1 Introdução
Nota-se que a saúde da pessoa com deficiência ganhou relevância e prioridade nos últimos anos, surgindo a demanda para profissionais aptos para atuarem nestes serviços e que compreendam as políticas que balizam seu trabalho, dentre elas a integralidade (Alves et al., 2016; Comes et al., 2016).
A integralidade, entre os princípios do SUS (Sistema Único de Saúde), é o que mais incita o efetivo acesso à saúde nas práticas em saúde, pois a universalidade garante o acesso de todos, já a equidade pactua as necessidades do individuo, enquanto a integralidade impulsiona como as ações de saúde serão concretizadas, de modo a apreender as necessidades de saúde das pessoas (Ayres, 2009).
Para execução de ações e serviços no SUS é fundamental compreender a integralidade. Por meio da integralidade busca-se desenvolver uma assistência centrada na pessoa, ampliada e transformadora visando atender o sujeito em sua totalidade com menos ênfase no uso de tecnologias (Aguiar & Santos, 2016; Teixeira et al., 2013).
Uma abordagem pautada na integralidade deve superar um corpo portador de lesão ampliando a escuta consolidando ações que reconheçam a realização de projetos de vida, apesar dos limites impostos por barreiras socialmente construídas (Pereira, 2009).
A recolocação do indivíduo e suas vivências no centro das ações, em substituição a incapacidade, expressa também o princípio da integralidade, onde a atenção a saúde deve extrapolar a fragmentação sobre o indivíduo com deficiência através das ações de reabilitação (Pereira, 2009).
É necessário que serviços de assistência à saúde e instituições de ensino incorporem em suas práticas um atendimento que valorize todos os aspectos da pessoa alcançando a integralidade em toda sua amplitude; para tanto docentes e instituições de ensino superior tem significância na formação de profissionais e no desenvolvimento de competências, dentre elas a integralidade, de modo atender as necessidades e especificidades que sociedade contemporânea requer (Lacerda & Santos, 2018; Teixeira et al., 2013).
Dessa forma, levantamos o seguinte questionamento: Como a formação profissional influencia na integralidade e seu desenvolvimento no contexto da Reabilitação Física?
A compreensão da influência da formação profissional no desenvolvimento da integralidade na Reabilitação Física torna-se imprescindível, tendo em vista, que a formação está diretamente vinculada a qualidade do cuidado em saúde.
2 Objetivo
Compreender a influência da formação profissional no desenvolvimento da integralidade no contexto da Reabilitação Física.
3 Metodologia
A pesquisa qualitativa possibilita o entendimento das relações, das representações, das percepções, das crenças, das opiniões e da história, possibilitando desvelar processos sociais, ainda pouco revelados referente a grupos específicos ocasionando a elaboração e revisão de conceitos, categorias e abordagens durante a investigação (Minayo, 2014).
A construção do conhecimento da realidade é essencial para compreender os fenômenos sociais, deste modo, esta pesquisa se alicerça nos pressupostos das Teorias Compreensivas, que se amparam e focam nas vivências, no contato entre as pessoas, a relação de pesquisadores e participantes, promovendo a empatia entre os atores e os resultados refletem a realidade (Minayo, 2014).
Dentre as possibilidades para essa compreensão através da pesquisa qualitativa podemos considerar a Hermenêutica-dialética (Minayo et al., 2015; Minayo et al., 2016).
A Hermenêutica desenvolve-se em todos os casos de compreensão da linguagem escrita e falada. Na necessidade de compreensão ocorrerá interpretação, sempre vinculada a uma situação real a Hermenêutica estará sempre presente (Gadamer, 2015; Schmidt, 2014).
Em contradição, a Dialética define-se pela crítica e autocrítica com seus adeptos constantemente examinando o mundo, analisando suas interpretações e promovendo mudanças (Konder, 2008).
Desta forma, a Hermenêutica pretende compreender o fenômeno, a Dialética, por sua vez, concebe o pensamento crítico. Na articulação entre as duas perspectivas pretende- se a compreensão buscando desvelar os significados, fatos, observações e relatos permitindo a construção de um relato em que os atores se reconheçam em seus contextos (Minayo et al., 2015; Minayo et al., 2016).
A Hermenêutica-dialética revela-se um caminho relevante para fundamentação de pesquisas qualitativas, nessa articulação de estratégias não há técnica específica, mas elementos teóricos que balizam os investigadores (Minayo, 2014).
De tal modo a Hermenêutica-dialética busca apreender a linguagem, as práticas e as relações sociais e através da contradição e crítica, ou seja, compreender os indivíduos inseridos em grupos sociais em um determinado momento histórico verificando interesses que os diferem e que os unificam sempre referindo-se a práxis alicerçada na tradição, linguagem, trabalho e poder (Minayo & Deslandes, 2013; Minayo, 2014).
Assim o diálogo entre Hermenêutica e Dialética resultará na compreensão de atitudes e o que está implícito para indivíduos e grupos; como também nas mudanças destes relacionando com os acontecimentos de passado e presente com projeções de futuro e, deste modo, compreender como a necessidade e a liberdade interferem no processo (Minayo & Deslandes, 2013; Minayo, 2014).
A Hermenêutica-dialética não se reduz a uma mera abordagem ou teoria de tratamento de dados, mas sim uma análise compreensiva e crítica da realidade, sendo momentos necessários para produzir a racionalidade dos processos sociais (Minayo & Deslandes, 2013).
A Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 e a Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016, delinearam os aspectos éticos desta pesquisa. O Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) com parecer 1.377.931 e da CAAE 51620115.8.0000.5413 procedeu a autorização da realização de todos procedimentos pertinentes a este estudo. Os participantes conferiram previamente autorização para realização da entrevista mediante preenchimento e esclarecimento do TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) (Ministério da Saúde, 2012; Ministério da Saúde, 2016; Marconi & Lakatos, 2017).
Estudo realizado no Centro de Reabilitação Lucy Montoro em uma unidade da região centro-oeste paulista que iniciou suas atividades em agosto de 2014, sendo referência para 62 municípios com uma população total 940.814 habitantes para atendimentos de Reabilitação Física a pacientes portadores lesões encefálicas do adulto, lesões medulares, amputações, má-formação e paralisia cerebral (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, 2014; Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo, 2010).
Fizeram parte do estudo a totalidade dos integrantes da equipe multiprofissional que presta cuidados diretos e especializados no Centro de Reabilitação Lucy Montoro, constituída de vinte e quatro profissionais (24), sendo dois médicos fisiatras, três assistentes sociais, três psicólogas, quatro fisioterapeutas, quatro terapeutas ocupacionais, duas fonoaudiólogas, duas enfermeiras, uma nutricionista e três educadores físicos.
Os critérios de inclusão empregados foram profissionais com formação de nível superior e, que no período da coleta de dados não estivessem em afastamento ou em período de férias. Considerando esses critérios, dois profissionais não participaram do estudo.
Codificaram-se os participantes com “P”, em referência a “Participante”, com sequência numérica crescente posteriormente, por exemplo, “P1”, “P2” e assim continuamente até “P24”, na apresentação dos resultados, tendo em vista o aspecto ético.
A coleta de dados para pesquisa ocorreu no ano 2016 entre os meses de fevereiro a maio; para tanto foi realizada a coleta de informações sócio demográficos e uma entrevista guiada pela seguinte questão norteadora: Na sua concepção, como a formação profissional influencia na integralidade e seu desenvolvimento no contexto da Reabilitação Física?
Realizou-se a coleta de dados por uma única pesquisadora, de modo uniformizar a realização das entrevistas, onde realizou-se uma escuta atenta sem interrupções, de modo que participante expressar-se livremente. Esta pesquisadora desenvolve atividades laborais neste Centro de Reabilitação, o que observou-se ser um fator facilitador devido uma familiarização com rotina de trabalho (Ministério da Saúde, 2012; Ministério da Saúde, 2016; Marconi & Lakatos, 2017).
Os dados obtidos foram gravados e utilizados somente para realização da presente pesquisa e, após sua transcrição, excluídos do arquivo digital. A transcrição passados cinco anos da sua publicação será destruída (Ministério da Saúde, 2012).
A análise dos dados ocorreu à luz da Hermenêutica-dialética, por meio do Método de Interpretação de Sentidos, que busca a lógica interna e a compreensão do contexto dos participantes com foco no fenômeno cultural (Minayo et al., 2015; Minayo et al., 2016).
Para que a interpretação ocorra é preciso compreender os significados, pelos que vivem tal fenômeno, para tanto, alguns parâmetros tem que ser levados em consideração que são: a compreensão dos dados no contexto em que são gerados, a seriedade dos textos supondo que os mesmos tem determinado sentido para compreensão dos motivos do autor em se expressar de tal forma não considerando que exista um ultimato em relação ao texto e entender que o autor apresentaria explicações elaboradas, caso penetrasse no mundo do pesquisador (Minayo et al., 2016).
A análise dos dados, ocorreu em três fases que são leitura compreensiva do material selecionado, exploração do material e elaboração de síntese interpretativa. O pesquisador caminha em direção de uma síntese partindo do sentido mais amplo que manifesta a lógica do conjunto do material fazendo uma articulação com os dados empíricos, os objetivos de estudos e a base teórica adotada (Minayo et al., 2015; Minayo et al., 2016).
4 Resultados e Discussão
Realizou-se entrevistas com 24 profissionais da equipe multiprofissional, sendo 91,7% dos entrevistados são do sexo feminino, 70,9% com faixa etária 25 a 34 anos, 70% com até 10 anos de tempo de formação e 70,8% com alguma Pós-graduação.
Os discursos dos profissionais da equipe que atuam no contexto da Reabilitação Física desvelaram três categorias analíticas: Pouca valorização da integralidade na formação profissional, Lacuna no processo ensino-aprendizagem relacionada a Reabilitação Física e Escassez de treinamentos e cursos com enfoque na integralidade, que são desveladas na sequência.
4.1 Pouca Valorização da Integralidade na Formação Profissional
Nesta categoria analítica foi explicitado a pouca valorização da integralidade na formação dos profissionais que atuam na Reabilitação Física, como verificado pelas falas a seguir:
“A minha formação não estimulava muito o multiprofissional e a visão integral, na prática o professor queria saber o que eu tinha aprendido na Ortopedia ou na Neurologia o que pode ter ocorrido com os outros profissionais[...]” (P11).
“Falta conscientização da integralidade [...]” (P9).
“[...] alguns profissionais não tem a noção do que é integralidade
[...]” (P3).
Alguns currículos dos cursos de graduação tinham ou ainda tem base flexneriana formando profissionais que apresentam dificuldade em compreender o seu papel na sociedade com uma visão biologicista e fragmentada pautado na lógica de mercado (Brito-Silva et al. , 2012).
As novas diretrizes curriculares implementadas nos cursos de graduação da área da saúde destacam o trabalho em equipe multiprofissional com o enfoque interdisciplinar através do desenvolvimento de habilidades e competências, rompendo o pensamento disciplinar no decorrer do processo de formação (Backes et al., 2014; Ribeiro et al., 2010).
O pensamento disciplinar é um saber míope e dicotômico, onde o profissional tem conhecimento somente sobre sua especialidade resultando no fracionamento dos problemas de saúde, ou seja, fracionamento do ser humano estando em contradição com os princípios e diretrizes do SUS que dificulta o desenvolvimento da integralidade (Backes et al., 2014; Ribeiro et al., 2010).
Existem lacunas na formação dos profissionais quanto à integralidade, diante disto espera-se que escolas desenvolvam currículos que superem os modelos tradicionais de ensino que integrem os diferentes contextos e as unidades produtoras de cuidado fazendo com que escola participe da vida em comunidade se aproximando do ideal da integralidade (Santos et al., 2015).
Há um descompasso entre a formação acadêmica e a realidade concreta dos serviços para modificação deste cenário é preciso que os docentes incorporem efetivamente as diretrizes curriculares nacionais, a promoção de espaços de reflexão entre os estudantes dos diversos cursos de saúde, estimular o uso de metodologias que incentivem ampliação da visão das pessoas como seres complexos e singulares, estimular o processo formativo, promover uma valorização do SUS e assim por consequência serão formados profissionais aptos a compreenderem as necessidades do indivíduo e à trabalharem em equipe buscando o desenvolvimento da integralidade (Backes et al., 2014; Ribeiro et al., 2010).
A Hermenêutica-dialética possibilitou compreender que formação tem grande influência em como a integralidade será desenvolvida na prática profissional, contudo apesar da preocupação estar presente nota-se que ainda é necessário mudanças nas escolas, onde a integralidade esteja realmente inserida de maneira profunda nos currículos possibilitando sua real implementação.
4.2 Lacuna no processo ensino-aprendizagem relacionada a Reabilitação Física
Evidencia-se também a lacuna no processo ensino-aprendizagem no que se refere a Reabilitação Física, como mostra-se através dos próximos discursos:
“Na Enfermagem não tivemos uma abordagem acadêmica voltada pra Reabilitação então a dificuldade fora é bem maior” (P6).
“Em termos de Reabilitação Física não tem uma matéria específica, pelo menos na fisioterapia, onde estamos todos em aprendizado” (P7).
A formação do profissional apto para atuar na reabilitação não deve ser exclusivamente tecnicista, sendo necessário um equilíbrio entre a capacitação científica e formação humanística havendo um equilíbrio entre estes e possibilitando o atendimento na perspectiva da integralidade à pessoa com deficiência (Missel et al., 2017).
Diante disto precisa-se incentivar uma formação mais abrangente onde os profissionais estejam habilitados a atender as necessidades de saúde do indivíduo em processo de reabilitação (Ribeiro et al., 2010).
A efetividade do processo de reabilitação, bem como a inclusão social da pessoa com deficiência física encontra-se intimamente ligada a formação acadêmica e quando esta encontra-se deficitária resulta em uma carência de profissionais com preparo para desenvolver as práticas em saúde em consonância com a integralidade (Missel et al., 2017).
Nota-se, a necessidade de modificação de um paradigma cultural já estabelecido buscando criar vínculos comunicacionais entre as diversas esferas do cuidado, de modo que o sistema de referência e contra referência seja efetivo, flexível e dinâmico possibilitando a continuidade do cuidado (Pereira & Machado, 2016).
Porém para que esta modificação de paradigma ocorra faz-se se necessário uma mudança nos cursos de graduação na área da saúde, porém os cursos não evidenciam disciplinas relacionadas à reabilitação resultando em profissionais não aptos para o atendimento de pessoas com deficiência ocasionando dificuldades no desenvolvimento do processo de trabalho (Dormites et al., 2015).
A preocupação com formação profissional encontra-se presente e desencadeando o agir transformador com o desenvolvimento da integralidade como foco, mas para tantas modificações foram e estão sendo promovidas e implementadas, de modo promover profissionais críticos e reflexivos (Silva & Ramos, 2010).
Através da Hermenêutica-Dialética constatamos que atenção à da pessoa com deficiência não recebe a atenção que deveria nos cursos de graduação resultando em uma escassez de profissionais aptos em atuarem com está parcela da população, assim faz-se inerente um olhar para Reabilitação Física com enfoque na formação dos profissionais.
4.3 Escassez de Treinamentos e Cursos com Enfoque na Integralidade
Por fim identifica-se uma escassez de treinamentos e cursos com enfoque na integralidade, como descrito abaixo:
“[...] eu acho que precisamos de mais treinamento e mais capacitações pra ir crescendo e melhorando para começar a ver o paciente de fato como um todo” (P10).
“[...] eu acho que deveríamos ter eventos e cursos que abrangesse toda a equipe desde a parte da administração que não podemos falar só da parte assistencial, eu acho que gente precisa conscientizar a nossa parte de administrativa também” (P7).
Para o desenvolvimento das ações de saúde, faz-se necessárias constantes capacitações, atualizações e aprimoramentos, como propõe a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, de modo despertar a abordagem interdisciplinar (Silva et al., 2017).
Através das falas verifica-se a necessidade de suscitar um processo de educação permanente, de modo promover e privilegiar a corporificação da integralidade no contexto da Reabilitação Física (Dormites et al., 2015).
A incorporação de um Programa de Educação Permanente apresenta-se como uma ferramenta que se incorpora ao cotidiano das instituições e do trabalho sendo potente por ter seu alicerce na aprendizagem significativa buscando transformar práticas profissionais e contribuir para aprimorar a comunicação entre profissionais e serviços favorecendo o desenvolvimento do trabalho da equipe multiprofissional.
Em virtude de uma formação deficitária no que tange a integralidade no contexto Reabilitação Física e assistência à saúde da pessoa com deficiência a equipe multiprofissional ressalta a necessidade de treinamentos, onde o Programa de Educação Permanente torna-se uma alternativa para transformar práticas favorecendo a integralidade.
A transformação das práticas em saúde está intimamente relacionada a mudanças de paradigmas na formação profissional promovendo a interação entre teoria e prática, que resultará na assistência em saúde seguindo os preceitos da integralidade ocorrendo a valorização dos sujeitos
5 Conclusões
O posicionamento do indivíduo e seu contexto no cerne das ações de saúde, em substituição a incapacidade, expressa também o princípio da integralidade, onde a atenção a saúde deve superar o olhar fragmentado sobre o indivíduo com deficiência a partir da Reabilitação Física, para tanto faz-se imperativo que os cursos de graduação estejam em concordância com diretrizes curriculares nacionais e assim possam formar profissionais capazes de desenvolver a integralidade.
A Hermenêutica-dialética proporcionou compreender influência da formação profissional no desenvolvimento da integralidade no contexto da Reabilitação Física com enfoque crítico, verificando-se a necessidade da mudança do paradigma cultural colocando a integralidade em posição de destaque, que só ocorrerá com alterações nos rumos estabelecidos dos cursos de graduação, onde a abordagem integral deve superar o reducionismo ao biológico.
O presente estudo limitou-se a compreender a influência da formação profissional no desenvolvimento da integralidade no cenário da Reabilitação Física, contudo observa- se a necessidade de pesquisas futuras para verificar possíveis ações com o propósito da integralidade estar contextualizada nos cursos de graduação na área da saúde.