais do dobro dos atletas apresentava IVAS de repetição. Esta observação tinha sido descrita pela primeira vez num estudo de 2018, da população inglesa, mas com média de idades de 26 anos. (4 As IVAS são a doença mais prevalente em atletas14, representando a causa mais comum de falta aos treinos e para procurar médica durante os Jogos Olímpicos tanto de inverno como de verão. (15),(16 Apesar disso, um agente infeccioso é encontrado apenas em um terço dos casos descritos de IVAS de atletas, mesmo quando procurado ativamente. (17 A falta de evidências consistentes de um agente infeccioso tem levado alguns investigadores a questionarem se os sintomas que são classicamente considerados como IVAS, como obstrução nasal, rinorreia, febre baixa e tosse, poderão ser causados pela inflamação induzida pelo exercício nas vias aéreas superiores. (18
A prevalência de sintomas nasais e rinite previamente diagnosticada na população não atleta encontra-se em valores comparáveis ao descrito na literatura, cerca de 25%.19) Por oposição, tem sido descrito na literatura que os atletas relatam mais frequentemente sintomas nasais e apresentam maior prevalência de doenças alérgicas, como rinite ou asma. (4 Contudo, no nosso estudo, no que diz respeito à sintomatologia nasal, não existiu uma diferença significativa, nem na prevalência de asma ou rinite. Existem duas razões possíveis para explicar esta discrepância de achados. Em primeiro lugar, pode ter havido um viés de seleção na nossa população em estudo, resultando numa amostra que não é representativa da população em geral. Em segundo lugar, o facto de neste estudo apenas se avaliar a população pediátrica, ao contrário dos restantes estudos disponíveis na literatura em que avaliam essencialmente atletas adultos. A frequência de sintomas nasais na nossa população de atletas, apesar de comparável à da população não ativa, estava próxima do encontrado noutros estudos, principalmente aqueles que se basearam num diagnóstico pré-existente feito por um médico: 26.2% num estudo de atletas olímpicos italianos20 e 27% em atletas olímpicos polacos. (21
Os atletas com sintomas nasais sofrem um impacto negativo na sua qualidade de vida, como demonstrado pelos nossos resultados. Se não for tratada, a patologia das vias aéreas superiores representa um fardo significativo para estes jovens e pode potencialmente limitar o desempenho físico. Um estudo observacional que avaliou o impacto da utilização diária de budesonida intranasal em atletas com rinite demonstrou uma melhoria significativa na auto-avaliação do desempenho após apenas oito semanas de tratamento. (22 Não se sabe se esta noção subjectiva de melhoria se traduz num ganho competitivo objetivo, mas mesmo assim destaca a utilidade de diagnosticar e tratar patologia nasal nesta população.
A vantagem de um estudo baseado em questionários de auto-preenchimento é a capacidade de se conseguir grandes amostras populacionais e de obter conclusões baseadas em análises estatísticas robustas. No entanto, tais estudos não são capazes de determinar a etiologia da rinite, ou de detetar se os sintomas nasais apresentados pelos atletas tendem a ser de origem alérgica ou irritativa. Mais estudos clínicos são necessários para avaliar a etiologia destes sintomas das vias aéreas superiores, fornecendo informações valiosas no campo emergente do bem-estar dos atletas. No âmbito deste estudo, foi disponibilizado aos participantes avaliação em consulta de otorrinolaringologia e imunoalergologia, com exame físico completo e meios complementares de diagnóstico, necessários. Acredita-se que a informação recolhida possa trazer conhecimento válido na etiologia dos sintomas apresentados e na gestão destes doentes.
Conclusões
Este é o primeiro estudo a comparar a prevalência de sintomas nasais/alérgicos relatados por populações ativas e sedentárias de jovens portugueses.
O rastreio de doenças alérgicas e respiratórias com os questionários AQUA e NOSE deve ser realizado por rotina em jovens atletas, já que estas patologias têm repercussão documentada quer na frequência aos treinos, como na qualidade de vida.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.














