1 Introdução
A situação de doença grave, atinge não só a pessoa doente, como provoca sofrimento nos seus familiares, afetando as suas vidas e as suas circunstâncias de vida. Engström et al. (2011) corroboram esta ideia afirmando que, a admissão de um doente na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), transforma totalmente o dia-a-dia dos familiares e não permite muito tempo para se ajustarem à nova condição. Citando Morton e Fontaine, Engström et al. (2011) referem que a UCI, um serviço muitas vezes desconhecido, passa a ser o centro da vida para a pessoa doente e família. A generalidade dos estudos, atualmente, concluem que promover a presença da família é essencial na prestação de cuidados de enfermagem de excelência à pessoa em situação crítica (PSC) (Sá et al., 2015). A visita da família proporciona um sentido de segurança, proteção e conforto, numa altura de extrema vulnerabilidade (Bergbom & Askwall, 2000). Um outro estudo, mostra que a proximidade familiar ajuda a tranquilizar os membros da família sobre o estado de saúde da pessoa doente; a separação física é um lembrete constante da sua fragilidade (Mitchell et al. 2009). Detalhes e decisões relativos ao cuidado da PSC na UCI envolvem comunicação e discussões, com os membros da família a adotarem o papel de advogado e mensageiro da história e desejos da pessoa doente.
Com a restrição das visitas em virtude da situação de pandemia COVID-19, ficou limitado o acesso do doente à interação com a família, nomeadamente, o receber apoio dos que lhe são significativos (Freeman-Sanderson et al., 2020).
Os enfermeiros são os profissionais de saúde que, pela presença contínua e competência clínica, podem avaliar e intervir na satisfação das necessidades do doente e família, pelo relacionamento único que conseguem estabelecer (Ordem dos Enfermeiros, 2018). Engström et al. (2011), citando Gavaghan and Caroll (2002), referem que, conhecendo as necessidades dos familiares, os enfermeiros das UCI desenvolveram um sentimento de ajuda, na intenção de melhorar os resultados esperados para os doentes e família.
Segundo Meleis (2010), a PSC vivencia um processo de transição, enquanto passagem entre dois estados relativamente estáveis, desencadeada por eventos críticos e mudanças nos indivíduos e/ou no ambiente. Assim, existem diferentes tipos de transição: saúde-doença; situacional; de desenvolvimento e organizacional. No caso da PSC, considera-se que experiencia uma transição saúde-doença. Trata-se de um processo dinâmico e temporário, caracterizado por uma alteração do estado de saúde/doença. Esta alteração pode ser súbita (doença aguda) ou progressiva no caso da doença crónica (admite aceitar a sua nova condição). De acordo com esta mesma autora, os enfermeiros pela posição privilegiada em que se encontram devem, pela apreciação estruturada, identificar as necessidades individuais da pessoa doente e perdas que ocorrem durante o processo de transição, estabelecendo intervenções terapêuticas de enfermagem (Meleis, 2010).
A enfermagem, enquanto disciplina, com um corpo de conhecimentos próprios, que se desenvolve e sustenta no exercício clínico, coloca conhecimentos ao dispor das pessoas que, vivenciam estes processos de transição, tendo em vista a facilitação dos mesmos, na procura da homeostasia e bem-estar (Meleis, 2010; Pires, 2009).
O enfermeiro, numa abordagem sistemática, deve identificar e compreender nas transições vivenciadas pelas pessoas, a sua natureza, as condições facilitadoras e inibidoras assim como, os indicadores de processo e de resultado (Meleis, 2010). Assume-se como agente facilitador do processo de transição, tendo como foco de atenção, no exercício clínico de Enfermagem, a pessoa (Guimarães, MSF. Silva, 2016).
Considerando a transição saúde-doença e situacional, experienciada pela PSC e família, esta revisão integrativa da literatura, teve como objetivo: compreender quais as Intervenções de Enfermagem que se revelam facilitadoras à PSC, em contexto de UCI e no Serviço de Urgência (SU). Foi formulada a seguinte questão de investigação: - Quais as intervenções de enfermagem, que se revelam facilitadoras, face ao distanciamento da família, em contexto de Serviço de Urgência e Unidade de Cuidados Intensivos, em cenário de pandemia?
2 Metodologia
Foram realizadas pesquisas aleatórias no motor de busca Google, artigos e literatura cinzenta nos repositórios das bibliotecas, para melhor orientar e desenvolver a problemática em análise. A partir desta pesquisa, foi aprofundada a temática, tendo-se identificado e selecionado as palavras-chave a serem utilizadas, tendo em consideração o objetivo do estudo e questão de investigação. Na formulação da questão de investigação e, para a definição dos critérios de inclusão, utilizou-se o método designado de PICo (População, Fenómeno de Interesse e Contexto) -Tabela 1, a partir do qual se construiu o processo de identificação e seleção dos estudos, tendo por base as orientações do Joanna Briggs Institute for Evidence Based Practice (Lizarondo et al., 2020).
Como critérios de exclusão definiram-se estudos: que não façam referência à PSC com idade superior a 18 anos; que não façam referência às intervenções terapêuticas de enfermagem; que não sejam realizados em contexto de SU e UCI e que não sejam de língua portuguesa, inglesa, espanhola ou francesa.
A estratégia de pesquisa utilizada pretendeu identificar todas as tipologias de evidência, não se restringindo apenas a estudos de investigação primários. Foi estabelecido o limite temporal a partir do ano 2009, no sentido de extrair eventuais estudos relativos à pandemia de gripe H1N1 de 2009, por isso no período de 2009 a 2020. Foram definidos como limitadores: a língua Portuguesa, Inglesa, Espanhola e Francesa, por serem aquelas que são dominadas pela equipa de investigadores. A estratégia inicial de pesquisa usou termos de pesquisa mapeados para o Medical Subject Headings (MeSH). Foram utilizados os seguintes descritores, de acordo com a questão de investigação: critically ill patient; adult; middle aged; aged; aged 80 and over; nurse intervention;nurse therapeutics intervention; Family distance; Critical care; Intensive care; emergency department; emergency care; pandemic. A pesquisa foi realizada na plataforma agregadora EBSCOhost e nas bases de dados CINAHL Plus with Full Text e MEDLINE with Full Text. Estes foram combinados através das expressões booleanas AND e OR. A pesquisa nas bases de dados, foi realizada na última semana de novembro de 2020, à exceção dos artigos obtidos pela literatura cinzenta em fevereiro de 2021.
O processo de triagem foi baseado no Reporting Items for Systematic Reviews and MetaAnalyses (PRISMA), para a realização de revisões sistemáticas (Moher, Liberati, Tezlaff and Altman, 2009) e na metodologia do Joanna Briggs Institute no que concerna às diretrizes de uma revisão sistemática.
A pesquisa inicial revelou 283 artigos no total, sendo 10 duplicados. Após a análise dos títulos dos 273 artigos, foram excluídos 169, e pela leitura do abstract excluíram-se 93. Depois da leitura de todos os artigos, trabalharam-se 24, tal como se pode ver na Figura 1.
Pela amostra de artigos apresentada, constata-se que o seu volume é reduzido, e a temática menos abordada, nomeadamente em contexto de SU, com apenas 2 artigos para análise.
De evidenciar a existência de um estudo português. Da extração de resultados e posterior análise, constata-se, relativamente à opção metodológica, que apenas 1 seguiu metodologia quantitativa, 1 estudo misto e, os restantes, metodologia qualitativa. A mencionar: 1 estudo seguiu metodologia para gerar uma Grounded Theory, de acordo com Corbin e Strauss (2015). Outros 2 estudos uma abordagem fenomenológica, de acordo com Van Manen (1990). Verificou-se que muitos estudos se basearam na teoria do cuidado centrado na família. De mencionar que, nenhum deles tem como objetivo as intervenções de enfermagem no cuidado à PSC, face ao distanciamento da família, no SU e UCI em contexto de pandemia. No entanto, a grande maioria refere-se à importância da definição das necessidades reais e potenciais da família e PSC, nestes contextos. Há a referência também, ao conhecimento das experiências vividas pela família face ao internamento. Dois artigos nomeiam e exploram a videochamada, como estratégia de comunicação doente-família- profissionais de saúde. Verifica-se desta extração que a metodologia qualitativa, se revela determinante em enfermagem, pelo potencial de extração de dados essenciais, nomeadamente da experiência vivida ou de processos de transição experienciados, pelas pessoas que se revelam clientes de enfermagem. A apreciação dos artigos, foi efetuada pelo investigador principal de forma independente com a revisão dos outros dois investigadores. A análise crítica dos estudos incluídos, implicou uma abordagem organizada na intenção de ponderar o rigor e as características de cada estudo. Constata-se que a grande maioria dos estudos se enquadra no Nível 4: evidências de estudos descritivos (não-experimentais) ou com abordagem qualitativa (Soares et al., 2010).
3 Resultados e Discussão
Os principais resultados são sintetizados usando a forma narrativa, por estarem incluídos nesta revisão 22 artigos qualitativos, 1 quantitativo e 1 misto. Importa que a partir da interpretação e síntese dos resultados, os mesmos sejam trabalhados tendo como suporte o referencial teórico elencado, nomeadamente a teoria das transições de Afaf Meleis (Soares et al., 2010).
De acordo com Abad et al. (2010), o processo de isolamento físico em UCI tem um impacto negativo no comportamento da PSC, com taxas aumentadas de depressão, ansiedade, medo e hostilidade. A razão para estes resultados está provavelmente ligada à incerteza e perda de controlo da situação. Por sua vez, os familiares sentem-se desconetados, conduzindo a um aumento da vulnerabilidade emocional, o que representa uma barreira à recuperação do controlo (Wong et al., 2018). Compreender as experiências da família e as suas interações em UCI, permite gerar uma teoria substantiva que represente as interações das famílias, podendo ser usada para orientar a prática de enfermagem. Para Wong et al. (2018), bem como para outros autores mencionados neste trabalho, as intervenções de enfermagem devem ter em conta o cuidado centrado na família da PSC. Cuidado esse, definido pelo IPFCC (Instituto Cuidado Centrado no Paciente e Família, 2010), como: “uma abordagem, entrega e avaliação dos cuidados de saúde, baseada em parcerias benéficas entre prestador do cuidado de saúde-doente-família” (Wong et al., 2018, pág.95). Kydonaki et al. (2020) mencionam que, o envolvimento no cuidado requer a consideração pelos valores dos pacientes e família e o desenvolvimento de uma parceria construtiva entre os parceiros. Van Mol et al. (2017, pág.3212) atentam que, “o incentivo e o aprofundamento”, do cuidado centrado no paciente e na família “é uma meta importante na UCI; no entanto, requer mudanças desafiadoras na mentalidade dos profissionais”, sendo necessária uma mudança do paradigma de atitude paternalista para uma atitude de papel de apoio “ o que posso fazer por si, para o ajudar?” (van Mol et al., 2017, pág. 3214). As intervenções focadas no apoio aos familiares e na comunicação à luz do foco no paciente, irão melhorar a perceção da qualidade do atendimento (van Mol et al., 2017). Essas intervenções deverão ter em conta aspetos como: dignidade, respeito, partilha da informação, participação e os valores, antecedentes culturais e as perspetivas da família e da pessoa doente. Aro et al. (2012) acrescentam: segurança, suporte emocional e conforto físico. Já no SU, é referida também e, de acordo com Redley et al. (2019) a comunicação.
A necessidade de comunicar, classificada como a mais importante por familiares e enfermeiros, é determinante em UCI e SU (Hsiao et al., 2017). Mendes (2020) tendo por base a Teoria da Incerteza na doença de Mishel e a Teoria das Transições de Meleis, constatou que a comunicação que é estabelecida entre familiares e enfermeiros em UCI, nomeadamente em busca de informação, é mediada pela vivência da incerteza, num imprevisto constante. Casarini el al. (2009) designam incerteza como a incapacidade de determinar o significado dos eventos relacionados com a doença. Constata-se que uma “comunicação continuada e profícua com o enfermeiro, num registo de análise de probabilidades e de informação consistente” (Mendes, 2020, pág.5), é considerada como um fator facilitador na experiência vivida.
Mitchell et al. (2018) elencam que, a informação a ser dada aos familiares deve ser: adequada, nas mais variadas formas e ao longo de todas as fases de doença, recuperação ou morte. Desta forma, a ansiedade é reduzida, permitindo também, a tomada de decisões sustentadas e informadas e, a possibilidade de advogar pelos seus familiares.
Khalaila (2013), no estudo que conduziu relativamente às necessidades dos familiares e à satisfação das necessidades atendidas, compreendeu a importância da atenção, que os enfermeiros devem ter e, do estabelecimento de planos para as satisfazer, dando- lhes máxima prioridade e tempo suficiente. Nair et al. (2015) referem o uso de diários dos pacientes em UCI, como ferramentas de comunicação, de recuperação do doente e estratégia de cuidados centrados na família.
O impacto real da sua utilização ainda não foi estabelecido e seriam necessárias pesquisas, para ser instituído no exercício clínico de enfermagem, o conteúdo e aplicação, bem como garantir o não malefício aos doentes e família.
A elaboração de um diário, consiste na narrativa de fatos, fotografias, eventos e emoções do período temporal, por aqueles que acompanham o doente em UCI (profissionais de saúde e familiares) (Tavares et al., 2019). Os mesmos autores mencionam que tem sido “uma das estratégias que permite ao doente atribuir significado, coerência” ao período de tempo em UCI (Tavares et al., 2019, pág.165). Egerod & Christensen (2009) num estudo de análise de 25 diários escritos por enfermeiros de UCI, apontam o reconhecimento da experiência do paciente, bem como proporcionam novos insights sobre o desempenho da enfermagem.
Aitken et al. (2017), no seu processo de revisão Cochrane, relativamente aos diários, relata a não evidência de sintomas de stress pós-traumático para os pacientes, mas verifica uma redução significativa destes sintomas nos familiares. Højager et al.(2019) por sua vez, aborda os diários da PSC apenas elaborados pelos familiares, como elementos que, evoluíram da intervenção de enfermagem para a participação da família. São ferramentas que fornecem informações e promovem a compreensão das experiências, quer dos doentes, quer dos familiares durante a situação crítica, apoiando assim o processo de recuperar o controlo (Højager et al., 2019).
Cutler et al. (2013), através de uma revisão sistemática da literatura, identificaram alguns temas associados às experiências em situação crítica, para perceber como estas informam o conhecimento do doente. A referir,” o cuidado, comunicação e relacionamento com profissionais de saúde” e “suporte da família e amigos e o desejo de contacto” (Cutler et al., 2013, pág.143). Há aspetos que podem facilitar ou interferir na interação entre a PSC e o enfermeiro. Por exemplo, Saldaña et al. (2015) mencionam que, o contacto escasso com PSC, privilegiando intervenções de cuidado físico, a limitação de tempo quando ocorrem, o uso de linguagem técnica não muito assertiva e não envolver as famílias, como sujeitos de cuidado, são aspetos que limitam a comunicação. É importante que os enfermeiros, reconheçam o sofrimento e a vulnerabilidade das famílias e lhes proporcionem oportunidades de comunicação honesta e sensível, incluindo-as na experiência de doença crítica, em todos os aspetos do cuidado, suportado nos princípios do cuidado centrado na família (Nelms & Eggenberger, 2010; Cypress, 2011).
E, em situação específica de pandemia, com a restrição das visitas dos familiares à UCI, a videochamada, surge como estratégia para a comunicação entre profissionais de saúde-pessoa doente-família, e para o cuidado centrado no paciente (Rose et al., 2021). A videochamada acarreta benefícios valiosos em termos de recuperação do doente e da moral da equipa de saúde. Melhorar o acesso e desenvolver uma abordagem mais consistente para a visita virtual da família à UCI pode melhorar a qualidade do atendimento, tanto durante quanto após pandemia (Rose et al., 2021). Montauk & Kuhl (2020) estabelecem medidas a serem tomadas pelos profissionais de saúde por forma a manter interação e estabelecer o vínculo familia-pessoa doente e profissional de saúde, face ao distanciamento imposto pelo COVID-19. A saber, “o reconhecer a singularidade e dificuldade da situação e validar a incerteza sentida por todos; iniciar videochamda desde o início do internamento, com consentimento familiar; não recear a demonstração de emoções e transmitir a informação abertamente” (Montauk & Kuhl,2020, pág.97).
Na figura 2 é representada uma esquematização das intervenções facilitadoras para uma transição saudável, face ao distanciamento da família.
4 Conclusões
Torna-se evidente, tendo como referencial a Teoria das transições de Meleis, que o cuidado de enfermagem centrado na família e pessoa doente emerge como facilitador no processo experienciado. O enfermeiro realiza de forma sistemática a identificação das necessidades individuais da PSC/Família e planeia intervenções por forma a que a transição seja saudável. Consideram-se os processos de transição, e neles as experiências vividas, num registo que pode ser individual ou múltiplo, simultâneo ou sequencial, face ao impacto e solicitações encontradas.
Esta revisão integrativa da literatura ainda que não responda diretamente à questão de investigação, subsidia a prática profissional em contexto de pandemia. Emergiram deste estudo três aspetos essenciais quanto às intervenções facilitadoras: a definição das necessidades reais e potenciais da PSC e família, o conhecimento das experiências vividas pela família face ao processo e a construção de estratégias de comunicação.
Como implicações para a prática e investigação, propõem-se mais estudos na área das intervenções de enfermagem facilitadoras de uma transição saudável da PSC, face ao distanciamento da família, em contextos em que a interação família-doente-profissional de saúde esteja limitado por circunstâncias muito significativas.
Verifica-se que a riqueza da metodologia qualitativa, garante e possibilita, uma proximidade única e confortadora, daquelas que são as reais ou potenciais necessidades da pessoa e família.