1. Introdução
Estima-se que a nível mundial, 44% das gravidezes não são planeadas (Sedgh, et al., 2014), 56% terminam em aborto, e destas 50% resultam de falhas, da descontinuidade ou do uso incorreto do método (Baynes, et al., 2019). O número de abortos inseguros é mais evidente em países onde existem restrições à sua prática em condições de segurança e em instituição de saúde creditadas para esse efeito.
A acessibilidade à saúde sexual, reprodutiva, planeamento familiar e métodos contracetivos, também foram identificados, traduzindo-se numa elevada taxa de complicações e no aumento da mortalidade e morbilidade da mulher (Guttmacher Institute, 2018;Temmerman, 2019).
Para controlar esta questão de saúde publica, Portugal despenalizou a interrupção voluntária da gravidez (IVG), por vontade da mulher, até às 10 semanas completas de gravidez no ano de 2007 (Lei 16/2007). Em 2018, o número de IVG foi de 14 899, com um risco de recorrência até aos 2 anos de 6,8% e com 29,3% das mulheres a terem já efetuado anteriormente uma IVG (DGS, 2019). A maioria das mulheres que repetem uma IVG estavam a fazer contraceção e a sua recorrência está ligada a estratégias de aconselhamento contracetivo (DGS, 2019).
As razões apontadas para uma IVG são principalmente económicas, emocionais e sociais (Palma, 2017), e na sua origem estão a não adesão, a descontinuidade ou o uso incorreto de métodos contracetivos (Águas, et al., 2016; Presado, et al., 2018). O aconselhamento contracetivo que promova a tomada de decisão das mulheres, reduz as necessidades não atendidas de planeamento familiar, a adesão ao método (Palma, et al., 2020) e são componentes essenciais para melhorar a saúde reprodutiva (Höglund & Larsson, 2019).
A Organização Mundial da Saúde diz que o planeamento familiar é fundamental para a promoção do bem-estar, da autonomia da mulher, família e comunidade (OMS, 2016). A saúde sexual e reprodutiva é um recurso para que mulheres e homens possam decidir o seu projeto de maternidade, de forma livre e informada e assim serem garantidos os seus direitos. O objetivo da contraceção é proteger as mulheres, casais e famílias das gravidezes não planeadas e indesejadas (Bitzer, et al., 2017) e a qualidade do aconselhamento realizado é fundamental para garantir elevados padrões assistenciais e assim promover uma escolha informada (OMS, 2016). Usar ou não um contracetivo é uma escolha, baseada no conhecimento, atitude e tomada de decisão das mulheres (Höglund & Larsson, 2019). A evidência científica diz-nos que a falta de aconselhamento é o principal fator para a dificuldade na tomada de decisão a um contracetivo, pois, não se pode escolher o que não se conhece (Santos, et al., 2015). A melhoria dos cuidados ao nível da saúde sexual e reprodutiva, para além de garantir os direitos das mulheres favorece o seu uso e continuidade. Os estudos referem existir um déficit e falhas no aconselhamento contracetivo relacionado com a falta de interação entre o perfil de cada mulher e os aspetos biopsicossociais e culturais (Bitzer, et al., 2017).
Os enfermeiros, em especial os especialistas em enfermagem de saúde materna e obstétrica (EEESMO), possuem competências regulamentadas que dão resposta no exercício da sua atividade profissional, onde se inclui a IVG, o planeamento familiar, o aconselhamento contracetivo e a promoção da saúde da mulher (OE, 2019). O projeto de contraceção de uma mulher envolve motivação, informação, decisão, perceção, interpretação, comportamento e comunicação (Bitzer, et al., 2017). Por isso, os enfermeiros devem estar despertos para as caraterísticas individuais, culturais, sociais, experiência vivida, e perceção de saúde das mulheres (Höglund & Larsson, 2019).
O objetivo desta investigação foi compreender a perceção dos EEESMO sobre os aspetos que promovem a tomada de decisão por um método contracetivo por parte das mulheres após a IVG.
2. Metodologia
Foi desenvolvido um estudo descritivo de abordagem qualitativa com recurso a um grupo focal de enfermeiros, realizado na consulta de interrupção voluntária de gravidez (IVG) de uma unidade hospitalar da região de Lisboa e Vale do Tejo, em Portugal.
Trata-se de uma abordagem dos dados colhidos através do contacto com os participantes recolhendo as suas perceções, crenças, sentimentos e valores acerca de determinada temática (Gil, 2019; Rech, 2017; Vilelas, 2020).
A opção pela utilização de um grupo focal prende-se com a possibilidade de permitir a abordagem do universo do significado, motivos, aspirações, crenças, valores, atitudes, opiniões, interpretações de como as pessoas vivem, sentem, pensam e surge da reflexão e interação entre os participantes (Fontanella, 2021; Kinalski, et al., 2017). Permite o conhecimento do ser humano através dos debates e discussões focadas em tópicos específicos e que emergem da interação entre um grupo de pessoas e o investigador (Gil, 2019; Schvingel, et al., 2017). Acreditamos, que os dados colhidos através desta técnica, tornaram-se mais ricos do que em entrevistas realizadas individualmente.
O estudo insere-se num estudo misto do projeto de doutoramento em enfermagem e, apenas, nos iremos debruçar sobre a investigação qualitativa, nomeadamente, a perceção dos enfermeiros, da consulta de IVG, sobre a “tomada de decisão contracetiva”.
Pretendemos nesta apresentação responder às seguintes questões: Qual a perceção dos enfermeiros sobre a tomada de decisão contracetiva das mulheres? Quais os fatores que contribuem para a dificuldade na escolha contracetiva?
Na seleção dos participantes, consideramos como critérios de inclusão: enfermeiros especialistas em enfermagem de saúde materna e obstétrica, realizarem aconselhamento contracetivo e aceitarem participar no estudo.
Para facilitar a colheita de informação e responder aos objetivos do estudo, foi elaborado um guião com um conjunto de questões amplas. Foram explicados os objetivos e finalidades do estudo, garantindo a confidencialidade dos dados. Foi pedido aos participantes, autorização para a gravação áudio e respetiva transcrição, obtido através de consentimento informado. Foram respeitados os princípios éticos referentes a este tipo de investigação, o estudo foi aprovado pelo Conselho de Administração e Comissão de Ética do hospital em 24/07/2020.
A seleção dos participantes foi intencional, formada por cinco dos seis enfermeiros que compõe a consulta. A colheita de dados foi realizada numa única sessão que não ultrapassou os 75 minutos, em agosto de 2020.
A data para a realização do grupo focal foi acordada com os participantes, num ambiente calmo, fora do hospital e sem interrupções constantes.
Devido à pandemia pelo SARS-COV2, o grupo focal foi realizado através da plataforma digital Zoom®. A ideia inicial seria a realização presencial, no entanto o recurso à plataforma digital revelou-se benéfico por ser semelhante à presencial, mas acrescida da conveniência em não exigir a necessidade do investigador e dos participantes terem de se deslocar, custo reduzido, rapidez na colheita e registo de informação e permitir a abordagem de temas considerados constrangedores tornando mais fácil a participação de todos os intervenientes (Abreu, et al., 2009; Francisco & Neto, 2017).
O Grupo Focal foi conduzido pelo primeiro investigador e todos os enfermeiros participaram de igual forma na discussão. Este tipo de abordagem permitiu que se explorassem aspetos que, de outra forma, poderiam não ser abordados e aprofundados (Schvingel, et al., 2017). As interações foram ativas, permitiram a expressão de opiniões individuais e a sua análise sob diferentes perspetivas, o que forneceu construtos validos para a investigação. Para garantir o anonimato e confidencialidade dos participantes, as entrevistas foram codificadas com a letra “P” (P1 a P5).
Na análise dos dados colhidos, seguimos as fases defendidas na teoria de análise de conteúdo de Bardin (2016) com o apoio do software Web Qualitative Data Analysis WebQda®. A autora (2016), divide a análise de conteúdo em três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento, análise e inferência dos dados relevantes para o estudo. A análise de conteúdo permite ao investigador analisar os dados obtidos através das falas dos participantes, com a ajuda de procedimentos que facilitem assegurar a pertinência, validade e fiabilidade dos dados, (Magalhães & Paul, 2021). Numa primeira fase transcrevemos a entrevista na integra onde constavam as opiniões manifestadas dos enfermeiros. Numa segunda fase realizámos nova leitura onde foram identificadas as unidades de registo. Seguiu-se nova leitura aprofundada com o intuito de identificar os critérios de exclusividade, pertinência e exaustividade.
Realizamos a categorização segundo a classificação análoga e progressiva dos dados. O título conceptual de cada categoria foi definido posteriormente, as categorias, foram dividas em subcategorias e respetivas unidades de registo. As categorias emergentes foram analisadas e discutidas com o segundo autor.
Após este processo, os dados foram inseridos na plataforma digital do software WebQda®, o que se tornou facilitador na análise dos discursos dos enfermeiros, pois permitiu-nos uma maior rapidez, rigor na análise de um grande volume de dados, além da segurança e trabalho colaborativo entre investigadores, habitualmente realizada de forma isolada com validação posterior (Costa & Amado, 2018).
3. Resultados e Discussão
O grupo dos participantes foi composto por cinco EEESMO, que compõem a consulta de IVG onde realizamos o estudo. O sexto enfermeiro é um dos investigadores e, por essa razão participou como moderador do grupo focal. Todos do sexo feminino, nacionalidade portuguesa, com uma média de idades de 47,4 anos, quatro casados e uma divorciada. No que concerne à experiência profissional, têm em média 24,4 anos, sendo 13,6 anos a média de anos como enfermeiros especialistas e de 8,8 anos o tempo experiência na consulta de interrupção voluntária da gravidez. Relativamente à formação em aconselhamento contracetivo e contraceção; 40% dos enfermeiros referem não ter realizado nenhum tipo de formação. Da análise de conteúdo, relativamente ao tema “Tomada de Decisão Contracetiva” emergiram duas categorias “aspetos socioculturais” e “dificuldade na escolha contracetiva” e seis subcategorias conforme indicado na Quadro 1.
Percebemos, através das falas das participantes, que o que pode estar na origem da escolha, ou não, de um método podem ser as crenças e mitos existentes.
Na categoria “aspetos socioculturais” sobressaem as crenças e mitos, verificadas nas expressões
“vai dependendo das crenças de cada um” (P2, P4), “muitos mitos” (P4, P5).
Os resultados corroboram com os achados na evidência (Coutinho & Moleira, 2017), ao afirmarem que um dos motivos para o insucesso do aconselhamento sexual onde se incluem os contracetivos, são os mitos e crenças erradas, nomeadamente sobre os efeitos colaterais e a segurança. Devido à crença de que os contracetivos podem interferir no prazer sexual e na relação sexual, vários estudos têm mostrado o envolvimento em comportamentos sexuais de risco (Lopes, 2018).
Na categoria “dificuldade na escolha contracetiva”, identificou-se nas falas dos participantes as causas subjacentes como a menor literacia e literacia em saúde, as condições económicas e a idades das mulheres.
“falta de conhecimentos gerais” (P2, P5); “baixos níveis de escolaridade” (P5) e “pouca literacia em saúde” (P1, P2, P3, P4, P5); “sabem muito pouco ou quase nada sobre contraceção e métodos contracetivos” (P1); “níveis de imaturidade face à interpretação da informação” (P2) e “muitas têm dificuldade em decidir” (P2, P2, P3, P4, P5).
Os grupos com “poucos recursos” (P2); “situações socioeconómicas mais vulneráveis” (P2) e a idade parece influenciar as escolhas “às vezes tem haver com o fator idade” (P5) a “idade das mulheres também parece influenciar as escolhas” (P2); “quando elas são demasiado novinhas optam um bocadinho por aquilo que dizem as amigas” (P5).
As ideias referidas pelos participantes espelham o mencionado noutros estudos, nomeadamente na influência da literacia das mulheres, associada à escolaridade, à desinformação e a capacidade para tomarem decisões sobre a sua vida reprodutiva (Ferreira, 2019; Palma, 2017; Santos, et al., 2015). As mulheres com poucos estudos tendem a ter mais dificuldade em interiorizar a informação transmitida, pelos profissionais de saúde, e a fazer uso dessa informação, aspeto que condiciona as escolhas e a utilização correta do método. Factos que podem levar à utilização de contracetivos mais acessíveis, nem sempre os mais adequados à condição, preferência e estilo de vida da mulher (Ferreira, 2019; Santos, et al., 2015).
A estreita relação entre a baixa idade das mulheres, o facto de não possuírem conhecimentos adequados sobre contraceção e as fracas condições económicas podem levá-las a usar contracetivos que as deixem insatisfeitas, e posteriormente abandonarem a sua utilização (Ferreira, 2019; Santos, et al., 2015) como constatado através dos discursos dos participantes “ah deixei de tomar” (P1, P2, P5), sem percecionarem as implicações dessa decisão. As mulheres mais velhas têm tendência a escolher métodos mais eficazes como os contracetivos intrauterinos (Palma, et al., 2020). No entanto, e embora as participantes, falem das mulheres mais jovens, também referem todas as outras como fonte das suas preocupações “independentemente das idades delas” (P3).
A necessidade de ponderarem sobre a informação transmitida foi um aspeto valorizado por muitos participantes
“se percebo que existe alguma incerteza digo-lhe que não têm que decidir naquele momento” (P1, P2, P3, P4); “podem fazê-lo com calma e na consulta de follow-up voltamos ao tema” (P4).
Compreende-se a preocupação dos enfermeiros em colocar as mulheres no centro dos seus cuidados. Embora exista alguma evidência de que o momento ideal para se realizar o aconselhamento contracetivo, pela alta taxa de adesão e continuidade, é durante a experiência vivida de uma IVG, também é reconhecida a necessidade das mulheres requererem mais tempo para tomarem decisões contracetivas (Palma, et al, 2020).
4. Conclusões
As participantes no estudo acreditam que existem aspetos que podem condicionar a tomada de decisão contracetiva, como sejam as influências socioculturais, imbuídas em crenças e mitos. Os aspetos económicos foram ressaltados no grupo dos mais vulneráveis, onde são incluídas as adolescentes e os mais pobres. A idade das mulheres é encarada como condicionante na escolha de um contracetivo. As adolescentes e as mulheres com menor poder económico são apontadas como as que têm maior dificuldade nas escolhas, embora, essa ocorrência foi identificada em qualquer faixa etária, tal como na utilização eficaz da contraceção.
A baixa literacia em saúde, pode justificar a necessidade de um período mais longo para a decisão, pela dificuldade na escolha de um método adequado às necessidades da mulher. Razão que conduz à utilização incorreta e ao abandono do método.
Quando se promove o aconselhamento a um método deve ter-se em conta as características da população, as condições socioeconómicas onde as mulheres se enquadram.
Percebe-se a preocupação dos enfermeiros em respeitar o desejo das mulheres, colocando-as no centro dos seus cuidados, recorrendo ao seu envolvimento na partilha de decisões que circundam a sua saúde. Acreditam que reforçam o conhecimento e a capacidade das mulheres para tomarem decisões mais adequadas às suas necessidades.
Concluímos que é importante compreender os fatores que podem condicionar as escolhas contracetivas das mulheres, de forma a serem expandidas intervenções promotoras de saúde que proporcionem escolhas conscientes e satisfatórias das necessidades individuais de planeamento reprodutivo.
Este é um estudo preliminar, que apresenta algumas limitações, nomeadamente o número de participantes e por ter sido aplicado apenas num contexto clínico. Mais participantes e uma maior variedade de contextos, resultariam em achados que poderiam trazer contributos importantes.
Esta investigação recolheu contributos da investigação qualitativa e o recurso ao software WebQda®, foram fundamentais para a compreensão do fenómeno em estudo e, apresenta desafios para a prática clínica, para a formação e para a investigação.