1. Introdução
A relevância atribuída à cultura de segurança do paciente (CSP) e ao seu efeito nos resultados teve um importante impulso com o relatório do Institute of Medicine (IOM) “To Err is Human”, em 1999 (DiCuccio, 2015). Porém, a enfermagem sempre teve um papel histórico na promoção da segurança do paciente (SP) (Kowalski & Anthony, 2017).
Quando falamos de estruturas residenciais para pessoas idosas (ERPI), encontramos uma grande diversidade, não só na dimensão e na organização das estruturas, mas também o próprio perfil dos seus residentes. A complexidade dos estados de saúde e funcional das pessoas idosas institucionalizadas, quando associada aos défices estruturais e sistémicos dos lares de idosos, dita a inevitabilidade de um maior investimento numa área com uma imensa margem de melhoria.
Nessa perspetiva, e considerando-a como ponto de partida, a presente revisão integrativa da literatura tem como objetivo analisar a evidência científica sobre a CSP nas ERPI.
Ao longo da sua história, os enfermeiros, num rápido e informado reconhecimento da realidade, apontam caminhos para a qualidade e segurança dos cuidados, enquanto objetivo primário da profissão. Esta intervenção contínua revela-se em cada campo de trabalho na definição de protocolos, na salvaguarda de dotações seguras e níveis de educação / formação adequados (Kowalski & Anthony, 2017).
Pode-se afirmar que a enfermagem está na vanguarda na defesa da qualidade e da segurança dos cuidados, tanto na evidência produzida como na assunção desse papel na linha da frente. No entanto, tais esforços não têm sido acompanhados por medidas concretas (Kowalski & Anthony, 2017; Hughes, 2018).
Os enfermeiros constituem-se como interlocutores privilegiados na comunicação com a sua equipa, facilitando os processos de melhoria da qualidade dos cuidados e da segurança dos clientes (Carvalho & Lucas, 2020). Os enfermeiros são os agentes da qualidade dos cuidados prestados e essa qualidade é significativamente influenciada pela forma como o enfermeiro gestor gere o serviço nas suas diferentes dimensões (Fradique & Mendes, 2013).
Importa assim conhecer a evolução científica em torno da SP, designadamente no que se refere às ERPI.
Bonner, Castle, Men & Handler (2009) defendiam que existia uma relação entre a CSP e os resultados clínicos. Além disso, equipas com uma CSP mais desenvolvida tendiam a relatar eventos adversos com mais frequência.
Por sua vez, Castle (2011), apresentando um estudo comparativo sobre a cultura de segurança (CS) entre os hospitais com as ERPI nos Estados Unidos da América (USA), concluiu que, em algumas dimensões, a CSP nas ERPI é mais favorável que a CSP nos hospitais, perspetivando uma oportunidade de aprendizagem na assistência à pessoa idosa e, consequentemente, a possibilidade de melhoria dos cuidados.
Os residentes em ERPI, pessoas com múltiplos problemas físicos e cognitivos, constituem uma população com elevado risco para eventos adversos tais como quedas, úlceras de pressão, infeções do trato urinário e erros de medicação (Damery, Flanagan, Rai, & Combes, 2017).
Em comparação com os hospitais, a CSP em ERPI encontra-se ainda numa fase inicial em muitos países. Além disso, os estudos sobre a SP em ERPI baseiam-se ainda em dimensões relativas à SP em hospitais, carecendo de muitas adaptações considerando as diferenças estruturais das organizações e o perfil dos respetivos utentes (Simmons et al., 2016).
Realça-se, no entanto, que já se verifica nas ERPI um novo enfoque de melhoria da SP centrado na melhoria das estruturas e dos processos, em vez de culpabilizar os colaboradores e as equipas (Li, Cen, Cai & Temkin-Greener, 2019).
O erro humano não é inevitável. Atualmente, exige-se um melhor sistema de saúde às lideranças organizacionais. Essas mudanças tornaram imperativas a compreensão da CS e os seus efeitos nos resultados do paciente (DiCuccio, 2015). Esforços na melhoria da CSP em lares de idosos resultam na melhoria da SP e na qualidade do atendimento aos pacientes (Li et al., 2019).
Avaliar a CSP nas organizações possibilita uma eficiente perceção dos aspetos importantes para a SP, permitindo aos gestores definir os esforços para a melhoria (Ree & Wiig, 2019).
2. Métodos
Esta revisão integrativa segue a metodologia de Whittemore e Knafl (2005) e teve como questão orientadora “Qual a evidência científica sobre a cultura de segurança nas estruturas residenciais para pessoas idosas?”. Posteriormente procedeu-se à delimitação do projeto de pesquisa, sendo identificados cinco descritores: Casa de saúde, Segurança do doente, Cuidadores, Gestão da segurança, Enfermagem.
Considerou-se a análise de artigos cujos estudos se referissem ao contexto de ERPI ou unidades de cuidados integrados. Os estudos a considerar poderiam visar a cultura de segurança como um todo ou apenas uma dimensão específica, como por exemplo, a sua influência nas infeções do trato urinário.
Foram definidos como critérios de inclusão a publicação dos artigos no intervalo temporal entre os anos 2015 e 2020 e o documento estar disponível em texto completo. Definiu-se também que seriam excluídos os estudos exclusivamente relacionados com o contexto hospitalar.
Nesta revisão optou-se por uma estratégia de pesquisa nas bases de dados eletrónicas CINAHL e MEDLINE, complementada com pesquisas através do Google Scholar e dos repositórios de dissertações. De seguida, foram examinados os títulos, e os resumos. Por fim, aquando da análise integral dos artigos selecionados, foi efetuada uma pesquisa pelas referências bibliográficas desses documentos.
3. Resultados
No conjunto das pesquisas efetuadas nas bases de dados CINHAL e MEDLINE, assim como através do Google Scholar e nos repositórios de dissertações, foram identificados 103 estudos. Foram removidos 41 artigos duplicados. Após análises dos títulos e dos resumos foram removidos 33 e 9 artigos respetivamente. Um conjunto de 20 artigos foi analisado na íntegra, sendo removidos ainda 10 artigos. Da análise integral dos artigos, a pesquisa das suas referências permitiu identificar 2 novos artigos selecionáveis. Obteve-se um conjunto final de 12 artigos para integrar a revisão integrativa da literatura, indicado no diagrama prisma, de acordo com Moher, Liberati, Tetzlaff & Altman (2009).
O quadro 1 apresenta uma síntese da análise dos 12 estudos selecionados.
4. Discussão
Com a inclusão de 12 estudos na presente pesquisa, entre os quais nove estudos primários e três revisões da literatura, foi possível perceber qual a atual evidência científica sobre a CSP nas ERPI, um pouco por todo o mundo.
Nos últimos anos houve um grande desenvolvimento de estudos acerca da CSP nas ERPI (Gartshore, Waring & Timmons, 2017). Impulsionados pelos EUA, outros países europeus e asiáticos têm desenvolvido estudos que permitem extrair uma razoável perspetiva no âmbito a CSP nas estruturas para pessoas idosas (Bondevik, Hofoss, Husebø & Deilkås, 2017; Santos, 2015; Park, Hong, Lim & Lee, 2015; He et al., 2020; Desmedt, Petrovic, Beuckelaere & Vandijck, 2018).
Apesar dos avanços referidos, as evidências relativas à CSP nas ERPI são ainda limitadas e incompletas. A baixa representatividade dos estudos estará relacionada com as diferenças nas tipologias e dimensões das estruturas entre cada país, mas também na grande variação dos problemas que essas estruturas revelam (Gartshore et al., 2017).
Um dos desafios para a segurança dos cuidados está relacionado com a qualificação dos colaboradores das ERPI. Grande parte dos prestadores de cuidados diretos não possui qualificações para tal (Gartshore et al., 2017). Estes factos remetem para a necessidade de desenvolver evidências mais robustas e profundas, tais como estudos qualitativos, que permitam dar a conhecer a realidade da cultura organizacional e sistémica (Gartshore et al., 2017). Outro aspeto que parece transversal na CSP nas ERPI é o facto dos colaboradores mais envolvidos nos cuidados e, naturalmente, mais próximos dos pacientes, revelarem classificações mais baixas do que os administradores (Banaszak-Holl et al., 2017; Santos, 2015).
Num estudo em ERPI da Noruega, colaboradores com categorias mais altas apresentam melhores pontuações em dimensões como “trabalho de equipa”, “clima de segurança” e “satisfação no trabalho” (Bondevik et al., 2017). Ao contrário, Banaszak-Holl et al. (2017), nos EUA, refere que os colaboradores mais antigos tendem a apresentar também classificações mais baixas que os mais novos.
Os administradores, com um papel fundamental nos processos de melhoria da qualidade, com avaliações habitualmente muito favoráveis quanto à CSP, deverão aproximar-se dos cuidados diretos de modo a identificarem as lacunas que afetam a segurança dos clientes (Banaszak-Holl et al., 2017; Santos, 2015).
No estudo norueguês, em que a maioria dos participantes eram enfermeiros ou auxiliares, Bondevik et al. (2017) encontraram avaliações muito favoráveis quanto à comunicação e colaboração entre os elementos das equipas dos cuidados diretos. Contudo, encontrou pontuações mais baixas na comunicação e colaboração com os médicos e com os administradores.
Qualquer intervenção para melhoria da segurança que ignore as caraterísticas dos colaboradores e o modo como os cuidados diretos e diários são prestados estará condenada ao fracasso (Simmons et al., 2016).
A prevenção e a adequada notificação de eventos adversos parecem estar intimamente ligadas à CSP nos lares de idosos. Num estudo na Coreia do Sul, Park et al. (2015) identificam uma correlação positiva entre a CSP e a atenção perante as quedas, assim como as intervenções para a sua prevenção. Ainda assim, a complexidade da população das ERPI parece justificar melhor os múltiplos fatores que contribuem para os eventos adversos ocorridos nos lares (Simmons et al., 2016).
Referindo que na China a incidência de eventos adversos nas ERPI é muito maior que nos hospitais, He et al. (2020) sublinham que os relatos de eventos adversos são fundamentais para a SP. Nas ERPI estudadas por He et al. (2020) a perceção geral da SP é francamente favorável. No entanto, verifica-se um nível moderado na perceção da CSP e nos relatos de eventos adversos. À semelhança de outros estudos, dimensões como o “trabalho de equipa” e “conformidade com os procedimentos” revelam pontuações baixas, verificando-se grande precaridade nos colaboradores, com cargas de trabalho elevadas, havendo mesmo a tentação de optar por atalhos ou ignorar procedimentos (He et al., 2020).
Simmons et al. (2016) sustentam que, devido a vários motivos, as ERPI revelam uma grande dificuldade em mitigar ou evitar os fatores causais de eventos adversos nos residentes. Assumindo que esta realidade é diferente da hospitalar, integrar as dificuldades com a complexidade inerente à população e com as caraterísticas da estrutura e dos seus colaboradores pode ajudar na definição de cuidados baseadas na evidência com objetivos mais realistas (Simmons et al., 2016). Também Buljac-Samardžic & Van Woerkom (2018) defendem que a maioria dos eventos adversos parece estar mais relacionado com as condições dos pacientes.
Num estudo para avaliar a relação entre a CSP e a taxa de eventos adversos em ERPI nos EUA, Abusalem et al. (2019) encontraram dados compatíveis com o estudo da Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ). A maioria dos 252 participantes, além de terem uma boa ou excelente apreciação geral da SP, recomendaria a sua estrutura a amigos. Verificou-se também que o aumento da disponibilidade de cuidados de enfermagem e o aumento da CSP resultam numa influência significativa na diminuição de úlceras de pressão, ITU e quedas nas ERPI (Abusalem et al., 2019).
He et al. (2020) recomendam a criação de um banco chinês de relatos de eventos adversos em ERPI que permita o acesso a dados confiáveis, que forneça evidências para reduzir barreiras à notificação de eventos adversos e que promova a CSP. Esta poderá ser uma iniciativa de grande interesse noutros países.
Dificuldades na comunicação ao nível da gestão e a atmosfera punitiva evidenciam-se como barreias relevantes e transversais à notificação de eventos adversos. Os enfermeiros gestores terão um papel importante na definição de um caminho mais expedito, seguro, transparente e menos punitivo na comunicação de eventos adversos, no qual a equipa possa partilhar os erros e aprender (He et al., 2020; Santos, 2015; AHRQ, 2019).
Numa avaliação da CSP em 6 ERPI do norte da Bélgica, Desmedt et al. (2018) confirmam a tendência de apreciações mais favoráveis por parte dos gestores, ao obterem pontuações significativamente mais elevadas que os enfermeiros na maioria das dimensões.
Ao estudar a CSP de enfermeiros em UCCI portuguesas, Santos (2015) verifica avaliações muito favoráveis nas dimensões “perceção geral da segurança do cliente”, no “feedback e comunicação sobre a existência de incidentes” e nas “expectativas dos superiores hierárquicos em relação à promoção da segurança do cliente”. A avaliação favorável revela-se também na pergunta se “considera a UCCI segura / recomendaria aos seus amigos?”.
Nas UCCI portuguesas, dimensões como “pessoal”, “conformidade com os procedimentos” e “formação e capacitação da equipa”, não revelando pontuações negativas, constituem claras oportunidades de melhoria. Já a dimensão “resposta não punitiva a erros” apresenta-se como prioridade emergente de melhoria (Santos, 2015), facto que potenciará a subnotificação de erros.
Num estudo de dois anos apresentado em 2019, com abordagem à generalidade dos funcionários de 191 ERPI, num total de 10499 colaboradores, a AHRQ encontra avaliações mais favoráveis para as dimensões “perceções gerais de segurança dos residentes”, “feedback e comunicação sobre incidentes” e “expectativas e ações do supervisor para promover a segurança dos residentes”. Por sua vez, verifica-se um potencial de melhoria nas dimensões “trabalho de equipa”, “abertura à comunicação” e “resposta não punitiva a erros” (AHRQ, 2019).
Desmedt et al., (2018) defendem que, ao contrário dos restantes estudos, os colaboradores das ERPI abrangidas apresentam uma avaliação favorável na dimensão “resposta não punitiva a erros”. Ainda assim, também aqui, a equipa de saúde considera que os processos na comunicação de erros são difíceis. Outras dimensões que apresentam pontuações significativamente favoráveis neste estudo são comparáveis aos restantes estudos apresentados, nomeadamente “feedback e comunicação sobre a existência de incidentes” e “perceção geral da segurança dos residentes” (Desmedt et al., 2018). Também os colaboradores das ERPI na Bélgica evidenciam uma pontuação baixa na dimensão “pessoal” (Desmedt et al., 2018).
O bem-estar insatisfatório, o esgotamento físico e níveis de burnout moderados a elevados apresentam uma correlação significativa com piores índices de SP. Importa criar ambientes de trabalho seguros e favoráveis à saúde mental dos colaboradores de modo a melhorar a segurança do paciente (Hall et al., 2016).
As baixas pontuações encontradas nos diferentes estudos no que se refere à dimensão “pessoal” podem ser causadas por diversos fatores. Num estudo nos Países Baixos, Buljac-Samardžic & Van Woerkom (2018) concluíram que a maioria dos colaboradores vê a sua carga de trabalho como problemática. Ainda assim, esse entendimento não parece interferir na perceção da qualidade dos cuidados e na segurança do paciente. Pelo efeito motivacional, o apoio da equipa na utilização de pontos fortes de cada elemento parece ser uma boa estratégia na relação entre as necessidades de trabalho e o desempenho (Buljac-Samardžic & Van Woerkom, 2018).
O desenvolvimento de competências dos colaboradores das ERPI, seja qual for a sua profissão e nível académico, deverá ser uma aposta das estruturas que interpretem a SP como um fator crítico de sucesso (Banaszak-Holl et al., 2017; Park et al., 2015; He et al., 2020; AHRQ, 2019). É também necessária a definição clara do papel dos diferentes elementos da equipa. Ao contrário dos hospitais, a esmagadora maioria dos cuidados são assegurados por auxiliares, que garantem o acompanhamento diário dos residentes por longos períodos de tempo (Simmons et al., 2016).
O grande pilar dessa CS é, certamente, o conjunto de colaboradores que, num ambiente de grande exigência física e emocional, precisa de motivação, sustentabilidade e formação adequada. Os enfermeiros gestores devem desenvolver intervenções de melhoria tanto nos recursos humanos como nos procedimentos de modo a incrementar a qualidade dos cuidados e a segurança do residente (He et al., 2020; Park et al., 2015, Abusalem et al., 2019; Santos, 2015).
Apesar dos avanços das últimas décadas, são necessários mais e diferentes estudos sobre todas as dimensões da CSP nas ERPI (Gartshore et al., 2017; Banaszak-Holl et al., 2017; Santos, 2015; Bondevik et al., 2017; AHRQ, 2019; Buljac-Samardžic et al., 2018).
5. Conclusões
Além da literatura americana, a evidência científica referente à CSP nas ERPI é ainda escassa, designadamente em Portugal. Contudo, foi possível analisar um conjunto de estudos que permite uma visão geral desta problemática.
A CSP nas ERPI apresenta inúmeras dimensões e pode ser influenciada por múltiplos fatores. A complexidade dos estados de saúde e funcional da pessoa idosa e os problemas estruturais das instituições parecem comprometer significativamente a segurança dos residentes.
Parece claro que a qualidade da assistência nas ERPI, não só a dos cuidados, como a de todos os serviços prestados nas ERPI é influenciada pelo comportamento da generalidade dos seus colaboradores, assumindo assim um caráter multiprofissional. Esta dimensão revela-se na abrangência da população estudada pela generalidade dos investigadores.
A natureza das dimensões com avaliações menos favoráveis, assim como as características dos colaboradores das ERPI, evidenciam a necessidade do recurso à metodologia qualitativa nos estudos a desenvolver.
É fundamental a criação de um novo paradigma de segurança do residente em ERPI. Os enfermeiros em geral e os enfermeiros gestores em particular podem ter uma intervenção preponderante nesse novo paradigma. É também essencial o desenvolvimento de estudos sobre a realidade das ERPI portuguesas.
A presente revisão pode constituir um ponto de partida no planeamento dessa intervenção com vista uma melhoria CSP e, por conseguinte, da qualidade dos cuidados nas ERPI.