1. Introdução
O início do século XXI trouxe mudanças para a educação superior brasileira, os governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) recuperaram o orçamento das instituições públicas, promoveram a criação e expansão da rede universitária com o Programa de Apoio a Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), bem como instituíram programas acesso e financiamento estudantil a instituições privadas de ensino (Santos & Almeida Filho, 2012). Nesse contexto, surge uma nova modalidade de graduação, os Bacharelados Interdisciplinares (BI); inicialmente implantados na Universidade Federal do ABC paulista, o número de cursos tem crescido: em 2017 foram identificadas 66 graduações desta natureza em funcionamento no Brasil (Oliveira, Ferreira & Barroso, 2021).
Os BI surgiram como parte de uma nova arquitetura universitária, o regime de ciclos. Este arranjo institucional já implantado no sistema educacional estadunidense e europeu, visa promover uma educação geral em primeiro ciclo evitando assim a profissionalização precoce, estimulando a formação interdisciplinar e o enriquecimento cultural dos estudantes. Após esta primeira etapa de formação os estudantes se direcionam para a formação profissionalizante (segundo ciclo) e/ou à pós-graduação (terceiro ciclo) (Santos & Almeida Filho, 2012).
A Universidade Federal da Bahia (UFBA) apresentou uma proposta ao REUNI, mas não conseguiu a implantação do regime de ciclos para toda instituição. A proposta inicial, na qual o BI era a única forma de acesso ao ensino universitário não foi aceita pela comunidade e com isso criou-se uma nova unidade acadêmica, o Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC) que abriga os BI ofertados em quatro áreas do conhecimento: Artes, Ciência & Tecnologia, Humanidades e Saúde. A formação nos BI privilegia a flexibilidade curricular, a construção da autonomia e a articulação dos saberes, sendo que dois terços da sua matriz curricular é formada por Componentes Curriculares (CC) que são de escolha dos estudantes (Pimentel, Rubim, Bastos, Embiruçu, Marinho, Nery, Pontes & Almeida Filho, 2008).
Após a formação geral há um processo seletivo interno no qual 20% das vagas dos cursos tradicionais são reservadas para os egressos dos BI. A migração dos BI para os cursos tradicionais é baseado no coeficiente de rendimento dos estudantes (UFBA,2008). Desde o ingresso das primeiras turmas em 2009 até 2018, 2.804 estudantes já concluíram os BI e 86% continuaram seus estudos no 2ºciclo de formação, nos chamados Cursos de Progressão Linear (CPL), os cursos tradicionais da UFBA (IHAC, 2018).
A experiência do regime de ciclos tem provocado interesse de pesquisadores que indicam em seus estudos as dificuldades institucionais e burocráticas que os BI têm enfrentado na UFBA, seja com os sistemas de informação que creditam e integralizam os currículos da universidade assim como a dificuldade do IHAC em de garantir vagas em CC dos demais institutos (Almeida,2018; Lima, Coutinho, Freitas, Dahia, Amazonas & Alencar, 2015). Além disso, estudos com os ingressantes tem apontado que uma das principais motivações da escolha pelos BI é a possibilidade de acessar os cursos tradicionais no 2ºciclo, principalmente aqueles de alto prestígio como Direito, Engenharias, Odontologia e Medicina. No caso do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde (BIS), foco da presente investigação, isso tem apresentado para a instituição situações de grande complexidade, sejam eles de natureza relacional entre os estudantes ou jurídicos, ambos relacionados com a disputa por uma vaga em Medicina no 2ºciclo de formação (Véras & Baptista, 2019).
Nenhuma pesquisa até aqui, entretanto, acompanhou a formação estudantil durante o BIS para mapear as dificuldades e desafios enfrentados pelos estudantes durante o primeiro ciclo. Diante disso, cabe indagarmos sobre a natureza dessas dificuldades e como os estudantes têm lidado com esses obstáculos? Consideramos que a experiência do BIS e do regime de ciclos na UFBA ainda é recente e, por isso, estudos com foco na compreensão das dificuldades e entraves auxiliarão a proposição de futuros aperfeiçoamentos curriculares dessa nova modalidade de graduação do ensino superior brasileiro. O objetivo desta pesquisa foi compreender as dificuldades dos estudantes no transcurso da sua formação universitária no BIS.
2. Metodologia
A estratégia metodológica escolhida para esta investigação foi a qualitativa, este campo de estudos não é homogêneo, sendo conformado por diversas posições epistemológicas, contudo as pesquisas qualitativas privilegiam os processos sociais, as intencionalidades e significados que são conferidos pelos atores sociais as suas experiências (Denzin & Lincoln, 2006). Como o objetivo desta investigação foi compreender as dificuldades de um grupo de estudantes o método qualitativo nos pareceu adequado pois permitiu assim descrever e interpretar as agruras que surgiram no cotidiano dos discentes.
Foram convidados a participar desse estudo, estudantes egressos do BIS que continuaram seus estudos no 2ºciclo de formação em cursos profissionais da saúde. Portanto, todos os informantes são egressos, já tendo passado pelo primeiro ciclo de formação sendo capazes assim de relatar suas experiências no curso interdisciplinar.
A técnica utilizada para a produção de dados foi a Entrevista Narrativa (EN). As EN são entrevistas não estruturadas e em profundidade que visam recuperar de maneira retrospectiva os acontecimentos da vida dos sujeitos narradores, neste caso, o entrevistador solicitou que os informantes descrevessem as experiências no BIS desde a chegada até a migração para o CPL. Desta forma os estudantes puderam relatar a sequência de eventos ocorridos como também descreveram as emoções, os obstáculos e os aprendizados que obtiveram no primeiro ciclo (Jovchelovitch & Bauer, 2010).
As EN foram realizadas através de vídeo chamadas no programa Zoom em função do distanciamento social exigido pela pandemia da sars-cov-2. O número de discentes entrevistados foram 14 e estes estão inseridos em nove graduações profissionais da saúde: Medicina, Odontologia, Enfermagem, Fisioterapia, Saúde Coletiva, Biotecnologia, Farmácia, Psicologia e Medicina Veterinária. A composição deste grupo de interlocutores diversificado objetivou capturar os diversos modos de construção dos percursos formativos e as variadas inserções na universidade decorrentes disso, sendo possível assim identificar as contribuições e as dificuldades que os estudantes vivenciaram no primeiro ciclo de maneira abrangente com vistas a mapear o maior número de transitos universitários possíveis.
Para organização e auxílio na análise de dados adotamos um Computer Assisted Qualitative Data Analysis Software (CAQDAS) com vistas a um melhor aproveitamento do material empírico e maior acurácia da análise. O software adotado foi openLogos: trata-se de um utilitário livre desenvolvido pelo professor e pesquisador brasileiro Kenneth Rochel de Camargo Jr . Este programa possibilita que os pesquisadores tabulem a frequência de palavras produzindo assim análises lexicais bem como permite a codificação e extração de segmentos de textos. Sendo assim, utilizamos a segunda função mencionada para produzir uma análise de conteúdo categorial temática com base nos pressupostos de Laurence Bardin (2011). Este tipo de análise caracteriza-se pelo desmembramento do texto em unidades temáticas que serão reagrupadas por afinidade semântica (Bardin, 2011). O Open Logos permitiu que nós desenvolvêssemos todas as etapas da análise categorial temática, tanto a exploração do material por meio da criação códigos para etiquetar os segmentos de texto selecionados como também o agrupamento das unidades temáticas com o mesmo código, produzindo assim três categorias temáticas: a primeira delas descreve as dificuldades de relacionamento e os sentimentos produzidos entre os colegas de curso, a segunda trata sobre os entraves da organização acadêmica do curso na vivência estudantil e última discute as dificuldades de acolhimento enfrentadas pelos discentes do BIS nos demais espaços universitários.
Para a discussão dos dados os entrevistados foram identificados com nomes de deusas e deuses gregos, na intenção de a preservar o sigilo sobre sua identidade. O estudo teve aprovação do Comitê de Ética da Escola de Enfermagem da UFBA, parecer 4.209.545 CEP/UFBA.
3.Resultados e Discussão
As categorias temáticas que emergiram após a análise mediada pelo software OpenLogos dizem respeito ao relacionamento entre os estudantes, à organização acadêmica do curso e recepção dos discentes do BIS nas demais unidades acadêmicas (Ver quadro 1).
3.1 Relacionamento entre os Estudantes do BIS
A experiência estudantil na universidade não é vivenciada de forma individual mas sim, estabelecendo relações sociais com o resto da comunidade acadêmica: os professores, os servidores técnico-administrativos e, principalmente, com os demais estudantes. É esperado que, ao longo deste período, os estudantes socializem com os demais colegas e estabeleçam vínculos afetivos, educativos e laborais estabelecendo assim solidariedade social, cooperação e uma identidade compartilhada: a de ser um estudante universitário. Entretanto, a experiência no BIS foi marcada pela não efetivação desses vínculos entre as nossas interlocutoras, Atenas e Éos:
Então aquilo que eu não curti no BI que era essa troca e tal com as pessoas da mesma turma, e engenharia isso era muito forte pra mim, em biotec eu também não tenho, não porque o curso não tenha, mas porque eu já entrei no meio, acaba que eu pego matérias com pessoas sempre diferentes e isso me traz uma sensação... tipo por exemplo, eu não estou em nenhum grupo tipo, primeiro semestre, segundo semestre e etc..eu não estou em nenhum deles, não faço parte de nenhuma turma, então acaba que eu fico mais fechadinha no meu mundo em biotec também. Esse fato de não ter turma, me incomoda, me sinto meio alheia no que acontece na universidade (Atenas).
Atenas tem uma trajetória longa dentro da universidade. Inicialmente cursou engenharia, abandonou e decidiu ingressar no BIS. Comparando essas experiências, ela percebe não ter estabelecido relações com os colegas do BIS na mesma intensidade que ela teve na engenharia, ou seja, Atenas apontou que não socializou com os estudantes da graduação interdisciplinar, nem quando realizou a passagem para o segundo ciclo de formação. A estudante descreve não possuir vínculos com os estudantes de Biotecnologia por não ter acompanhado uma única turma, o que provocou sentimentos de solidão e alheamento.
Sentir-se integrado à instituição e ao curso escolhido é um fator positivo para a permanência e o sucesso acadêmico. O sentimento de não pertencimento contribui para o baixo engajamento e o eventual abandono (Vitória, Casartelli, Rigo & Costa, 2018). Da mesma forma que Atenas, Éos aponta a solidão no seu percurso no BIS:
É a questão de eu querer odonto dificultou um pouco essas amizades porque eu não pegava matéria com ninguém porque dificilmente as pessoas querem odonto, a maioria opta por medicina e aí sempre busca matérias por maior score ou matérias mais fáceis e eu não, eu sempre pegava matérias em odonto e aí eu só conheci uma menina que queria odonto também, foi quem esteve ao meu lado assim do meio pro final, mas como ela entrou antes, ela acabou se formando primeiro; aí, no final, eu acabei ficando sozinha no curso o que foi ruim na época, porque eu me sentia sozinha na universidade sabe? (Éos).
Éos aponta que a maioria dos colegas desejavam migrar para Medicina e por isso buscavam CC considerados fáceis para atingirem altos CR e assim disputarem as vagas destinadas a este curso na migração BIS/CPL. Desta forma, ela que desejava outra graduação acabou solitária em seu percurso. Éos narra que esse sentimento se acentuava quando tinha que transitar entre diferentes campus universitários. Em relação a disputa de altos CR para disputa das vagas para Medicina, outro sentimento se manifesta, a competitividade.
Só que tem um ponto negativo que me deixa muito mal em falar para as pessoas e, às vezes, eu fico até assim de falar, que é a competitividade que eu acho que foi um curso meio que...não gosto de falar... doentio, mas meio que desvantajoso no sentido de saúde mental para o estudante, porque é um curso que mesmo que você não queira, você tá embutido num sistema de competitividade alí da nota e acaba que você acaba desestruturando vários de seus princípios, então essa é a parte negativa do BI, e eu não sei se existe hoje mas eu acredito que isso está bem pior né? Por conta da concorrência mesmo que deve tá maior também e ai é isso (Hermes).
Hermes descreveu a competitividade que é estabelecida por conta da disputa pelas 32 vagas destinadas ao curso de Medicina na passagem do primeiro para o segundo ciclo de formação. Pesquisas como a de Pimentel (2017) e Véras & Baptista (2019) apresentam como resultados que uma forte motivação para o ingresso no BIS é a possibilidade de disputar uma vaga no curso médico. Entretanto, o nosso informante naturaliza essa competição como se fosse algo imanente da graduação interdisciplinar, como se o curso estimulasse ou propusesse que todos os discentes entrassem em conflito por conta das vagas em Medicina, quando na verdade este fenômeno, o ingresso neste curso de alto prestígio, extrapola o BIS.
O não pertencer a uma única turma, parece serum aspecto da vida universitária no regime de ciclos da UFBA. Os estudantes no primeiro ciclo têm uma serie de CC optativos que podem ser cumpridos em diferentes turmas e unidades acadêmicas da UFBA que podem ser aproveitados na formação subsequente, o curso profissional. No Projeto Político Pedagógico dos BI essa possibilidade de construção do próprio percurso formativo visa articular as diferentes áreas do conhecimento bem como desenvolver a autonomia do discente (Pimentel, Rubim, Bastos, Embiruçu, Marinho, Nery, Pontes & Almeida Filho, 2008). Entretanto, os informantes desta pesquisa apontaram que isso pode produzir também sentimentos de solidão e de não pertencimento.
3.2 Organização Acadêmica do Curso Interdisciplinar
Outra dificuldade que emergiu nas narrativas estudantis sobre a experiência no BIS está relacionada com a organização acadêmica do curso. Alguns informantes apontaram a dificuldade em encontrar CC no turno noturno e outros sentiram falta de um amparo pedagógico. Em relação à disponibilidade de CC, Horas e Héstia afirmam:
Foi assim um pouco complicado, porque essa ilusão da UFBA de ter curso noturno, é uma ilusão mesmo porque chega um momento que você tem que pegar matéria de dia, eu sou do BI diurno e tem o BI noturno também né? Teve semestre mesmo que eu tinha aula de 7:00 da manhã às 20h20 da noite, uma aula de manhã, uma aula de tarde e outra aula a noite e ai fica inviável né? (Horas).
Eu já tinha percebido que quem pega matéria só a noite ele acaba não tendo tantas opções, ele tem opções ali naquele lixão sempre tinha muitas coisas, acaba que os cursos que são exclusivamente diurnos você não consegue pegar matéria, Odontologia por exemplo, você dificilmente vai conseguir alguma matéria a noite (Héstia).
As estudantes apontam que a disponibilidade de CC no turno noturno é inferior quando comparado aos turnos vespertinos e matutinos, entretanto o BIS oferece anualmente no SiSU o dobro de vagas no turno noturno (200) em relação ao diurno (100). Embora pareça um ponto técnico e burocrático, e em parte é, a extensiva oferta de CC em um curso que mais de 60% da sua carga horária é optativa é fundamental para efetivação da formação estudantil e da sua proposta curricular: a interdisciplinaridade, articulação de saberes e a vivência do espaço universitário. Portanto, a dificuldade enfrentada por essas estudantes impactou de certa forma na construção dos seus percursos formativos.
Vale salientar que a expansão que o ensino superior público passou por conta do REUNI visou também a ampliação de vagas e cursos noturnos, com o intento de incluir estudantes trabalhadores na educação superior pública, entretanto, ainda há menos opções de disciplinas para os estudantes do turno noturno, deixando os mesmos a mercê do lixão como Héstia relatou. O lixão é uma expressão que caracteriza o último momento de matrícula da UFBA, são vagas que sobram nos diversos CC da universidade, elas são disponibilizadas após a matrícula dos grupos prioritários nestes CC, portanto não há uma previsão de quais CC estarão presentes nesta etapa e nem quantas vagas, o que deixa os estudantes inseguros e excluídos de certas disciplinas por falta de vagas. Ademais, os cursos de graduação em saúde ainda são em sua maioria diurnos na UFBA, o que impossibilita que estudantes do BIS noturno cursem CC destes cursos profissionais como também foi mencionado por Héstia. Além disso, Ares menciona a ausência de Áreas de Concentração (AC):
Eu acho que o BI ainda deixou a desejar no seu processo de organização interna, principalmente por não ter uma forma de organização que nos permita ter áreas de concentração, que nos permita ser direcionado a pegar matérias específicas de um curso que a gente se identifique e isso eu senti falta (Ares).
AC são um conjunto de CC que circunscrevem a formação dos estudantes de maneira mais aprofundada a uma temática de caráter profissionalizante ou não, possibilitando assim que os discentes se aproximem de uma área e concluam um bloco mais homogêneo de CC antes da passagem para o segundo ciclo de formação (Pimentel, Rubim, Bastos, Embiruçu, Marinho, Nery, Pontes & Almeida Filho, 2008). Ares gostaria de ter opções de AC viabilizando assim uma aproximação mais sistematizada a um dado curso profissional, assim se sentiria mais direcionado em sua escolha do curso profissional. Da mesma forma, este sentimento de ausência de direcionamento foi levantado por Mnemósine:
A gente fica muito ao Deus dará sabe? A gente fica muito perdido às vezes, a gente não tem um apoio tão forte, pelo menos na minha época não tinha, a gente não tinha um direcionamento, quando eu já estava pra sair começou a fazer as reuniões com os alunos pra direcionar ele, eu até esqueci o nome, alguma coisa lá acadêmica, e era pra tentar olhar sua grade e lhe ajudar (Mnemósine).
Mnemósine sente falta de um apoio pedagógico, o que a fez se sentir solta e perdida durante a graduação. Cada vez mais a universidade tem sido solicitada a pensar sua pedagogia, seja pela proposição de novos modelos de formação, a chegada de novos públicos a instituição, como também pelas novas formas de mediação do ensino-aprendizagem e de produção do conhecimento que estão disponíveis (Carneiro & Sampaio, 2011).
3.3 Recepção dos Estudantes nas Diferentes Unidades Acadêmicas
A última categoria temática tem relação com a recepção dos estudantes do BIS nas diferentes unidades acadêmicas da UFBA. Os estudantes que acessam a universidade pelo modelo de ciclos, precisam desbravar a universidade para assim concluírem seu primeiro ciclo de formação. Ou seja, os estudantes do BIS transitam por toda a universidade para experienciar o espaço universitário e não cursam apenas os CC ou atividades acadêmicas de um único instituto como funciona as formações nos regimes tradicionais de formação. Entretanto, a implantação do regime de ciclos na UFBA foi parcial e não pacífica, o que gerou má recepção, preconceito e constrangimento em relação aos estudantes do BIS nos espaços conservadores da universidade (Lima, Coutinho, Freitas, Dahia, Amazonas & Alencar, 2015). Acerca disso, Deméter conta uma situação que viveu:
Eu lembro que no terceiro semestre eu tentei pegar uma matéria em med e fui expulsa, expulsa literalmente da sala, não sei se isso existe ainda, mas antigamente dava pra saber que curso a pessoa era, acho que puxa né? Enfim, e viu que eu era do BI, era fisiologia e a professora disse que não era matéria pra gente, no caso, só tinha eu do BI no dia da aula, no primeiro dia de aula, e eu fui convidada a sair da sala, nem tive o primeiro contato. Foi um dia muto terrível, eu comecei a ter aversão a pegar matéria sozinha por causa disso (Demeter).
Este relato demonstra que a universidade é um terreno de disputa e que estas podem ser antipedagógicas visto que a docente prefere retirar uma estudante de sala por acreditar que a sua disciplina não é feita ou destinada a um estudante. Este constrangimento trouxe consequências emocionais para Deméter, ela retrata este dia como terrível, e depois disso preferiu não pegar disciplinas sem outros estudantes do BIS. Ainda sobre o preconceito de alguns docentes da UFBA, Zeus relata:
Eu passei por situações com professores em que eu ouvi tipo: vocês são o que? BI é o que? Por que vocês pegaram minha matéria? Eu ouvi muito isso. Eu já ouvi professores que tentavam incluir a gente como incapaz: “a gente vai fazer isso, e aí o BI tá entendendo?” porque exclusivamente nós não estaríamos entendendo? A gente sempre sentava junto porque existe uma relação de irmandade, entre as pessoas do curso, as pessoas se ajudam e se apoiam, porque a base do curso também é muito isso (Zeus).
Segundo Zeus, os estudantes sempre sentavam juntos para se protegerem de constrangimentos, o que aponta para construção de redes de apoio e proteção entre os discentes. Ele aponta que alguns professores questionavam a capacidade cognitiva dos discentes que acessaram a UFBA pelo regime de ciclos. A adesão da UFBA ao REUNI e a criação dos BI trouxe este questionamento sobre a qualidade dos estudantes que ingressariam na universidade, entretanto, esta posição é conservadora pois é a favor de um modelo de formação universitária do século XIX produzido na França napeolônica (Almeida Filho, 2016), como também é elitista já que defende um certo exclusivismo a educação terciária.
Há ainda um outro elemento que compõe o preconceito com os estudantes dos BI, a meritocracia, o surgimento dos BI trouxe mais uma modalidade de acesso a UFBA e com isso os setores conservadores da universidade bem como da iniciativa privada de escolas e cursos pré-vestibulares que lucram com os exames de seleção pontuais questionaram a existência do regime de ciclos, visto que no regime de ciclos adota outros critérios para acesso aos cursos profissionais inclusive os de alto prestígio social. Este elemento é evidente no relato de Hermes:
Sempre nas discussões iniciais das primeiras semanas de aula tinha a questão dos BI e de alguns professores de medicina que eram contra o ingresso de estudantes de BI no curso de medicina, só que assim eram coisas que como eu era calouro eu não ficava discutindo muito mas chegava um momento que a gente se incomodava um pouco e falava até que hoje assim, eu estou no 9º semestre e quase não se fala dessa questão de discriminação, e quem entra por vestibular ou por BI, mas era uma coisa bem latente assim quando eu entrei. Não me incomodava tanto mas com o tempo acabou me incomodando (Hermes).
De acordo com Hermes havia uma discriminação entre os que acessavam o curso de Medicina pelo BIS e não pelo processo seletivo tradicional que era o vestibular. Nos parece que a fonte desse preconceito é a ideologia meritocrática que atribui unicamente aos esforços dos sujeitos os motivos dos seus sucessos e conquistas ignorando as desigualdades e os repertórios sociais e geracionais que os indivíduos possuem (Cardoso, 2015). Inferimos que esses professores de Medicina mencionados por Hermes questionavam o direito dos egressos do BIS cursarem esta graduação de alto prestigio por não terem se “esforçado” ou “exaurido” suficientemente num processo seletivo pontual, aplicando assim a ideologia meritocrática na educação.
4.Considerações Finais
Por meio da análise qualitativa e das categorias temáticas construídas no Software OpenLogos foi possível mapear e compreender os desafios enfrentados pelos estudantes nesta inovação curricular no ensino superior brasileiro que é o Bacharelado Interdisciplinar em Saúde.
As narrativas sublinharam que os estudantes possuem dificuldades em estabelecer vínculos com os colegas de curso visto que eles não pertencem a uma única turma e por conta do clima de competição instaurado pelas vagas no curso de Medicina no 2ºciclo. Os discentes apontaram que muitas vezes sentem-se sem amparo pedagógico durante o curso, isso nos parece ser um ponto importante a ser pensado visto que a autonomia estudantil não pode se confundir com a ausência de suporte pedagógico, portanto o colegiado do BIS precisa criar formas de suporte e acompanhamento que não caiam no controle e/ou tutela. A oferta de CC foi um entrave também nos percursos formativos, os estudantes descreveram baixa oferta no turno noturno de CC da área da saúde, o que dificulta a composição das matrizes curriculares e por consequência a conclusão do curso. Para que os BI cumpram seu ideal pedagógico, a oferta diversa de CC de diferentes áreas é fundamental.
Por fim, em relação aos constrangimentos e preconceitos que os estudantes enfrentam em alguns espaços conservadores da universidade, por serem antipedagógicos deveriam ser coibidos para dessa forma preservar o ambiente democrático e pluralista da instituição.