1. Introdução
A organização do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil ocorre atualmente, por meio da Rede Atenção à Saúde (RAS). Assim essa organização está pautada na integralidade e na produção do cuidado em rede. Cecílio et al. (2012) propõem que a produção do cuidado em redes, seja ordenado pelas diretrizes das RAS, construídas por meio de relações horizontais, nas quais se estabelece a unidade básica de saúde como porta de entrada a um sistema que atenda às necessidades em saúde da população adscrita do território, contemplando os princípios da integralidade e com atenção contínua. Nestes cenários, as equipes multiprofissionais são responsáveis pela produção do cuidado em saúde e em compartilhar os objetivos e resultados conjecturados.
O caráter rizomático no trabalho em rede respeita a singularidade do sujeito, com múltiplas conexões para realizar o trabalho vivo. Essas representações irão definir os diferentes olhares entre os profissionais e as suas atuações em cenários variados. Assim, a autogestão, por meio da autoanálise, também permite a conexão entre os trabalhadores de saúde, produz o trabalho vivo em ato e dispara as “linhas de cuidado” em diferentes direções. Valoriza o próprio conhecimento, sua iniciativa e criatividade, retornando aos coletivos-equipe uma capacidade que lhes é retirada pela normatização do mundo do trabalho É operacionalizada sobre altos graus de liberdade e promove o autocontrole da rede em articulação (Franco, 2013).
A fim de contemplar a singularidade do sujeito e nortear a trajetória da gestante, a Rede Cegonha (RC) criada em junho de 2011 no Brasil, apresenta a proposta de conexão entre os fluxos, promoção da integração das ações e serviços de saúde para possibilitar uma atenção eficiente e de qualidade em todos os pontos de atenção, com foco na satisfação dos usuários, e a melhoria dos indicadores de morbimortalidade materno infantil (Assis et al., 2019).
A rede estruturada e articulada permite uma produção de cuidados em saúde centrados nas necessidades das pessoas. O epicentro é a articulação dos fluxos e circuitos a partir da singularidade do sujeito, com múltiplas integralidades processuais, institucionais e intencionais. Uma maior possibilidade de máxima integralidade no micro desperta a reflexão da organização do macro (Cecilio, 2001).
Faz-se necessário assegurar um modelo de Atenção à Saúde que garanta a continuidade de cuidados materno-infantis para a população adscrita com responsabilização pelos resultados alcançados (Assis et al., 2019).
Um dos componentes temáticos da RAS é a RC que está estruturada a partir de quatro componentes: pré-natal, parto e nascimento, puerpério e atenção integral à saúde da criança e sistema logístico que se refere ao transporte sanitário e regulação. Garante um atendimento seguro, de qualidade e humanizado para todas as gestantes e recém-nascidos (Brasil, 2011).
Muitos desafios são sentidos no cotidiano das ações das equipes e no atendimento às necessidades dos usuários, por não praticar o trabalho em rede, por desconhecimento, falta de qualificação ou por não vivenciar esta cultura. Fragilidades da gestão em articular os grupos condutores, financiamento insuficiente ou falta de repasse financeiro para atender as necessidades demandadas, características hegemônicas do modelo de saúde vigente, demora na estruturação dos planos regionais são apresentados como entraves para a efetiva implementação das redes (Cecilio, 2001).
Há a necessidade de fortalecer a Atenção Primária à Saúde (APS) por meio do acolhimento, consultas humanizadas, interprofissionais e menos tecnicistas, ou seja, na perspectiva da integralidade no cuidado. Faz-se necessário a qualificação dos profissionais na produção do cuidado em rede (Brasil, 2007).
A integralidade está articulada às necessidades do sujeito com ações voltadas à promoção, prevenção, tratamento e reabilitação. Apresenta uma proposta de reorganização dos serviços junto com a universalidade, e com a equidade.
Busca envolver e amalgamar os saberes de profissionais, de usuários e da comunidade, na construção de um cuidado em saúde efetivo, com qualidade técnica da assistência recebida e com o exercício da cidadania, por meio da gestão participativa (Assis et al., 2019).
A partir de pactuações realizadas em nível regional, em 2012, elaborou-se documento com a proposta para a implantação da RC e o Plano de Ação contemplando as diretrizes do Ministério da Saúde (MS), com novo modelo organizacional que possibilite enfrentamentos e implementações na área materno infantil (Costa et al., 2016).
Mesmo diante de tal direcionamento, percebe-se o desenvolvimento de um cuidado fragmentado e desarticulado, desconsiderando as singularidades das gestantes, em um município do interior paulista. Diante deste cenário as perguntas da presente investigação são: Qual é a percepção das equipes de saúde da APS em relação à RAS e RC, considerando o período gestacional? Como essas equipes operacionalizam as ações preconizadas pelas redes? Como a atenção à saúde no período gestacional é desenvolvida na perspectiva das gestantes?
Espera-se iluminar os aspectos que requerem atenção e que os resultados da pesquisa contribuam para a construção de um produto técnico, aplicativo que poderá ser instalado em celular Android ou IOS que auxiliará gestantes, profissionais e gestores na superação dos desafios para a implementação da RC nos municípios.
Objetiva-se, portanto, analisar a percepção dos profissionais da Atenção Primária a Saúde e das gestantes sobre as ações da Rede Cegonha, para caracterizar a produção de cuidados de saúde, os fluxos estabelecidos e os desafios apresentados, bem como elaborar estratégias de superação.
2. Metodologia
Esse artigo integra uma dissertação de mestrado profissional, que está articulada a outras duas, integrando o Programa de Mestrado Profissional “Ensino em Saúde”, as quais analisaram a operacionalização da RAS e da RC a partir da percepção do gestor municipal, dos profissionais e gestantes pertencentes à DRS do centro-oeste do Estado de São Paulo, Brasil.
Pesquisa exploratório-descritiva, com abordagem qualitativa baseada em Minayo (2013), realizada nas Unidades de Saúde que compõe a Rede de APS em um município de médio porte no interior do Estado de São Paulo, com uma população estimada no ano de 2017 de 235.234 habitantes (IBGE, 2010). No momento da coleta de dados, a APS era constituída de 38 equipes de Saúde da Família (eSF) e 12 Unidades Básicas de Saúde (UBS).
Utilizou-se como critério de inclusão, uma eSF e uma equipe de UBS com maior número de gestantes cadastradas e maior número de encaminhamentos ao hospital de alta complexidade e uma eSF e uma equipe de UBS com menor número de gestantes cadastradas e maior número de encaminhamentos ao hospital de alta complexidade.
Trabalhou-se com a amostra por conveniência que propõe um subgrupo da população em que a escolha dos elementos deve refletir as diferentes dimensões do objeto de estudo. Os profissionais foram incluídos considerando como critério na UBS: realizar atendimentos com as gestantes; na eSF: definiu-se a representatividade proporcional das categorias profissionais. Participaram da pesquisa 34 profissionais sendo, quatro enfermeiros, três fisioterapeutas, quatro médicos, sendo dois ginecologistas e obstetras, um nutricionista, dois auxiliares de saúde bucal, dois auxiliares de enfermagem, três técnicos de enfermagem, um auxiliar de escrita, nove agentes comunitários de saúde, três agentes de controle de endemias e dois auxiliares de limpeza.
Participaram 33 gestantes, selecionadas de forma aleatória, considerando a combinação entre os critérios de idade gestacional e classificação obstétrica nas quatro unidades pesquisadas.
Em três unidades de saúde foram convidadas a compor o estudo enquanto aguardavam a consulta de pré-natal. Em uma eSF foram realizadas visitas domiciliarias para a coleta de dados, devido ao número reduzido de gestantes cadastradas e a impossibilidade de aplicar o instrumento em horário comercial.
A coleta de dados compreendeu o período de julho a outubro de 2019, sendo realizada por uma única pesquisadora, iniciando com as gestantes. Utilizou-se a entrevista semiestruturada, individualizada, a qual constou de questões norteadoras, tendo como referência as ações a serem realizadas na RC durante a gestação.
Com os profissionais realizou-se um encontro com cada equipe selecionada, aplicando a técnica de grupo focal, utilizando-se um roteiro que contemplava questões norteadoras sobre a compreensão da RAS e RC e como essas são operacionalizadas no município.
Para a análise dos dados das entrevistas e dos grupos focais utilizou-se a técnica de análise de conteúdo, modalidade temática, onde o conceito central é o tema (Minayo, 2013). Na pré-análise, organizou-se o conteúdo das entrevistas e dos grupos focais para a leitura flutuante e exaustiva. Nesse processo definiu-se as categorias de análise das entrevistas - a organização do processo de trabalho para atendimento as gestantes para o cuidado no pré-natal; e dos grupos focais - compreensão e a operacionalização da RAS e RC.
A segunda fase constituiu-se da exploração dos materiais coletados, selecionando os fragmentos das falas de acordo com as categorias estabelecidas. Em seguida, elaborou-se síntese de cada categoria, a qual permitiu identificar os núcleos de sentido e agrupá-los em temas (quadro 1). A codificação dos dados foi realizada por uma pesquisadora e validada por duas outras com título de doutor.
Na terceira fase realizou-se a apresentação, discussão e interpretação dos dados coletados. Nessa fase trabalhou-se com os referenciais de integralidade no cuidado e de cogestão em saúde.
Essa investigação obteve a aprovação no dia 04 de dezembro de 2018, com o registro CAAE: 02874218600005413 e parecer nº 3.123.730 pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
As unidades receberam nomes fictícios: eSF Diamante, eSF Safira, UBS Rubi e UBS Esmeralda. Os dados das entrevistas foram apresentados pela letra G (gestantes) e o número da entrevista, seguido da identificação dos serviços de saúde, ESF ou UBS, por exemplo, G1 a G14, G30-G33- ESF, de G15- a G30- UBS.
3. Resultados
A seguir serão apresentados os fragmentos das falas das gestantes e profissionais de saúde agrupados a partir dos núcleos de sentido e temas.
4. Discussão
4.1 A Organização e Atuação dos Profissionais de Saúde na Rede Cegonha: Percepção das Gestantes
As diretrizes estabelecidas por meio da RC determinam que o início do pré-natal no Brasil ocorra antes da 12ª semana de gestação, garantindo atendimento multiprofissional, acesso a exames clínicos obstétricos, ações de educação em saúde, imunização. A APS é responsável em coordenar e executar estas ações, atuando no binômio mãe-filho na perspectiva da integralidade (Brasil, 2011).
Contemplar a integralidade no período gestacional proporciona maior liberdade para que a gestante expresse suas preocupações, garantindo maior resolubilidade para as necessidades e fortalecimento do vínculo com as equipes das unidades de saúde (Franco, 2013).
No cenário pesquisado compreende-se que a gestante tem acesso aos serviços e cadastra-se para iniciar o cuidado. Esse cuidado fica reduzido à realização de consultas médicas e com a enfermeira, especificamente na eSF. O processo de trabalho nas UBS mantém-se focado no médico e as ações da equipe de enfermagem e de outros profissionais são restritas. Constata-se atividades sucintas ligadas a RAS e a RC. Os profissionais têm dificuldade em compreender os fluxos e organização em rede.
A investigação apontou a necessidade de implementar estratégias de reorientação do modelo de assistência ao pré-natal por meio de redes integradas e unificadas, com serviços qualificados em espaços físicos que disponibilizem equipamentos adequados.
O MS assegura que o enfermeiro pode realizar consultas de pré-natal intercaladas com o médico. O profissional de enfermagem precisa produzir cuidado humanizado, tendo disponibilidade em realizar escuta qualificada, permitindo que a gestante compreenda e compartilhe os sentimentos vivenciados neste período (Brasil, 2010). Contemplar a integralidade no cuidado no período gestacional proporciona maior liberdade para que a gestante expresse suas preocupações, garantindo maior resolubilidade para as necessidades e fortalecimento do vínculo com as equipes das unidades de saúde (Franco, 2013).
Na UBS perdura o modelo de cuidado centrado no médico e na eSF o cuidado às gestantes é desenvolvido por esse profissional e os enfermeiros. No entanto, não surge na fala das gestantes a atuação de outros profissionais como Agente Comunitário de Saúde (ACS) e técnicos/auxiliares de enfermagem no contexto do seu acompanhamento.
Com a criação e implantação do SUS várias mudanças no modelo de atenção à saúde foram propostas, tendo destaque as dimensões política e gerencial. Contudo, em muitos cenários locais não se estabeleceu uma mudança na APS, mesmo tendo muitas experiências das décadas anteriores. Muitos determinantes influenciaram e influenciam na formulação e implementação das políticas. Vigorava a medicina previdenciária, restrita e fragmentada à saúde, dicotômica entre assistência e prevenção baseada na concepção biomédica e hospitalocêntrico na produção do cuidado. Para superação dessa forma de organização foi proposta a Estratégia Saúde da Família (ESF) e um novo ordenamento e articulação em rede dos serviços (Giovanella et al., 2020).
A atual política do MS tem desconstruído muitas das diretrizes desse modelo de cuidado, desde a forma de financiamento, agora baseado no cálculo pelo número de pessoas cadastradas as equipes, a prática em equipe poderá ter perdas em função da opção de inclusão ou não do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) junto à equipe de referência e o enfoque primordial ao cuidado individual em detrimento ao cuidado coletivo (Cecilio et al., 2012).
Quanto aos fluxos em rede, estabelecidos na RC, capta-se que não estão organizados de forma a atender as necessidades das gestantes ao acesso dos serviços de Urgência e Emergência e ao Hospital Terciário.
O atendimento de Urgência e Emergência do município ocorre, aos finais de semana e após o término do expediente das unidades de saúde da APS, quando requisitado, por meio do Serviço de Atendimento de Urgência (SAMU), o qual efetua a regulação dos atendimentos e encaminha as gestantes, referenciando primeiramente às unidades de Pronto Atendimento e após a avaliação deste serviço, a gestante poderá ser direcionada ao Hospital Terciário (Costa et al., 2016). Porém, a gestante busca os serviços considerando suas necessidades, mas as pactuações não estão funcionando a contento, não encontrando acolhimento e resolubilidade dos problemas, ou seja, a garantia de acesso aos serviços em rede está comprometida.
A finalidade do cuidado ao pré-natal de risco é intervir em uma gestação que possa ter resultados desfavoráveis, de modo a diminuir os riscos da mãe e do feto e reduzir possíveis consequências adversas. É fundamental que estados e municípios organizem suas RAS, especialmente a RC, de modo que contemple todos os níveis de complexidade e defina os seus pontos de atenção e responsabilidades atribuídas, para que ocorra a redução da morbimortalidade materna e perinatal mediante ao acesso e atendimento de qualidade e em tempo oportuno (Giovanella et al., 2020). A RC tem como objetivo assegurar a melhoria do acesso, da cobertura e da qualidade do acompanhamento pré-natal, da assistência ao parto e puerpério e da assistência à criança, com a finalidade de reduzir a mortalidade materno-infantil (Assis et al.,2019). Embora esses objetivos estejam regulamentados, no cotidiano dos serviços vive-se um distanciamento frente ao proposto, uma vez que os problemas estão determinados pelo modelo de gestão do cuidado, com sérios desdobramentos relacionados ao financiamento das políticas públicas e da própria proposta de organização do cuidado.
4.2 Aproximações dos Profissionais sobre a Compreensão e a Operacionalização da Rede de Atenção e Rede Cegonha
O estado da arte da saúde materna evidenciado no Brasil é de uma agenda proposta com ações inacabadas por meio dos programas de Pacto pela Redução da Mortalidade Materna e do Recém-Nascido (2004) e a da Rede de Cegonhas (2011) que se depara com desafios relacionados à qualidade nos cuidados pré-natal, parto e pós-natal; sistema limitado e desarticulado na produção do cuidado em saúde (De La Torre et al., 2018).
Por outro lado, a formação inicial e contínua dos profissionais não tem contribuído para que a prática do cuidado em rede seja operacionalizada. No Plano Municipal da Rede Cegonha do local pesquisado, há proposta de formação dos profissionais para atuarem junto as gestantes, tendo como enfoque o cuidado clínico para melhorar a classificação de risco das gestantes, realizar “socialização de conhecimento às equipes quanto as intercorrências clínicas mais frequentes na gestação através de atualização e/ou discussão caso a caso” (Merhy et al., 2014). Porém, não há menção a mudança do modelo de atenção centrado na prática interdisciplinar, com cuidado humanizado, com articulação mais explícita em rede entre os serviços.
Dessa forma, verifica-se que a formação dos profissionais também precisa ser redesenhada nos planos municipais por meio de parcerias com as instituições de ensino, de forma que tanto na formação na graduação como na pós-graduação, em especial nos programas de residência médica e multiprofissional, se propostas que sustentem a prática do cuidado em rede.
Para que ocorra a mudança do modelo tecnocrático de atendimento faz-se necessário a disseminação nacional de informações que estejam disponíveis e o acesso ao conhecimento sobre as políticas públicas e novas diretrizes que norteiam a produção do cuidado em saúde. Treinamentos e capacitações dos profissionais que atuam na assistência são ferramentas para qualificar a práxis de maneira ética e humanizada (Diniz et al., 2018).
5. Conclusões
Para que a implementação do trabalho em rede ocorra, os gestores necessitam construir estratégias a partir das necessidades de cada município, compor negociação com os diversos serviços que integram a rede temática e as linhas de cuidado e traçar um plano que atenda às necessidades e possibilidades de mudanças de acordo com os cenários encontrados, além de um plano de acompanhamento das ações implementadas.
Há indicativos, também, de que se necessita retomar a formação dos profissionais quanto à RC, seus princípios, as políticas que embasam a proposta e como organizar o trabalho em saúde, refletindo sobre os desafios a serem enfrentados e, ao compreendê-los, poderem propor novas práticas.
Embora ocorra uma necessidade de mudanças na organização do cuidado em rede na perspectiva da integralidade no cuidado, o risco de recrudescimento das propostas voltadas às ações de cunho reducionista é real, haja vista as tendências das políticas públicas do atual governo federal.