1. Introdução
A criatividade tem vindo a ser reconhecida como um elemento indissociável da reflexão quanto ao futuro da educação. Porém, tem vindo a acentuar-se a perceção de que a escola parece não privilegiar o desenvolvimento da criatividade, apesar das consequências sociais, culturais e económicos que tal pode acarretar, visto que, na sociedade contemporânea, ser criativo, mais do que uma competência, é uma necessidade (Ahmadi et al., 2019). Assim, multiplicaram-se, nos últimos anos, as orientações nacionais e internacionais quanto à urgência de se considerar a criatividade como um objetivo cimeiro da educação (Batelle for Kids, 2019; Ministério da Educação, 2017; OECD, 2018). Todavia, os sistemas educativos ocidentais ainda lutam para se (re)inventarem e libertarem das amarras de metodologias de ensino mais tradicionais, que fomentam e valorizam resultados académicos diretamente quantificáveis, ainda que periféricos, em detrimento de dimensões educativas de cariz mais qualitativo, mais globais, e exprimíveis por uma fenomenologia que resiste ao cálculo. Por outro lado, emergem dificuldades em criar ambientes educativos que consigam potenciar nos alunos a tomada de perspetiva social (Coimbra, 1991), a autoeficácia (Vieira & Coimbra, 2006), o espírito crítico e a tomada de decisão (entre outros) (Henriksen et al., 2016), alicerces de níveis de desenvolvimento psicológico de maior complexidade. Do nosso ponto de vista, poderá caber à criatividade um papel decisivo na superação destes obstáculos, uma vez que esta, enquanto constructo multidimensional e dinâmico, intersecta diferentes dimensões do funcionamento psicológico, interferindo significativamente com as trajetórias de desenvolvimento dos alunos.
2. Criatividade e Currículo
A criatividade constitui-se como um constructo complexo e de caráter cumulativo; ou seja, para se manifestar implica a conjugação simultânea de condições contextuais, ambientais, características cognitivas, comportamentais, motivacionais e de personalidade, a par de outras da própria pessoa como coautor(a) do seu desenvolvimento (Valquaresma, 2020). Esta complexidade traduz-se numa dificuldade acrescida em balizar a que se refere, dada a miríade de esferas do funcionamento psicológico e ação humana que interseta. Não obstante, de uma perspetiva construtivista e sociocultural, pode considerar-se que a criatividade brota da capacidade de co-construção de mundos (Goodman, 1995). É através dela que o sujeito psicológico humano produz, com base na relação dialógica que estabelece consigo, o Outro e o mundo, novos e originais significados para as experiências que vai colecionando ao longo da vida.
Por seu turno, o currículo escolar constitui um elemento fundamental para a compreensão do modo como a escola se organiza e estrutura em torno de determinados conceitos-chave. Assim, não é novidade o destaque crescente que tem sido atribuído à pesquisa da relação currículo-criatividade (Lucas et al., 2013; Wyse & Ferrari, 2015), acompanhando o que parece ser uma tendência com ecos intercontinentais que vão da Austrália (MCEETYA, 2008) ao Brasil (Fleith, 2001), China (Vong, 2008), Estados Unidos da América (Runco, 1999) ou Reino Unido (Cremin & Barnes, 2015). As principais conclusões parecem sublinhar a aceitação da relevância da criatividade no cenário social e educativo atual (Shaheen, 2010), embora a maioria dos curricula tenda apenas a reconhecê-la de um modo implícito e pouco concretizado (Newton & Newton, 2014). No caso de Portugal, a criatividade tende a ser explicitamente valorizada, designadamente nas disciplinas de cariz artístico. Porém, não é claro se essa valorização transpõe a esfera das orientações curriculares para a das práticas pedagógicas em contexto de sala de aula, bem como se se manifesta de modo diferenciado por nível de escolaridade (Heilmann & Korte, 2010).
2.1 Explorar Criatividade e currículo em Portugal
Com o intuito de contribuir para esta reflexão, propusemo-nos analisar criticamente a abordagem da criatividade nos curricula da educação pré-escolar e do nível básico de escolaridade em Portugal, equacionando as consequências desse enquadramento no plano das práticas pedagógicas adotadas por educadores/professores em contexto de sala de aula. Neste sentido, definimos três questões orientadoras da investigação (QI):
QI 1: Como é que professores e educadores dos níveis pré-escolar e básico de escolaridade descrevem o impacto da criatividade na educação?
QI 2: Como é que professores e educadores dos níveis pré-escolar e básico de escolaridade descrevem o modo como os curricula educativos promovem a criatividade?
QI 3: Como é que professores e educadores dos níveis pré-escolar e básico de escolaridade descrevem a sua abordagem à criatividade?
A exploração destas questões foi enquadrada numa metodologia qualitativa de análise de dados, cujos propósitos se alinham com os que sustentam este estudo, nomeadamente o de compreender os significados que indivíduos ou grupos atribuem a questões humanas ou sociais (Creswell & Poth, 2018), procurando interpretar o significado da experiência humana. Neste sentido, esta opção metodológica sublinha o reconhecimento do papel decisivo que a classe docente desempenha no domínio educativo, dado dispor de um conjunto de conhecimentos teóricos e práticos que se revelam fundamentais para uma reflexão crítica quanto ao lugar da criatividade nos curricula em análise. Já a dinamização de um grupo de discussão focalizada (GDF) permite aceder às perceções de um grupo de participantes quanto a um tópico específico, desvelando processos e conteúdos psicológicos e socioculturais que estão na origem de comportamentos complexos. Assim, a escolha dessa técnica, em particular, advém do propósito de acedermos a dimensões de interação que extrapolam as fronteiras da verbalização, permitindo-nos explorar, de um modo dinâmico e interativo, origens de comportamentos e motivações, observando o grau e a natureza dos (des)acordos entre participantes (Silva et al., 2014). De entre as vantagens do GDF emerge a recolha rápida e flexível de informação, apesar de, dado o risco de enviesamento de resultados, se exigir uma elevada preparação e reflexão prévias. Manter a discussão do grupo focalizada na temática em estudo é outro dos desafios desta técnica. Para minimizar o impacto desse obstáculo elaboramos um guião orientador da sessão no qual se procurava explorar a perspetiva dos participantes quanto ao modo como o sistema educativo português promove a criatividade e como esta era integrada nas suas práticas pedagógicas. O guião permitiu, ainda, articular o acesso às perspetivas dos participantes com os objetivos concretos do estudo, consubstanciando-se num GDF moderadamente estruturado.
3. Metodologia
3.1 Amostra
3.1.1 Seleção dos Participantes
Constituindo uma amostra qualitativa proposital (Creswell & Poth, 2018) (i.e., que se firma numa seleção precisa e adequada), os participantes foram recrutados da classe de professores/educadores dos níveis de educação em análise. Almejando uma diversidade de perspetivas de análise (Merriam & Tisdell, 2016), selecionaram-se participantes cuja formação de base e/ou especialização fosse variada. Inicialmente, foram escolhidos a partir da rede de contactos da primeira autora. Posteriormente, estes recrutaram outros colegas interessados em participar.
Dando cumprimento ao parecer favorável da Comissão de Ética da instituição de pertença dos autores, todos forneceram o seu consentimento prévio, por escrito, para a realização e gravação áudio da sessão.
3.1.2. Caracterização dos Participantes
Seis professores/educadores portugueses [5 do sexo feminino (83,3%) e 1 do sexo masculino (16,7%)], com idades entre os 35 e os 53(M=46.5 e DP= 6.8) e que lecionavam em agrupamentos de escolas do distrito de Aveiro participaram neste estudo. Todos possuíam como habilitação académica uma licenciatura. Os grupos de recrutamento variavam entre educação pré-escolar (33.3%), 1.ºciclo do ensino básico (16.7%), educação física (16.7%), português (16.7%) e inglês (16.7%). Os níveis de escolaridade lecionados eram: pré-escolar (33.3%), 1.º (33.3%) e 3.ºciclo do ensino básico (33.3%), o que potencia a representatividade da amostra relativamente aos níveis de escolaridade em análise. O número médio de anos de docência era de 22.67 anos.
3.2 Guião Orientador
Numa fase de planeamento inicial esboçamos um guião orientador, semiestruturado, que previa a possibilidade de serem debatidas outras questões, desde que pertinentes para o tema em discussão. Contemplava cinco questões:
Considera que a criatividade é um elemento importante na educação? Porquê?
Considera que, em Portugal, as metas curriculares que enquadram o projeto de educação do pré-escolar e do ensino básico fazem com que os docentes se sintam implicados a desenvolver a criatividade?
Tem por hábito incluir atividades pedagógicas que apelem à criatividade no contexto de sala de aula?
Que tipo de atividades pedagógicas promotoras da criatividade costuma realizar nas suas aulas?
Considera que deveria implementar mais atividades criativas em contexto de aula?
3.3 Procedimento
Asseguradas as condições de temperatura, luminosidade e isolamento acústico da sala, iniciou-se a sessão com a exploração das expectativas dos participantes e clarificação de dúvidas quanto ao modo de funcionamento da sessão (regras, duração, garantia de confidencialidade, gravação áudio) e objetivos do GDF. Procurando proporcionar-lhes um clima de discussão confortável e facilitador da expressão das suas opiniões (Krueger & Casey, 2014) começamos com questões mais genéricas que se foram tornando mais específicas no decurso da sessão.
3.3.1. Etapas da Análise de Conteúdo
Visando um incremento da qualidade da análise dos dados recolhidos, a primeira autora foi responsável pela recolha, transcrição e análise de conteúdo inicial. Concluída a sessão, esta registou comportamentos e aspetos paralinguísticos potencialmente relevantes e transcreveu todo o conteúdo áudio. Seguidamente, efetuou uma análise de conteúdo em 3 etapas:
Codificação (após transcrição/leitura atribuíram-se categorias inferidas da estrutura e conteúdo do guião e criaram-se novas categorias induzidas do conteúdo da atividade de discussão);
Armazenamento/recuperação [compilação de todos os excertos referentes à mesma categoria para posterior comparação semântica (tarefa realizada “manualmente)];
Interpretação das categorias obtidas e articulação com as questões de investigação.
Embora algumas categorias de significado decorressem das questões previamente consideradas no guião, o processo indutivo de análise conduziu ao aparecimento de novas categorias/subcategorias. Os dados recolhidos na sessão foram registados numa tabela do Microsoft Word. Posteriormente, os dois autores desenvolveram, em 3 sessões, um processo iterativo e conjunto de análise, que permitiu a consolidação de categorias/subcategorias de significado que, de acordo com a frequência dos temas, revelavam padrões de opiniões (Yin, 2018).
4. Resultados
Identificaram-se 21 categorias, cuja análise e interpretação conduziu a 4 grandes temáticas orientadoras, consonantes com os objetivos e questões de investigação.
Como se pode observar na tabela 1, destacam-se os temas referentes à desarticulação entre os curricula escolares e as práticas pedagógicas promotoras da criatividade, a par dos obstáculos à exploração da criatividade em contexto educativo.
5. Discussão de Resultados
A sessão do GDF caracterizou-se pelo elevado envolvimento dos participantes e riqueza da discussão produzida. A diversidade de categorias de significado identificadas parece sublinhar a relevância da temática da criatividade para a atualidade e futuro da educação, nomeadamente em Portugal. A miríade de dimensões educativas que assomaram como associadas ao desenvolvimento e exploração da criatividade em contexto educativo tende a remeter-nos para muitas das questões que emergem quando exploramos a criatividade enquanto constructo multidimensional e dinâmico, situado numa matriz de complexidade. De uma perspetiva sistémica, esta complexidade observa-se na alusão a elementos do micro, meso, exo e macrossistema , a que pertence o docente.
Assim, parece-nos sair fortalecida a ideia de que a reflexão em torno da díade criatividade-educação deve partir de uma visão multidimensional e multideterminada da criatividade, que enfatiza as dinâmicas relacionais que se estabelecem intra e intersistemas. Esta conclusão tende, aliás, a consubstanciar-se quando analisamos as categorias de significado agrupadas. Da primeira questão orientadora da discussão emergem as categorias/temas referentes ao consenso quanto ao papel essencial que a criatividade desempenha na educação e desenvolvimento psicológico humano, enfatizando-se a responsabilidade da escola na formação de cidadãos criativamente responsáveis. Simultaneamente, aparenta cimentar-se a noção de que o desenvolvimento da criatividade nos alunos se reflete na sua capacidade de transferirem conhecimentos para outros contextos e de os combinarem de modo mais variado, com prováveis e vastas ramificações em diversas esferas do desenvolvimento psicológico humano [“B.: A criatividade é sem dúvida muito importante em idades escolares(…) Para(…)desenvolver a imaginação, a autoestima, a confiança, a linguagem, a capacidade de raciocínio, a capacidade de criar e recriar…”) e com o potencial de impactar o futuro (“C.: No futuro, o que é que vai valer a estes miúdos? A forma criativa como vão enfrentar os desafios, (…) hoje em dia, para fazer as coisas, as tarefas simples, tens os robôs, tens as máquinas, …”). Por outro lado, pareceu esboçar-se o que designamos de conceção da criatividade enquanto atributo de uma estrutura psicológica complexa (“A.: Eu acho que uma pessoa criativa adquire muito mais facilmente conhecimentos do que uma pessoa que não é criativa. Mesmo no futuro, na aquisição de conteúdos mais complexos, a nível do terceiro ciclo, secundário e por aí fora.“). A interligação da criatividade com a aprendizagem efetiva e com significado foi também debatida pelos participantes, contribuindo para a exploração da segunda questão do guião. De facto, um dos temas que mais alimentou a discussão centrou-se na desarticulação entre curricula escolares e práticas pedagógicas docentes no âmbito da exploração da criatividade (e.g., “F.: Há as tais metas que elas têm que cumprir, até mensalmente, que eu fico escandalizada (…)e depois eu vejo-as: ansiosas, nervosas(…)vão ter depois ao grande grupo e vão ver que estão atrasadas porque até nem cumpriram aquilo.“), evidenciando dificuldades e disparidades na forma e relevância atribuídas à exploração da criatividade nos diferentes níveis de ensino. Acentuando o efeito pernicioso da pressão das metas educativas, os docentes referiram que, o cumprimento das mesmas implica, frequentemente, abdicar da exploração da criatividade, visto esta exigir um tempo e investimento incompatíveis com os tempos letivos definidos curricularmente (e.g., “F.: Eu vejo quando me mandam uma planificação, há estas tais metas (…). Então, onde é que fica a criatividade? É tudo muito bonito, mas depois na prática é outra história.”). Da sessão de GDF realizada parece ainda consolidar-se a importância de consignar uma maior proporção de tempos letivos às disciplinas artísticas e desportivas, apontadas pelos participantes como as que melhor se alinham com os objetivos de atividades que promovem a criatividade (“E.: Aquelas horas de expressões (…), no nosso Agrupamento, são dadas para Português e Matemática.”). De uma perspetiva crítica, esta aproximação pode ser reveladora de um viés artístico da criatividade (Glăveanu, 2014), evidenciando uma definição do constructo restrita à sua faceta expressiva. Ora, essa visão reducionista comporta limitações significativas à implementação de práticas pedagógicas capazes de fomentarem o desenvolvimento da criatividade que tem o potencial de gerar a mudança psicológica. Logo, parece ser fundamental investir na desmistificação do constructo junto da classe docente, induzindo uma reflexão crítica sobre os modos e formas de promoção efetiva de uma criatividade transformadora (que rompe com a homeostasis), co-construída num mundo em movimento dinâmico e capaz de impulsionar os alunos para níveis mais complexos de funcionamento psicológico. A dimensão do desafio foi, aliás, repetidamente referida no GDF, que a descreveu como crucial para o crescimento do próprio docente e da sua capacidade de elaboração de atividades pedagógicas criativas.
Tal tende a suportar a perspetiva de que, mais do que se difundirem treinos de competências criativas - que resvalam na repetição e treino cognitivo-, há que direcionar a ação da escola para a promoção de experiências qualitativas desafiantes, que se caracterizam pela capacidade de romperem o equilíbrio do sistema individual, pois colocam em jogo uma multiplicidade de dimensões sociocognitivas, que o(a) aluno(a) tem de interrelacionar e perspetivar criticamente, para conseguir produzir uma resposta viável e em harmonia com as exigências contextuais.
A dimensão motivacional da criatividade foi também abordada, delimitando um conjunto de sub-temáticas que reunimos na categoria obstáculos à abordagem da criatividade (vd. Tabela 1). Esta congrega referências a elementos ou fatores micro, meso e macrossistémicos que interferem com a exploração do constructo de criatividade, em contexto educativo. Na dimensão microssistémica, debateu-se a relação entre a satisfação profissional do(a) docente e a sua própria criatividade pedagógica, numa linha de pensamento que gravita em torno da interconexão motivação-criatividade e que aparenta enfatizar a abrangência do impacto desses fatores na qualidade da educação proporcionada aos alunos. Foi igualmente debatido o peso do investimento/reconhecimento profissional na implementação de atividades pedagógicas criativas. A nível microssistémico abordou-se o impacto do envelhecimento da classe docente no desenvolvimento da criatividade nos alunos, colocando-se o foco de discussão no panorama social/cultural que enforma a classe docente em Portugal. A este envelhecimento associam-se elevados níveis de desgaste profissional, que tendem a condicionar negativamente a motivação, envolvimento e capacidade de dinamização de atividades pedagógicas diferenciadoras e promotoras de aprendizagens significativas, capazes de potenciarem níveis mais complexos de desenvolvimento psicológico dos alunos (e.g., “F.: (…) é o que eu mais oiço ‘eu estou cansada’…”). No decorrer da discussão sobre estas dificuldades emergiu ainda a referência ao parco investimento da própria classe docente na atualização dos métodos pedagógicos utilizados na sala de aula. Surpreendentemente, fomos confrontados com o relato de atitudes negativas de alguns docentes face a colegas cujos métodos não se enquadrassem nos métodos pedagógicos tradicionais. Portanto, se por um lado, a reduzida atualização pedagógica dos docentes pode ser explicada pela insatisfação profissional e elevado índice de envelhecimento da classe, por outro, o preconceito quanto à utilização de estratégias educativas criativas foi um fator inesperado trazido à discussão pelo grupo, que exige uma análise cuidada. Talvez esse comportamento espelhe dúvidas quanto à definição e operacionalização da criatividade em contexto educativo (e.g., “A.: Como é que eu vou avaliar isto? C.: Isso é uma carga de trabalhos.”). Esta dualidade de apreciações face à criatividade (quem a desenvolve consegue evidenciar-se positivamente dos demais colegas, mas é simultaneamente discriminado), demonstra uma realidade paradoxal indiciadora da teia de relações complexas e dinâmicas que o constructo estabelece com diferentes dimensões do funcionamento psicológico humano. Logo, a criatividade enlaça-se na complexidade dessas estruturas, através de aprendizagens diferenciadoras, que, geralmente, não são universalmente acessíveis. Ou seja, a habilitação para a docência, embora possa constituir-se como um requisito importante e significativo para o desenvolvimento da criatividade, não é garantia de que as conceções que os professores fazem dela se distingam das teorias implícitas do senso-comum.
Sem embargo, a formação docente parece ser um elemento essencial de discussão, uma vez que, do GDF, assomaram informações que reiteram disparidades na exploração do constructo, nos diferentes níveis de ensino em análise. Claramente, é na educação pré-escolar que se privilegia (através de atividades lúdicas/artísticas) o tempo e espaço para a criatividade. Porém, corre-se o risco de se resumir essa exploração a uma expressividade repentista e espontaneísta, que parece continuar associada a estereótipos de senso-comum e que pode traduzir-se em estratégias educativas que, pela ausência de ênfase nas dimensões críticas e de construção de gramáticas simbólicas mais ricas e diversificadas, inibam o acesso a novos e mais complexos modos de funcionamento cognitivo-emocional (e psicológico, no geral) do(a) aluno(a).
6. Conclusões
Tratando-se, quanto sabemos, de um estudo pioneiro, não se encontra desprovido de limitações. Assim, a generalização de resultados é limitada pelas características, tamanho da amostra e número de GDF. No futuro, é desejável que a investigação seja ampliada a vários GDF, acrescentando questões resultantes de novas categorias de significado que surgiram neste trabalho. O número de investigadores envolvidos na análise e interpretação de dados também deverá ser aumentado, pois tal pode diversificar perspetivas de análise e enriquecer as categorias de significado definidas.
Ao privilegiar uma abordagem qualitativa, o presente estudo permitiu uma exploração e reflexão aprofundada das conceções de docentes quanto a fatores que contribuem para o lugar da criatividade nos curricula da educação pré-escolar e ensino básico em Portugal. Perante a complexa interseção da criatividade com a educação, o recurso a metodologias qualitativas (especificamente ao GDF) afigura-se como fundamental para a expansão do conhecimento quanto à realidade dialógica em que esta ocorre. A intersubjectividade e multidimensionalidade em que assenta o desenvolvimento da criatividade em contextos educativos (cuja riqueza não é passível de traduzir apenas quantitativamente), sublinha o impacto que abordagens qualitativas podem ter para a compreensão da complexidade subjacente a essa relação.
Concluindo, o presente estudo destaca a urgência de atribuir à criatividade um caráter verdadeiramente transversal, tornando-a presente nos curricula escolares, nos seus mais variados domínios e formas, em todos os momentos educativos. Evidentemente, este é um desafio que se coloca não só à escala educativa, mas cujas repercussões sociais e culturais podem ser tomadas como fundamentais para uma acomodação bem-sucedida das exigências da contemporaneidade pelos sistemas educativos atuais.