1. Introdução
A Rede Cegonha (RC) no contexto das ações públicas de saúde propõe-se ao enfrentamento das crescentes taxas de mortalidade materna e fetal, do crescente número de partos cesárea, tanto no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) como na saúde suplementar e privada, e da fragilização do cuidado pré-natal que direciona as ações tanto das mulheres como das equipes de saúde a escolhas baseadas em conhecimentos pobres em evidências científicas, cercadas de mitos e medos (Brasil, 2011a).
A organização da RC se faz a partir de quatro (4) componentes: (i) Pré-Natal; (ii) Parto e Nascimento; (iii) Puerpério e Atenção Integral à Saúde da Criança; e (iv) Sistema Logístico: Transporte Sanitário e Regulação.
Cada componente se desenvolve em um cenário específico, sendo o Pré-Natal desenvolvido principalmente no território da Atenção Básica (AB); o Parto e Nascimento desenvolve-se principalmente na atenção hospitalar, tanto nas maternidades de baixo como de alto risco, nos Centros de Parto Normal e Casas de Parto; o Puerpério e Atenção Integral à Saúde da Criança ocorre, na sua grande maioria, de volta ao território da AB, podendo compartilhar o atendimento especializado nas necessidades mais complexas e o componente Sistema Logístico perpassa todos os cenários, inclusive das Urgências.
Embora o acesso ao pré-natal seja praticamente universal no Brasil com alcance dos indicadores de número de consultas de pré-natal executadas, a qualidade dessa atenção não é suficiente para promover um bom cuidado (Brasil, 2011b).
O cenário foco dessa pesquisa é a RC de uma região de saúde (RS) composta por 19 municípios, pertencente a uma das Redes Regionalizadas de Atenção em Saúde (RRAS), denominada RRAS 10 (correspondente ao Departamento Regional de Saúde IX - DRS IX), que dividem organizativamente o sistema de saúde do Estado de São Paulo, Brasil (São Paulo, 2011).
Considerando o Plano de Ação Regional da RC da RRAS, aprovado nas instâncias estaduais e nacionais (São Paulo, 2012), identifica-se o recrudescimento da mortalidade materna, destacando-se que na RS desse estudo de 22,15 por 100.000 nascidos vivos em 2010, esse número avança para 52,72 em 2016 (Brasil, 2018).
A construção e desenvolvimento da RC, aliados ao desenvolvimento das Redes de Atenção, ancorados nos princípios da Política Nacional de Humanização (Brasil, 2008) e, por consequência, nos princípios do SUS, implicam a transformação dos modelos hierarquizados para modelos horizontais dos pontos de atenção, e promoção da autonomia dos sujeitos atores da produção de saúde.
No entanto, conforme os indicadores apontados anteriormente, acredita-se que poucos avanços ocorreram, evidenciando, ainda, um modelo fragmentado e não efetivo à essa população.
Diante disso, tem-se como inquietação compreender a organização do cuidado do pré-natal na RC, de forma a identificar as fragilidades na implementação dessa política de saúde e a compreensão das ferramentas propostas.
Assim, objetiva-se analisar a operacionalização da RC em uma Região de Saúde do Estado de São Paulo, a partir da percepção de usuárias e de profissionais de saúde.
2. Metodologia
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que trabalha com o universo dos significados, dos motivos, buscando a compreensão das crenças, dos valores e das atitudes, das percepções e interpretações que as pessoas fazem a respeito do modo de viver e pensar, propiciando a construção de novas abordagens e criação de novos conceitos a partir da investigação (Minayo, 2014 e 2015).
A investigação foi realizada em três municípios que pertencem ao DRS IX, definidos por amostra de conveniência considerando o número de atendimentos e encaminhamentos ao hospital de referência e designados como AM, AB E CM. Assim, AM e CM são os municípios que mais encaminham à referência, sendo que AM apresenta cobertura de 100% de ESF; o município BM que conta com 100% de cobertura de AB e 100% de ESF, o que menos encaminha; e CM tem AB com Estratégia Saúde da Família (ESF) e Unidade Saúde da Família (UBS) tradicional, apresentando cobertura de aproximadamente 70% de AB.
Para participação na pesquisa, todas as gestantes inscritas e com pré-natal em curso, na rede pública ou na rede privada, foram convidadas pelos profissionais das equipes, tendo sido entrevistadas as que aceitaram, e quanto aos profissionais, foram incluídos por participação na equipe de saúde e por aceite na participação no estudo.
A coleta de dados foi realizada por meio das técnicas de entrevista e de grupo focal. A entrevista na pesquisa social é descrita em Minayo (2015) como uma técnica da pesquisa de campo para coleta de informações que tem como objetivo construir informações sobre o objeto de pesquisa e não prescinde da interação entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados. Dentre as modalidades propostas pela autora, a entrevista semiestruturada combina perguntas fechadas e abertas e convida o interlocutor a discorrer sobre o assunto sem se prender à questão formulada.
O roteiro de perguntas semiestruturadas foi desenvolvido com o olhar para os dispositivos e ferramentas da RC. Foram entrevistadas individualmente 25 usuárias, no período de agosto a novembro de 2019, com duração média de 13min, em locais que variaram, à escolha da entrevistada, entre a própria residência e a unidade de saúde.
Para a realização dos grupos focais com as equipes de saúde, foram convidados os componentes da equipe mínima, das unidades dos municípios onde as gestantes residiam: Agente Comunitário de Saúde (ACS), Enfermeiro, Médico, Auxiliar/Técnico de Enfermagem e Dentista, tendo em duas unidades participado também Agente de Controle de Endemias (ACE) e Auxiliar de Limpeza, pela compreensão que a equipe tinha de pertencimento.
Minayo (2014) destaca a praticidade de reunir muitos atores em um mesmo momento, a possibilidade de desvelar consensos e dissensos, importante para aprofundar o debate do grupo. A análise do grupo focal pode fornecer subsídio para a compreensão dos conteúdos emergidos das entrevistas e estas, por sua vez, aos dados do grupo, para identificação dos conceitos percebidos e construídos pelos atores profissionais da saúde e usuárias sobre rede de atenção e rede cegonha, interesse do estudo que ora conduzimos.
Foram formados quatro grupos, identificados de acordo com a nomenclatura utilizada para os municípios: um grupo nos municípios AM e BM cada, EqAM e EqBM respectivamente e dois grupos no município CM, por este ter uma equipe de UBS Tradicional e uma equipe de ESF, sendo denominados EqCM1 e EqCM2. Os grupos somente foram realizados após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Estes encontros ocorreram no período de agosto a novembro de 2019 na própria unidade de saúde e em horário de trabalho, sem prejuízo ao trabalhador, com uma média de 33min de duração. O roteiro, continha questões norteadoras abordando aspectos referentes a organização e a operacionalização da rede cegonha, as fragilidades e as potências por eles identificados.
As entrevistas e os grupos focais foram registrados em áudio por meio de gravador digital ou aplicativo em telefone móvel e transcritas posteriormente.
Para garantia de sigilo, as entrevistas foram numeradas e codificadas, sendo referenciadas de acordo com o município, AM, BM e CM, em ordem numérica: AM1, AM2 [...]; BM1, BM2 [...] e CM1, CM2 [...].
Para realização da pesquisa, obteve-se autorização dos respectivos gestores municipais e estaduais das instituições envolvidas e a submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de XXX, com parecer favorável, CAAE 02880118.4.0000.5413, por nº 3.739.674.
A análise dos dados foi realizada pela Análise de Conteúdo, modalidade temática, segundo o referencial de Minayo (2015).
Sendo assim, as transcrições das entrevistas e dos grupos focais passaram por exaustiva leitura para exploração, identificação e organização dos conteúdos das falas, reconhecimento dos núcleos de sentido, e posterior categorização e definição dos temas, de acordo com o procedimento metodológico da análise de conteúdo. O processo de codificação foi realizado pela pesquisadora e duas docentes que fizeram a validação. Obteve-se denso material que nesse artigo será abordado aspectos sob o olhar da gestante e profissionais acerca do tema: o ator que exerce o cuidado e os desafios identificados pelas equipes.
3. Resultados
3.1 O Ator que Exerce o Cuidado na Perspectiva da Gestante
Os relatos trouxeram percepções sobre o cuidado no pré-natal e do profissional que o realiza, com consultas periódicas intercaladas entre o enfermeiro e o médico, e de procedimentos realizados especificamente pelo profissional enfermeiro e outros a percepção do cuidado feito especificamente pelo médico:
“Uma [consulta] com o enfermeiro, uma com o médico” (BM2).
“A primeira com enfermeira, a segunda com médico, a terceira com enfermeira, a quarta com médico ginecologista, a quinta com enfermeira” (BM14).
“Já passei [com a enfermeira]” (AM1).
“[Na pré consulta] mede a pressão, pergunta se tem alguma queixa, peso” (AM3).
“Sempre que venho faz a pré consulta primeiro, só peso e pressão, depois passa com a médica” (AM2).
“Quando eu descobri [a gravidez] foi com a enfermeira [...] ela preencheu a carteirinha” (BM12).
Concernente aos profissionais atenderem as necessidades de informações, identificou-se satisfação tanto no serviço privado quanto no público e orientações que geraram dúvidas.
“No particular eles conversam muito, é 100% diferente do SUS, eles ficam muito com você” (BM12).
“A médica aqui conversa bastante. Tá de parabéns, fui atendida muito bem no posto. Ganhamos até banheira, fralda...” (CM3).
“Aqui é bem-feitinho, melhor que o particular” (BM3).
Outros relatos expuseram, todavia, algumas fragilidades nas informações de que dispunham e o quão vulneráveis as gestantes estavam por estas serem poucas ou desqualificadas:
“Não vou conseguir amamentar [por causa da incompatibilidade Rh (SIC)], não vou conseguir fazer várias coisas” (AM1).
“Não recebi orientação [sobre os tipos de parto]” (BM2).
“Eles não falaram muita coisa [sobre o parto normal] o que eu sei é o que eu ando lendo” (CM2).
3.2 Desafios Identificados pelas Equipes
Em relação aos desafios para a operacionalização da RC, as equipes trazem aspectos relacionados ao acompanhamento do processo em Rede, além de dificuldades na organização do processo de trabalho e outros relacionados a adesão das gestantes.
No que se refere ao processo de gestão tem-se dificuldades em acompanhar o processo de cuidado, embora, acreditam que desenvolvam muitas ações.
“A gente faz muito, vai ver a efetividade, não consegue acompanhar, então, esse monitoramento, a gente não tem” (EQAM).
Quanto ao processo de trabalho, apontam-se fragilidades como a sobrecarga de trabalho, o número reduzido de profissionais para atender às necessidades da população e a rotatividade do profissional médico:
“Meu desafio é desenvolver, no pouco tempo que a gente tem, [...] as várias atividades” (EQAM).
“A quantidade de população é grande e a quantidade de profissional não dá conta” (EQCM2).
“Não tem um profissional [médico] fixo. Quando o paciente “acostuma” com o profissional, o profissional acostuma com o paciente... Daí tem que começar tudo de novo” (EQCM2).
As gestantes também são identificadas, por profissionais da equipe de saúde, como responsáveis por fragilizar o cuidado as mesmas.
“Gestante, a gente convida, mas não vem. Resistência” (EQBM).
“A população exige muito da gente” (EQBM).
“As gestantes não têm compromisso” (EQCM1).
Outro desafio apontado pelos profissionais diz respeito a descontinuidade do cuidado no sentido de ausência de retaguarda na sequência da Rede e incongruência de orientações com o serviço hospitalar.
“Aqui na unidade tem assistência boa, trata, instrui, só que lá na frente não tem um ultrassom, um parto digno. Não tem como” (EQAM).
“A mulherada vai lá, tem o bebê, volta aqui contando horrores do que passou lá no parto” (EQCM1).
“Mas na amamentação, tá com problema, tem os industrializados, já sai do hospital com a receita do pediatra” (EQAM).
4. Discussão
Em relação ao cuidado do pré-natal, tem-se o atendimento realizado por médico e por enfermeiros. Destaca-se que a ação da enfermagem se amplia no pré-natal de baixo risco na AB, principalmente no âmbito da ESF, pois cabe ao profissional enfermeiro o cuidado compartilhado e alternado das consultas com o médico, tendo um papel ativo na escuta, avaliação, prescrição e orientação, conforme os documentos técnicos estabelecidos pelo Ministério da Saúde (2012) e Conselho Federal de Enfermagem (COFEN, 2016 e 2017). O papel do enfermeiro é essencial para a ampliação das ações de humanização na assistência, construindo vínculos, estabelecendo relações de confiança e organizando o processo de trabalho (Gomes et al. 2019).
Pesquisa realizada com gestantes aponta que enfermeiros realizam consultas mais acolhedoras e que privilegiam a escuta (Livramento, 2019a). Dessa forma, a consulta de enfermagem de forma alternada com a consulta médica deve ser uma ação mais presente nos serviços de saúde, ou seja, não ser uma atividade somente de pré consulta médica, como também citada na presente investigação.
No cenário pesquisado, identificam-se incompreensões quanto às informações recebidas pelas gestantes. Nesse sentido, Cardelli et al. (2016) apontam as expectativas e satisfação manifestas pelas gestantes relacionadas ao cuidado do pré-natal e concluem que há necessidade de informação, escuta e acolhimento, para além da realização de consulta médica e exames complementares, principalmente nos estratos das primíparas e das gestantes qualificadas como de alto risco.
Pires et al. (2016) consideram as dificuldades observadas na AB, mesmo com a implantação da ESF, como os cenários complexos do trabalho vivenciados no território e as condições disponíveis para sua realização, interferindo na qualidade e segurança do resultado do cuidado, sendo aspectos importantes para a análise dos relatos das equipes sobre os desafios identificados.
Com relação à rotatividade dos médicos, Pierantoni et al. (2015) reportam índices deste fenômeno, observados tanto nas UBS tradicionais como nas Unidades com ESF. Municípios com indicadores econômicos baixos, a concorrência do mercado, os fatores demográficos, geográficos, a estrutura e o acesso aos níveis de atenção de maior complexidade e, por fim, a satisfação para o trabalho estão entre os pontos discutidos. Em estudo comparativo, Elias et al. (2006) encontraram diferenças importantes, tendendo à melhor na avaliação para as unidades cujo modelo de atenção estivesse pautado pela ESF.
À luz destas reflexões, compreende-se que tanto nas unidades cujo trabalho é pautado no modelo de atenção da ESF como nas UBS tradicionais, estas convivem com subdimensionamento de profissionais, sobrecarga de trabalho, entre outros problemas. Esse contexto com descontinuidade no acompanhamento das gestantes, principalmente por parte da alta rotatividade dos médicos, não contribui para um cuidado integral, em Rede, na medida em que o foco muitas vezes está na queixa momentânea e não nas necessidades que possam se constituir considerando a idade gestacional, número de filhos, contexto socioeconômico, promoção da autonomia das gestantes nas escolhas ao longo do pré-natal, dentre outras.
Os programas da ESF e da PNH (Brasil, 2006 e 2008) trouxeram, no bojo das formulações, novos paradigmas para construção da autonomia de trabalhadores e usuários. Estas ferramentas trazem novas formas de relação entre estes atores, permitindo novos arranjos, transcendendo o lugar-comum da subjugação dos sujeitos para ações vivas e transformadoras (Freire, 2014). Terra e Campos (2019) ressaltam que o papel de expectadores nos apequena diante do trabalho, podendo trazer tristeza e alienação.
Capturadas pelos grupos focais, as frases responsabilizando o usuário pelo não cuidado, são recorrentes nas equipes de saúde. De fato, e em última instância, as pessoas são responsáveis pelas próprias escolhas, no entanto, necessita-se de investimentos para possibilitar autonomia para tomada de decisão, como atores no seu processo de cuidar.
Os profissionais direcionam às gestantes a responsabilidade pela descontinuidade no cuidado, mas não conseguem perceber que não há uma proposta de gestão a partir de indicadores e reflexão sobre o próprio processo de trabalho, o qual pode não estar atendendo as necessidades de saúde delas. Mesmo que as gestantes estejam satisfeitas com o atendimento, conforme destacado em algumas falas, questiona-se qual a percepção de modelo de cuidado elas consideram como referência para seu acompanhamento.
Por outro lado, o cuidado em Rede também apresenta desafios como a falta de planejamento e comunicação entre os serviços da AB e a área hospitalar, não garantindo a realização de ultrassom e do parto humanizado, dentre outras necessidades sinalizadas.
Talvez o foco no modelo biomédico, que ainda persiste nos serviços de saúde, limite a ampliação do cuidado na perspectiva da integralidade que poderia proporcionar articulação entre as ações, a reflexão e autonomia para todos na tomada de decisão.
Nesse sentido, a trajetória da transcendência de sujeito, como ator do processo de produção da saúde, necessita de vontade política, conhecimento e participação social. De todos!
5. Considerações Finais
A pesquisa se propôs investigar a compreensão e a operacionalização da RC em uma RS do Estado de São Paulo, a partir da percepção de usuários e de profissionais de saúde, cujo desenho e trajetória percorrida possibilitou o alcance do objetivo.
A percepção das mulheres sobre as ações executadas pela RC evidenciam consultas realizadas por médicos e enfermeiros. Demonstraram satisfação com orientações realizadas, como também incompreensões acerca de informações recebidas nos serviços de saúde. Nesse sentido, é notório a necessidade de investimentos quanto as ações realizadas pelos profissionais, no sentido de possibilitar autonomia às gestantes em relação ao seu cuidado.
Quanto à percepção das equipes referente a operacionalização da RC, identificam-se desafios referentes ao funcionamento em Rede, organização do processo de trabalho das equipes e aspectos relacionados à adesão das gestantes, reiterando assim, vulnerabilidades para um efetivo trabalho em Rede.
Ressalta-se, ainda, que a utilização em ato, em trabalho vivo, das ferramentas propostas pela Política Nacional de Humanização e Política de Humanização do Pré Natal, Parto e Nascimento, com a atuação participativa e colaborativa dos atores que produzem a saúde possibilitam melhores arranjos para o cuidado e, consequentemente, experiências mais seguras e plenas para as mulheres.
Por fim, considera-se que o método escolhido, por meio das técnicas de entrevistas e grupo focal para a coleta de dados permitiu captar de gestantes e trabalhadores dos serviços de saúde, aspectos relevantes acerca da implementação da RC, além de indicar caminhos para potencializar a gestão desse processo.