1. Introdução
Os erros de medicação são entendidos como um incidente evitável, decorrentes de má utilização do medicamento que podem levar a situações com impacto muito elevado nas pessoas e sistemas de saúde. Os erros de medicação estão associados a um custo anual, a nível mundial, de cerca de 42 biliões de dólares. Nos cuidados de saúde primários e em ambulatório, 4 em cada 10 doentes são prejudicados por algum evento e nos hospitais de países com economias de baixo ou médio rendimento, ocorrem 134 milhões de eventos adversos contribuindo para 2,6 milhões de mortes anuais (WHO, 2019). Na Europa os dados indicam que 8 a 12% dos doentes internados num hospital apresentaram eventos adversos, como erros de medicação. Dada a relevância foi definido como terceiro Desafio Global de Segurança do Doente a Medicação sem danos (WHO, 2017).
A segurança do doente, nas recomendações do Conselho da União Europeia integra quatro áreas de ação: políticas e programas; capacitação de doentes; notificação de eventos adversos e aprendizagem com os erros e educação e treino dos profissionais de saúde (WHO, 2017).
A World Health Organization (2019), define que para garantir melhorias sustentáveis e significativas ao nível da segurança do doente são necessárias: políticas claras, capacidade de liderança organizacional, profissionais de saúde qualificados, envolvimento efetivo dos doentes nos seus cuidados e dados que permitam promover melhorias na segurança.
Eventos adversos relacionados com o uso de medicamentos estão associados a sistemas de medicação fracos e ou fatores humanos como, fadiga, más condições ambientais ou falta de pessoal. (Alteren, Hermstad, White, & Jordan, 2018; Harkanen, Blignaut, & Vehvilainen-Julkunen, 2018b; Kim & Kim, 2019; WHO, 2017).
Erros de medicação acontecem em várias etapas do ciclo de medicação, envolvendo diferentes profissionais. Os enfermeiros, responsáveis pela preparação e administração da medicação, têm um papel determinante em todo o processo, pelo que é necessário fundamental uma abordagem colaborativa evidenciando o seu o papel (Kavanagh, 2017).
O ambiente de prática de enfermagem (APE) é o fator mais influente e com maior impacto sobre os resultados de enfermagem e nas perceções da qualidade dos cuidados e da segurança do doente (Lucas & Nunes, 2020). Melhorando este ambiente, tornando- o favorável, levará à melhoria dos resultados dos doentes e a um fator essencial para o aumento da satisfação dos enfermeiros (Leone et al., 2015, Shirey, 2006), fundamental para a manutenção de equipas com dotações seguras e nelas reter os enfermeiros (Lake, 2002).
Desenvolver APE favoráveis nos serviços de saúde é a melhor estratégia para garantir a segurança dos doentes (Almeida et al., 2020) e a qualidade dos cuidados de enfermagem (Aiken et al., 2012; Lucas & Nunes, 2020; Wei et al., 2018; Wondmieneh, Alemu, Tadele, & Demis, 2020; Zaghini et al., 2019).
A evidência científica aponta para uma lacuna em intervenções relacionadas com a educação dos enfermeiros no uso seguro da medicação (Morrudo et al., 2019; Millichamp & Johnston, 2020; Wilson, Palmer, Levett-Jones, Giligan, & Outram, 2016), identificando como barreiras aos relatos de erros na administração de medicação a cultura da organização, o sistema de notificação e comportamento da gestão. Destaca- se a necessidade de uma cultura de aprendizagem não punitiva e gestão de suporte para qualificar os enfermeiros para a gestão de erros (Vrbnjak et al., 2016).
O objetivo desta Revisão Integrativa da Literatura (RIL) é analisar a evidência científica acerca da ocorrência de erros na administração da medicação.
2. Material e Métodos
Esta RIL integra as seguintes etapas: identificação da pergunta de pesquisa; definição das palavras-chave para pesquisa na literatura; definição das informações a serem extraídas dos estudos selecionados/categorização dos estudos; avaliação dos estudos incluídos na revisão integrativa; interpretação dos resultados; apresentação da revisão/síntese do conhecimento (Mendes, Silveira, & Galvão, 2008; Whittemore & Knafl, 2005). A questão orientadora: Como se carateriza a ocorrência de erros na administração da medicação?
A pesquisa foi realizada nas bases de dados Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL) Complete, Cochrane Database of Systematic Reviews, Medical Literature Analysis and Retrievel System Online (MEDLINE) Complete e MedicLatina. Foi ainda consultada a base de dados CUIDEN.Foi igualmente explorada a literatura decorrente das citações dos artigos primários a partir das referências bibliográficas. A pesquisa foi realizada em julho de 2020, com os termos identificados nos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e no Medical Subjet Heading (Mesh): patient safety; medication errors; nurses. O operador booleano usado foi AND. Foram aplicados como limitadores: artigos disponíveis em texto integral; data publicação: 2015-01-01/2020-12-31 e Europa.
Na inclusão dos estudos foi considerado: foco na ocorrência de erros relacionados com administração de medicação, com a intervenção de enfermeiros; disponíveis em texto integral e publicados em Inglês, Português ou Espanhol, na Europa, nos últimos cinco anos. Excluíram-se resumos de eventos científicos, estudos em que a metodologia não estava claramente definida. Foram identificados 82 artigos. Foram excluídos por leitura de título e duplicação em bases de dados, um total de 34 artigos. Dos 47 artigos restantes, foram excluídos 28 após leitura de resumo. Dos 19 remanescentes: 1 foi excluído sem texto integral; 11 por não responderem à questão ou aos critérios de inclusão. Nesta fase foram incluídos a partir de referências bibliográficas 2 artigos que responderam à pergunta de revisão. Na Figura 1 apresenta-se o processo de seleção Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) de acordo com Moher, Liberati, Tetzlaff, Atman, & The PRISMA Group (2009).
Para a inclusão dos 9 estudos procedeu-se à avaliação da qualidade metodológica dos artigos. Foram considerados os 7 níveis de evidência, agrupados segundo Melnyk & Fineout-Overholt (2011), evidências fortes, moderadas e fracas. Foram respeitados os aspetos éticos da pesquisa no que concerne a autoria das ideias, assim como os conceitos e definições presentes nos estudos incluídos na RI.
3. Resultados
Os 9 artigos forma analisados, quanto ao ano de publicação, um em 2015; um em 2016; um em 2017; quatro em 2018 e dois em 2019. Todos foram publicados em revistas científicas e com pelo menos um autor do departamento de enfermagem, à exceção do estudo sueco em que o primeiro autor pertencia ao departamento de neurobiologia. Os estudos foram desenvolvidos, cinco (56%) no Norte da Europa (Finlândia (2), Noruega (1), Suécia (1), e Reino Unido (1); 11% da Europa Central: República Checa (1) e três (33%) no sudoeste da Europa: Itália (1), Turquia (1) e Sérvia (1). Oito (89%) dos estudos apresentam um nível de evidência fraca (estudos descritivos e qualitativos) e um (11%) moderada (estudo quase-experimental). Quanto à população alvo dos estudos, em seis (67%) as amostras eram constituídas por enfermeiros, um (11%) incluíam enfermeiros, farmacêuticos e médicos e em dois (22%) estudos, as amostras eram doentes. Os estudos foram realizados em contexto hospitalar.
Os artigos analisados (síntese no Quadro 1) mencionam que a ocorrência de erros no processo de administração de medicação está relacionada com fatores como: interrupções durante administração de medicação (Alteren et al., 2018; Bower, Jackson, & Manning, 2015; Mazzitelli, et al., 2018; Plutínská & Plevová, 2019), recursos humanos insuficientes (Alteren et al., 2018; Harkanen et al.,2018a; Svitlica, Simin, & Milutinovic, 2017), fatores individuais como cansaço, falta de habilidades ou negligência (Björkstèn et al., 2016; Härkänen, Tianen, & Haatainen, 2018b); fatores relacionados com o sistema (Björkstèn et al., 2016; Edeer et al., 2019; Harkanen et al., 2018a; Plutínská & Plevová, 2019), ambientes da prática de enfermagem (Alteren et al., 2018; Björkstèn et al., 2016; Harkanen et al., 2018a).
4. Discusão
Os estudos de ocorrência de erros na administração de medicação, ao nível Europeu, são maioritariamente estudos descritivos e qualitativos de evidência fraca (Melnyk Fineout-Overholt, 2011), indicando a necessidade de realização de investigação clínica de forte evidência.
Os fatores relacionados com a ocorrência de erros forma classificados em: fatores do sistema de medicação, fatores do APE e organização e fatores humanos.
4.1 Fatores do Sistema de Medicação
Identifica a ocorrência de erros associados a registos incompletos ou imprecisos, omissão de medicamentos nas histórias clínicas dos doentes; necessidade de formação no manuseamento de produtos genéricos e Look-alike sound-alike (LASA), identificação incorreta de doentes e ausência de notificação de erros de medicação (Björkstèn et al., 2016; Edeer et al., 2019; Harkanen et al., 2018a; Harkanen et al., 2018b). O estudo de Plutínská & Plevová, (2019), indica que registos eletrónicos de saúde, sistemas de apoio à tomada de decisão e criação de listas de verificação de medicação apresentam redução no erro.
4.2 Fatores do APE e Organização
Fatores relacionados com o ambiente da prática de enfermagem, são os mais mencionados. Sete (64%) estudos referem-se a interrupções (Alteren et al., 2018; Bower et al., 2015; Mazzitelli et al., 2018; Plutínská & Plevová, 2019), a recursos humanos insuficientes (Alteren et al., 2018; Harkanen et al., 2018a; Svitlica et al., 2017), a ritmos de trabalho rápidos e cargas de trabalho pesadas (Härkänen et al., 2018b).
Para o uso seguro de medicação, a necessidade e relevância atribuída a programas de educação contínua dirigida a enfermeiros, é apontada em 73% dos estudos analisados (Björkstèn et al., 2016; Bower et al., 2015; Harkanen et al., 2018a; Härkänen et al., 2018b; Mazzitelli, et al., 2018; Plutínská & Plevová, 2019; Svitlica et al., 2017).
Nos estudos analisados é determinante o papel da gestão para promover recursos humanos, ritmos, cargas de trabalho adequados (Alteren et al., 2018; Harkanen et al., 2018a; Härkänen et al., 2018b; Svitlica et al., 2017); assegurar a existência de rotinas e sistemas de segurança no uso de medicamentos (Björkstèn, et al., 2016; Edeer et al., 2019; Plutínská & Plevová, 2019); promover uma cultura de aprendizagem não punitiva (Svitlica et al., 2017) e implementar programas de educação sobre o uso seguro da medicação (Björkstèn et al., 2016; Bower et al., 2015; Harkanen et al., 2018a; Härkänen et al., 2018b; Mazzitelli, et al., 2018; Plutínská & Plevová, 2019; Svitlica et al., 2017).
4.3 Fatores Humanos
Os fatores humanos surgem associado a fatores do sistema que podem resultar em erros por negligência (Björkstèn et al., 2016). As barreiras pessoais e profissionais como medo, responsabilidade e caracteristicas dos enfermeiros que levam à omissão dos erros. Härkänen et al., (2018b) menciona o cansaço e a falta de habilidades como fatores que levaram a incidentes de administração de medicação a doentes errados.
A análise realizada permitiu identificar a natureza multidimensional da ocorrência de erros na administração de medicação, indo de encontro à evidência científica disponível existente. Revela-se fulcral compreender e investigar este fenómeno para implementar medidas que o tornem seguro, contribuindo para a melhoria contínua dos cuidados e segurança dos doentes.
4.4 Limitações da RIL
Utilização de limitadores na pesquisa: textos completos e estudo Europa pode ter levado à omissão de trabalhos relevantes. O fato da maioria dos estudos apresentarem evidência fraca também se constitui como uma limitação.
4.5 Implicações para a Prática
Para evitar a ocorrência de erros de medicação, contribuindo para a segurança do doente é determinante que as organizações adotem uma cultura de aprendizagem não punitiva. É importante que entre a gestão e os enfermeiros se desenvolvam políticas de comunicação abertas e de suporte. A gestão deve assegurar dotações seguras de enfermagem nos serviços e promover educação contínua no âmbito do uso seguro da medicação, como estratégias para garantir a administração segura de medicação. Observa-se escassez de pesquisa de evidência forte, acerca da ocorrência de erros na medicação, na Europa. Esta revisão permitiu identificar a complexidade subjacente a eventos adversos relacionados com o uso de medicação, desempenhando um importante papel no que concerne ao desenvolvimento de práticas baseadas na evidência. Seria importante desenvolver pesquisa no âmbito de intervenções, como programas educativos e implementação de sistemas de medicação que permitam perceber os resultados na segurança dos doentes.
5. Conclusões
Esta RIL permitiu sintetizar evidência relacionada com a ocorrência de erros na administração de medicação. A maioria dos estudos são qualitativos ou descritivos e maioritariamente dirigidos a enfermeiros em contexto hospitalar. O estudo da ocorrência de erros na administração de medicação, a partir da metodologia qualitativa com recurso a diversas fontes de dados permitiu uma compreensão sistematizada mais abrangente e holística do problema. Subjacente à ocorrência de erros identificaram-se os seguintes fatores: fatores do sistema de medicação, fatores organizacionais e fatores individuais.
Para reduzir a ocorrência de erros na administração de medicação, por parte dos enfermeiros é fulcral investir em programas de educação contínua sobre o uso seguro da medicação e adotar uma cultura organizacional não punitiva. A gestão assume um papel primordial competindo-lhe garantir: existência de recursos humanos adequados para evitar cargas de trabalho excessivas e ritmos de trabalho acelerados; promover ambientes de prática de enfermagem favoráveis sem interrupções e implementar sistemas de segurança no uso da medicação.