1. Introdução
O Ministério da Saúde (MS) do Brasil declara que a atenção à saúde da criança deve ter prioridade de atendimento, deve ser realizada com vistas a um cuidado integral e resolutivo. Os profissionais que atuam na Atenção Primária à Saúde (APS) devem estar preparados e organizados para atender esse público, considerando a importância do acompanhamento sistemático até o segundo ano de vida da criança, com avaliações mensais no primeiro e duas no segundo ano (MS, 2012).
No atendimento à criança, o enfermeiro possui como ferramenta de trabalho o Processo de Enfermagem (PE), instituído no Brasil pela resolução 358/2009 do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) que dispõe sobre sua implementação em ambientes públicos ou privados em que ocorre o cuidado de enfermagem (Cofen, 2009). O PE no âmbito da APS corresponde à Consulta de Enfermagem (CE), respaldada pela Lei do Exercício Profissional (nº 7498/86) e assegurada pela Resolução do Cofen nº 358/2009 (Cofen, 2009).
A CE à criança, objetiva identificar as necessidades de saúde, por meio de um olhar atento e criterioso voltado, especialmente, para o processo de crescimento e desenvolvimento infantil (Goes et.al, 2018; Yakuma et al.,2018).
O enfermeiro é um dos profissionais da APS que mais tem contato com a criança e sua família, a CE oportuniza identificar fragilidades, promover assistência integral e humanizada e, assim contribuir para a redução das morbimortalidades (Moreira & Gaìva, 2017).
Para contemplar as cinco etapas do PE (Histórico de Enfermagem, Diagnósticos de Enfermagem, Planejamento e Avaliação de Enfermagem), tem-se a Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE®), um Sistema de Linguagem Padronizada (SLP), que organiza diagnósticos, resultados e intervenções e, ao mesmo tempo, favorece a adoção de um vocabulário padronizado (Garcia, 2017).
Estudos indicam dificuldades para realização da CE à criança, como falta de estrutura física, insumos, equipamentos, sobrecarga de trabalho, pouca oferta de qualificação no âmbito dos serviços de saúde aos enfermeiros e, principalmente, carência de roteiros para guiá-la (Siega, et al., 2020; Ribeiro et al., 2014).
Justifica-se a importância desse estudo por contribuir na construção de um instrumento para guiar a CE à criança, de forma sistematizada, no âmbito da APS. O presente estudo objetivou construir um instrumento para guiar a Consulta de Enfermagem à criança na Atenção Primária à Saúde, com base na Classificação Internacional para as Práticas de Enfermagem e nas Necessidade Humanas Básicas.
2. Metodologia
Estudo de abordagem qualitativa, do tipo pesquisa-ação realizado em dois municípios do Estado de Santa Catarina, Brasil. Participaram 26 enfermeiros (15 de um município e 11 do outro) que atuavam no cuidado à criança na APS. Foram excluídos enfermeiros em afastamento por licença ou férias e com menos de seis meses de atuação na APS.
A pesquisa-ação foi conduzida em cinco etapas adaptadas de Thiollent (2011), fase exploratória, diagnóstico de situação, seminários integradores, qualificação dos enfermeiros e publicização.
Na fase exploratória foi realizada uma Revisão Integrativa (RI) com o objetivo de identificar tecnologias para o acompanhamento da saúde da criança de zero a cinco anos de idade na APS. A RI foi conduzida seguindo um Protocolo: identificação da questão de pesquisa, estruturada a partir do acrômio PICOT; definição dos critérios para inclusão e exclusão dos estudos; seleção e extração dos dados; análise e interpretação dos dados; apresentação dos resultados; discussão dos resultados (Zocche et al., 2020).
A busca foi realizada no catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) on-line. Os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) utilizados foram: “Criança”; “Teoria de Enfermagem”; “Cuidado de enfermagem”, “Atenção Primária à Saúde”, “Enfermagem”, “Tecnologias em Saúde”, “Processo de Enfermagem” e o sinônimo “Consulta de Enfermagem”. Esses foram cruzados entre si utilizando-se operador booleano AND.
Na etapa de Diagnóstico de situação foi traçado o perfil epidemiológico da saúde infantil, dos municípios em estudo, por meio dos dados, de domínio público, coletados nos sistemas de informação em saúde: Sistema de Informação de Mortalidade, Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos, Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde e no prontuário eletrônico de cada município.
Nessa etapa, também, foram entrevistados 26 enfermeiros que atuavam no cuidado à criança na APS no dois municípios, que cumpriram com os critérios de inclusão, visando compreender os significados atribuídos à CE à criança, levantar subsídios para a elaboração do instrumento de CE.
Na sequência foram realizados quatro Seminários integradores em cada município, com intervalo de 15 dias entre um e outro. No primeiro seminário foram discutidos os dados coletados nas entrevistas e nos sistemas de informação. Após ocorreu a construção coletiva da primeira etapa da CE - Histórico de Enfermagem (anamnese e exame físico). A etapa elabora foi testada pelos enfermeiros por 15 dias.
O segundo seminário, iniciou com discussões acerca da etapa da anamnese testada, foram decididos os ajustes e complementações necessárias. Na sequência, ocorreu a construção do roteiro para o exame físico, contemplando todos os sistemas corporais da criança de zero a dois anos de idade. Assim como no seminário anterior, o roteiro do exame físico foi testado pelos enfermeiros por 15 dias.
No terceiro seminário discutiu-se sobre o roteiro de exame físico, na sequência foi realizada a sua aprovação e em seguida a construção dos Diagnósticos (DE), Intervenções de Enfermagem (IE) e Resultados Esperados (RE), considerando a CIPE® e organizados dentro dos campos das Necessidades Humanas Básicas de Horta (2011). Porém, para essa construção foi necessário, inicialmente, realizar uma capacitação acerca da utilização desse SLP, pois apenas uma enfermeira possuía esse conhecimento.
Os DE, IE e RE foram elencados de acordo com a experiência e julgamento clínico das enfermeiras na assistência à criança e, considerando os dados extraídos dos sistemas de informação na etapa 2 (diagnóstico de situação) o que possibilitou aproximação da realidade e das necessidades locais. Ao final desse encontro ficou acordado que o instrumento contendo anamnese e exame físico, DE, IE e RE seria testado por 30 dias.
No quarto seminário foi discutida a versão final do instrumento de CE à criança e realizada a avaliação geral do instrumento por meio do Índice de Validade do Conteúdo (IVC).
A etapa de qualificação dos enfermeiros foi constante, proporcionada pelas discussões e construções coletivas o que instrumentalizou os enfermeiros para a implementação da CE à criança.
Publicização: para contemplar essa etapa o instrumento foi compartilhado com a Coordenação da APS e com todos os enfermeiros que atuam nos dois municípios visando sua implementação durante as CE. Em um dos municípios, esse estudo, desencadeou a elaboração do Protocolo de Atenção à Saúde da Criança, no outro, o instrumento de CE à criança foi incorporado ao protocolo municipal vigente.
Também está publicado no E-book Produções do Mestrado Profissional em Enfermagem na Atenção Primaria à Saúde: contributos para a gestão e o cuidado (Zanatta et al., 2020).
Os dados coletados nas entrevistas e durante as discussões coletivas nos seminários, foram organizados, considerando a análise de conteúdo (Bardin, 2011) em três etapas: pré-análise; exploração e tratamento dos resultados e inferência e interpretação.
Pré-análise: ocorreu a transcrição das entrevistas e dos seminários, organização e leitura do material empírico. Exploração e tratamento dos resultados: foram realizadas leituras em profundidade, visando identificar categorias. Inferência e interpretação dos resultados: ocorreu a aproximação dos resultados extraídos do material empírico e a discussão com a literatura científica, visando dar significado e validade aos dados brutos.
A pesquisa seguiu os preceitos éticos da Resolução nº 466 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde para pesquisa com seres humanos, aprovada pelo Comitê de Ética local sob Parecer nº. 2.630.923 (02/05/2018).
3. Resultados
A RI resultou em 2.280 estudos, destes 1.377 foram excluídos por estarem duplicados, 417 indisponível e 447 por fuga da temática assim, 39 estudos selecionados foram lidos na íntegra e desses, 20 incluídos no corpus deste trabalho.
Os estudos foram classificados quanto ao Nível de Evidência (Melnyk & Fineout- Overholt, 2011), ficando assim classificados: 15 estudos classificados em nível VI - proveniente de estudos descritivos ou qualitativos; três classificados em nível IV - derivados de estudos de caso-controle e de coorte; um classificado em nível II - proveniente de ensaio clínico randomizado; um estudo classificado em nível I- revisão sistemática com metanálise.
As tecnologias em saúde utilizadas no atendimento às crianças de zero a cinco anos, descritas na literatura, foram classificadas em leve, leve-duras e duras (Merhy, 2016) conforme figura 1:
O perfil epidemiológico da saúde infantil, realizado nos Sistema de Informação evidenciaram como as principais causas de morbidade hospitalar em crianças menores de um ano de idade, afecções no período perinatal, doenças do aparelho respiratório, doenças infecciosas e parasitarias. Em relação aos motivos de atendimentos nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), de ambos os municípios, foram por Nasofaringite aguda (resfriado comum), Otite externa não especificada e Doença do refluxo gastresofágico sem esofagite.
3.1 Consulta de Enfermagem à Criança: Compreensões e Dificuldades
Os dados coletados nas entrevistas revelam que os enfermeiros compreendem a CE como o momento para conhecer a história pregressa e atual da criança e sua família, realizar o atendimento/avaliação. Reconhecem a necessidade de implementá-la, mas declaram dificuldades para executá-la de forma sistematizada, considerando todas as etapas.
Realizam a etapa do Histórico de Enfermagem, porém apenas a anamnese, indicam dificuldades na realização do exame físico. Apenas cinco enfermeiros, das 26 participantes, realizam as etapas de Planejamento e Avaliação. A etapa de DE é não é realizada, pois não sabem como utilizar um SLP para subsidiar sua construção.
A justificativa para a não realização de algumas etapas envolve falta de formação teórica para isso, grande rotatividade dos enfermeiros na UBS o que dificulta a implementação dessa atividade e, principalmente, a formação de vínculo com a família da criança que tem como consequência a pouca adesão das famílias para a CE. Ainda, sinalizam dificuldades quanto a estrutura física das UBS, ou seja, falta de espaço para a realização da CE. Todos relataram dificuldade de realizar a CE pela falta de um roteiro para guia-la em todas as suas etapas, bem como a falta de educação permanente para subsidiá-los para essa atividade.
3.2 Construção e Validação do Instrumento para a CE
Conforme acordado pelos participantes do estudo o instrumento foi construído considerando as etapas preconizadas pela Resolução 358/2009 (Cofen, 2009): Histórico de Enfermagem, Diagnósticos de Enfermagem, Planejamento e Avaliação de Enfermagem e como referencial teórico para subsidiar essas etapas foi adotada a Teoria de Wanda Horta (2011) e a CIPE®.
O Histórico de Enfermagem ficou igual nos dois locais do estudo. A anamnese considerou dados socioeconômicos e culturais, antecedentes familiares, história obstétrica pregressa e do filho em avaliação, dados do nascimento, triagens neonatais, amamentação, eliminações, sono e repouso, cuidados com higiene, interação mãe- bebê. O exame físico contemplou: pele e mucosas, cabeça e pescoço, tórax, abdômen, quadril genitália, coluna, membros superiores e inferiores e avaliação neurológica (reflexos).
As etapas de DE, IE e RE ficaram diferentes nos dois município, pois foram considerados os dados epidemiológicos de cada local e as principais queixas/motivos de atendimentos de crianças na APS. Em um município foram elencados 19 DE, 19 RE e 38 IE e no outro foram 99 DE, 99 RE e 206 IE.
Os DE, IE e RE foram construídos considerando a CIPE® e organizados dentro dos campos das Necessidades Humanas Básicas de Horta (2011) considerando necessidades psicobiológicas: oxigenação, nutrição, eliminação, sono e repouso cuidado corporal, integridade cutaneomucosa, regulação térmica regulação neurológia, regulação imunológica, regulação crescimento celular, regulação vascular e as necessidades psicossociais: segurança/amor, participação/atenção.
Após a construção os enfermeiros realizaram a avaliação do instrumento por meio de um instrumento contendo uma escala do tipo likert com pontuação de um a quatro (1- Inadequado, 2- Parcialmente adequado, 3- Adequado e 4- Totalmente adequado) considerado aceitável o score igual ou superior a 0,80 de taxa de concordância (Polit- O’hara & Beck, 2011). Nesse estudo o IVC em um município foi 0,8 e no outro 1,0.
4. Discussão
Instrumentos que orientam a realização da CE são classificados como tecnologias leve- duras. Estes direcionam o enfermeiro no desenvolvimento de sua prática assistencial, durante a qual fazem uso de tecnologias leves como a comunicação, a escuta e o vínculo (Merhy, 2016).
Os enfermeiros compreendem a CE como uma tecnologia e reconhecem sua importância na assistência à criança, contudo a realizam de forma fragmentada, não contemplando todas as suas etapas. Situação justificada, especialmente, pela falta de um instrumento guia e pelo pouco embasamento teórico para a execução de algumas delas. Compreendem o Histórico de Enfermagem como uma etapa importante para a construção do vínculo com a criança e sua família, oportunizando, um atendimento integral. Porém, a falta de um instrumento para a coleta das informações fragiliza a CE e, consequentemente, o atendimento de qualidade e resolutivo, sobretudo, quanto a realização do exame físico.
Segundo Crivelaro et al., (2020), a identificação dos problemas, sob o olhar da integralidade, ocorre no Histórico de enfermagem, por meio da escuta qualificada que favorece a formação do vínculo. Horta (2011) enfatiza que a coleta de dados, é justamente a primeira etapa da CE devido sua importância na coleta de informações que darão subsídios à elaboração das demais.
A etapa de DE foi relatada como a menos realizada, pela dificuldade de compreensão quanto sua construção e operacionalização, pois muitos tiveram contato apenas na graduação ou mesmo desconhecem sua elaboração. Os resultados desse estudo corroboram outras pesquisas sobre as dificuldades dos enfermeiros em construir DE (Moretti et al., 2016; Spazapan, 2017).
Para Horta (2011), a etapa de DE inicia na ação de identificar as necessidades do ser humano e avaliar qual seu grau de dependência. Observou-se que as enfermeiras partem dessa identificação, contudo apresentam dificuldade na elaboração dos DE, na utilização de um SLP e na realização de um raciocínio diagnóstico para sua utilização.
Destaca-se a relevância dos DE, elaborados a partir de um SLP como a CIPE®, para potencializar a práticas assistenciais e agregar qualidade ao cuidado (Andrada et al., 2015; Moura et al., 2015). A CE contemplada em todas as suas etapas, promove um cuidado integral à criança, a confiança, formação de vínculo com a família, estimula o retorno para consultas rotineiras e facilita a continuidade do cuidado, além de dar cientificidade ao trabalho do enfermeiro (Ribeiro et al, 2014).
A CE, realizada na sua integralidade, permite um olhar holístico à criança, um ser que possui necessidades psicobiológicas, psicossociais, psicoespirituais, intimamente interconectadas, pertencente a uma família e comunidade (Horta, 2011).
Em relação às dificuldades dos enfermeiros durante a CE à criança ressalta-se a importância e necessidade de instituir atividades de Educação Permanente em Saúde à esses profissionais, a exemplo do que foi realizado nesse estudo.
5. Conclusões
A pesquisa-ação oportunizou momentos de estudo, discussão, troca de experiências entre os enfermeiros e pesquisadora, fortaleceu a compreensão da importância da CE sistematizada, ancorada em referencias teóricos e metodológicos e voltada às necessidades de cada local.
O instrumento desenvolvido contribuirá para a qualificação e resolutividade da CE à criança. Poderá ser implementado e/ou adaptado para ser utilizado em diferentes os cenários da APS.