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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.8  Oliveira de Azeméis jun. 2021  Epub 29-Nov-2021

https://doi.org/10.36367/ntqr.8.2021.754-762 

Artigos Originais

Movimentos Migratórios na Infância: Uma Análise à Luz da Teoria Bioecológica

Migratory Movements in Childhood: An Analysis in Light of the Bioecological Theory

Flávia de Maria Gomes Schuler1 

Emily Schuler1  2 
http://orcid.org/0000-0003-2930-8642

Cristina Maria de Souza Brito Dias1 
http://orcid.org/0000-0001-7636-6701

1 Universidade Católica de Pernambuco. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, Brasil.

2 Oxford University, Oxford Institute of Population Ageing, Reino Unido.


Resumo:

A título de Introdução observa-se que os movimentos migratórios na infância ainda são alvo de poucos estudos, apesar de serem centro da problemática atual e sofrerem aumentos significativos. O Objetivo geral deste artigo foi analisar a trajetória de jovens brasileiros que migraram para a Suíça ainda crianças, à luz da Teoria Bioecológica. Mais especificamente buscou-se compreender as transições vividas nos diversos sistemas, e como ocorreu adaptação aos mesmos. Quanto ao Método, optamos por uma pesquisa de natureza qualitativa. Os participantes da pesquisa foram doze, sendo seis jovens brasileiros, que migraram ainda crianças para a Suíça, possuem idade entre 18 a 25 anos, de ambos os sexos; assim como seis mães brasileiras que migraram há mais de dez anos, são casadas com europeus e levaram seus filhos para viver com elas. É importante ressaltar que as mães e os jovens não pertencem necessariamente à mesma família. Com os jovens foi utilizado, a entrevista História de Vida, e com as mães foi utilizada uma entrevista semiestruturada. A análise foi feita a partir dos Sistemas propostos pela Teoria Bioecológica, contribuindo para uma visão holística do fenômeno. Os Resultados apontam que as mães que faziam a mediação apresentaram duas dificuldades principais: a língua e o não conhecimento do sistema escolar. Os microssistemas família e escola passaram por mudanças radicais. A criança, por sua vez, foi buscando se adaptar à nova situação, vencendo crises e dificuldades para integração. Para as crianças o tempo foi essencial no passado, venceram muitas dificuldades, ao mesmo tempo em que um leque de possibilidades se abriu. Essas crianças migrantes, hoje os jovens biculturais, trazem consigo uma nova forma de ver o mundo e assim um potencial para muitas mudanças.

Palavras-chave: Crianças; Migração; Desenvolvimento Humano; Teoria Bioecológica.

Abstract:

As an Introduction, it is observed that migratory movements in childhood are still the target of few studies, despite being the center of the current problem and undergoing significant increases. The general Goal of this article was to analyze the trajectory of young Brazilians who migrated to Switzerland as children, in light of the Bioecological Theory. More specifically, we sought to understand the transitions experienced in the various systems and how they were adapted to them. As for the Method, we opted for a qualitative research. The research participants were twelve, six young Brazilians, who still migrated as children to Switzerland, aged between 18 and 25 years old, of both sexes; as well as, six Brazilian mothers who migrated more than ten years ago, they are married to Europeans and took their children to live with them. It is important to note that mothers and young adults do not necessarily belong to the same family. With the young adults, a Life History interview was used, and with the mothers, a semi-structured interview was used. The analysis was made from the Systems proposed by the Bioecological Theory, contributing to a holistic view of the phenomenon. The Results show that the mothers who were mediating had two main difficulties: the language and the lack of knowledge of the school system. The family and school microsystems have undergone radical changes. The child, in turn, sought to adapt to the new situation, overcoming crises and difficulties for integration. For children, time was essential in the past, they overcame many difficulties, at the same time that a range of possibilities opened up. These migrant children, today bicultural young adults, bring with them a new way of seeing the world and thus potential for many changes.

Keywords: Children; Migration; Human Development; Bioecological Theory.

1. Introdução

A temática da migração tem se tornado cada vez mais presente nas mídias, nas relações familiares e também em nosso cotidiano. Segundo o Relatório de Mundial de Migrações (OIM, 2020), atualmente 272 milhões de pessoas são migrantes internacionais e dentre eles 31 milhões são crianças e adolescentes fora de seu país de origem. O número representa que um a cada oito migrantes são crianças ou adolescentes.

Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, 2018) o número de crianças migrantes e refugiadas em idade escolar no mundo cresceu vinte seis por cento desde o ano 2000.

Em se tratando de leis de migração, de maneira geral, todos os países da União Europeia permitem que os filhos dos migrantes se juntem aos pais para que haja a reunificação familiar. Embora essa conjuntura pareça lógica, segundo Oliveira (2010), essa reunificação pode ser muito difícil, tanto em função das leis de migração, quanto em função do próprio relacionamento da família. A migração traz consigo uma serie de desafios de adaptação ao novo país, tais como aprender outra língua, frequentar a escola, fazer novos amigos e entender a lógica de um país diferente do seu.

Observa-se, portanto que a criança se situa em meio a desafios do movimento migratório (Marcelli; Cohen, 2010). Além das adaptações necessárias, pode-se perceber a ruptura com a família extensa, em particular com os avós, bem como com os companheiros e amigos da escola e vizinhança, o que acarreta profundas mudanças na vida cotidiana. Mediante diversas dificuldades, não se pode esquecer aspectos positivos associados a migração, uma vez que crianças migrantes têm a chance de desenvolver um sentido mais apurado em relação a outros mundos, culturas e línguas, podendo, assim, tornar-se os futuros cidadãos do mundo.

Sendo assim, o objetivo geral deste artigo foi analisar a trajetória de jovens brasileiros que migraram para a Suíça ainda crianças, à luz da Teoria Bioecológica. Este artigo é parte de uma pesquisa de pós-doutorado e tem como foco as crianças migrantes em um contexto mais amplo.

2. Aporte Teórico

Foi escolhida a Teoria Bioecológica, cunhada por Brofenbrenner para dar base a presente pesquisa, uma vez que esta permite um olhar holístico aos sistemas que englobam o fenômeno da migração. A Teoria Bioecológica permite aprofundar, sob a perspectiva da complexidade, a compreensão do desenvolvimento humano como um processo que ocorre ao longo de toda a vida. Tal teoria nos oferece uma visão ampla das situações, das pessoas e suas inter-relações nos diversos contextos, sendo, portanto, um referencial teórico importante quando se pretende investigar aspectos do desenvolvimento de crianças que migraram para o exterior, enfrentando mudanças em todos os contextos de sua vida.

Bronfenbrenner (1996) pontua que os processos proximais pelos quais o desenvolvimento é realizado são condição sine qua non para o desenvolvimento humano e familiar.

O processo proximal representa as formas de interação da pessoa com o ambiente, que ocorrem regularmente, sendo ele a forma, a força, o conteúdo e a direção dos resultados no desenvolvimento humano. Elas promovem o desenvolvimento de ambos os participantes e podem produzir efeitos positivos ou negativos no processo de desenvolvimento.

O próximo núcleo do desenvolvimento para Brofenbrenner (1996) é o contexto. Ele se refere ao meio ambiente global em que a pessoa está inserida e onde se desenrolam os processos de desenvolvimento. Os vários ambientes que constituem o contexto abrangem tanto os ambientes mais imediatos, nos quais vive a pessoa, como os mais remotos, em que a pessoa nunca esteve, mas que se relacionam e têm o poder de influenciar o desenvolvimento.

Esses ambientes são denominados: Microssistema, Mesossistema, Exossistema e Macrossistema. Em um sistema, todos os elementos estão interligados e se influenciam mutuamente. A mudança em um elemento pode trazer mudanças para todos os outros. O microssistema é o sistema imediato que o indivíduo em desenvolvimento vive, estando ligado a configurações concretas.

O microssistema é formado pela família (pai, mãe, filho), mas dentro da família existem as díades (mãe - filho; pai - filho) e as tríades (3 irmãos); em locais como casa, escola, onde a criança vive e interage face a face com seu meio imediato, onde são operados os processos proximais, que são considerados os motores do desenvolvimento.

O mesossistema compreende dois ou mais microssistemas em que a pessoa em desenvolvimento participa. As relações entre esses sistemas formam um próprio sistema muito relevante para o desenvolvimento. Para uma criança, por exemplo, são as relações entre a sua casa, escola, grupo de companheiros no bairro; para um adulto, são as relações entre família, trabalho e conhecidos.

O exossistema inclui um ou mais microssistemas em que a pessoa não está diretamente envolvida, mais que indiretamente influencia na vida da pessoa. Já o macrossistema é o sistema mais amplo, que abrange os demais. É composto pelo padrão global de ideologia e organização das instituições sociais comuns a uma determinada cultura ou subcultura que estabelecem padrões nos outros sistemas. O macrossistema impregna a todas as pessoas e também a cada um individualmente. É como se fôssemos carimbados pela nossa cultura.

O quarto e último elemento da teoria, o tempo, também chamado de Cronossistema, abrange as mudanças relacionadas ao tempo no indivíduo e no ambiente em que vive. Pode ser entendido como o desenvolvimento no sentido histórico, ou seja, como ocorrem as mudanças no decorrer dos tempos, devido às pressões sofridas pela pessoa em desenvolvimento.

Nessa perspectiva, investiga-se as mudanças que ocorrem no contexto e o papel desempenhado pela pessoa no seu cotidiano, assim como as mudanças psicológicas que ocorrem com o passar dos anos (Brofenbrenner, 2011). As mudanças implicam em uma reorganização contínua ao longo de tempo e espaço, sendo denominadas de transição ecológica. Essas mudanças ocorrem todo o tempo, direta e indiretamente, na pessoa/família e no meio ambiente. A transição ecológica ocorre sempre que a pessoa muda de contexto, tendo como resultado uma mudança de papel, de ambiente ou de ambos.

Distinguem-se dois tipos de transição: a normativa e a não normativa. A transição normativa relaciona-se aos eventos esperados, ocorridos no ciclo vital do indivíduo ou de uma população definida, tais como: o ingresso na escola, o início da puberdade e/ou adolescência, a prestação do serviço militar, o casamento, entre outros. A transição não normativa, refere-se aos acontecimentos inesperados, que causam estresse individual ou familiar e são descritos como eventos de risco, tais como: gravidez na adolescência, morte ou doença grave na família, divórcio, mudança de residência, guerra, desemprego, migração, entre outros. Tendo como marco teórico a Teoria Bioecológica, percebe-se que a migração é considerada uma transição não normativa e certamente traz consigo várias consequências. De acordo com alguns autores como Falicov (2001) e Sluki (1997), a migração provoca um impacto decisivo no ciclo vital da família e da pessoa individualmente. O processo migratório acarreta as mais variadas consequências, em termos do comportamento individual dos seus integrantes, influenciando a configuração das relações, colocando novos significados entre os membros da família, enfim influenciando todo o desenvolvimento.

3. Metodologia

Em função dos objetivos propostos, optamos por uma pesquisa de natureza qualitativa, por possibilitar um conhecimento que ultrapassa os dados meramente estatísticos, priorizando o objeto de investigação, a partir do que é colocado pelos participantes e do significado que possui para os mesmos.

As metodologias qualitativas, de modo geral, privilegiam a análise de microprocessos sociais, individuais e grupais, realizando um exame intensivo dos dados em sua amplitude, profundidade e multiplicidade no momento da análise (Minayo,2004).

3.1 Participantes

Quanto ao critério de escolha dos participantes, foi usada a amostragem proposital, que também é denominada intencional ou deliberada (Turato, 2003). Os participantes da pesquisa foram doze no total, sendo seis jovens brasileiros, que migraram ainda crianças para a Suíça, possuem idade entre 18 a 25 anos, de ambos os sexos, que concluíram o nível médio de escolarização. Também participaram seis mães brasileiras que migraram há mais de dez anos, são casadas com europeus e levaram seus filhos para viver com elas. É importante ressaltar que as mães e os jovens não pertencem necessariamente à mesma família. Nas tabelas abaixo (Tabelas 1 & 2) são apresentados os dados sociodemográficos dos jovens e das mães. Nota-se que de modo geral os jovens são solteiros, não moram com os pais, e possuem profissão a nível médio. Já as mães participantes, todas com tempo de migração superior a 10 anos, tem filhos que migraram, bem como filhos que já nasceram no país destino.

Tabela 1: Dados Sociodemográficos dos jovens. 

Tabela 2: Dados Sociodemográficos das mães. 

3.2 Instrumentos

Com os jovens foi utilizado, como instrumento de pesquisa, a entrevista História de Vida, que tem como característica principal permitir que o participante retome suas vivências de forma retrospectiva. Esses relatos fornecem um material extremamente rico para a análise (Boni & Quaresma, 2005). As entrevistas revelaram as vivências, os percursos, os obstáculos pelos quais cada participante passou.

São dados que evidenciam histórias de trajetórias mescladas com sentimentos de saudades, medos, anseios e conquistas. Com as mães foi utilizada uma entrevista semiestruturada, com um roteiro específico contendo questões que visaram reconstruir a trajetória da migração e desenvolvimento de seus filhos na Suíça. Todos os participantes ainda responderam a um questionário com as informações sociodemográficos (dados nas tabelas 1 & 2).

3.3 Coleta e Análise de Dados

As entrevistas foram realizadas na Suíça. Antes de as iniciarmos, foi explicado a cada participante o objetivo da pesquisa e apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que garante o anonimato. Após a leitura e assinatura do termo, iniciamos a entrevista. O projeto geral foi aprovado pelo Comitê de Ética (CAEE:66930917.0.0000.5206). As entrevistas foram feitas individualmente, gravadas e depois transcritas. Vale ressaltar que os nomes utilizados são fictícios para preservar a identidade dos participantes.

Como procedimento da análise de dados foi utilizada a Análise de Conteúdo Temática (Minayo, 2019), todavia as categorias foram estabelecidas a partir dos diferentes sistemas que compõem o contexto de acordo com a Teoria Bioécologica. A análise seguiu as três fases propostas por Minayo (2019), que são pré-análise, exploração do material e interpretação. Desta forma, foram formadas categorias de análise para a interpretação dos dados de acordo com os ambientes do contexto propostos por Bronfenbrenner isto é, micro, meso, exo e macrossistema. Nesta pesquisa os sistemas em análise foram: o microssistema família e o microssistema escola; como mesossistema se apresentam as relações estabelecidas entre o microssistema escola e o microssistema família; o exosssistema se estabelece a partir do sistema escolar suíço; e, finalmente, o macrossistema que engloba a sociedade em geral do país de acolhimento.

4. Análise e Discussão dos Resultados

Foram levantadas quatro categorias de análise baseadas nos diversos sistemas que compõem o contexto da Teoria Bioecológica. À análise foi realizada, buscando compreender as transições e implicações do movimento migratório desde o micro até ao macrossistema. Deste modo, as entrevistas e os dados sociodemográficos foram analisados, trabalhados e, assim, integrados à luz da referida teoria, com o intuito de enfocar os diversos sistemas.

Microssistema. As crianças migrantes enfrentaram modificações em todos os microssistemas. A família em que estão inseridas, a mudança de escola, o que inclui mudanças de língua, professores e colegas. Os participantes, em sua maioria, ficaram com os avós, logo que a mãe migrou; mas, quando migraram, passaram a morar novamente com a mãe e com o seu novo parceiro. Algumas dificuldades apareceram como se vê na fala de Nilson. Em seu relato percebe-se a dificuldade no processo proximal como o padrasto.

Minha mãe conheceu, no Brasil, o marido dela e veio pra Suíça, e eu fiquei com o meu avô uns três anos. Quando ela mandou me buscar fiquei bem feliz, mas com muita pena de deixar meu avô. Na verdade, era eu quem cuidava dele. Chegar na Suíça não foi fácil, principalmente em casa tivemos muita dificuldade com o Uri (novo marido da mãe). Ele queria mandar na gente, não podia comer isso ou aquilo e tinha que ir pra escola a pé, mesmo se estivesse muito frio (Nilson). Meu marido era muito rígido com meus filhos. Aqui criança tem horário pra tudo: hora de dormir, de acordar, de escovar os dentes, de estudar, de brincar, enfim, de tudo. Como eles estavam com os meus pais no Brasil, sofreram muito pra se acostumar aqui (Mãe Bernadete).

Pode-se notar nos relatos como foi difícil para as crianças se acostumarem às novas regras, pois sabe-se que estas são bem diferentes quando se muda de cultura. Por exemplo, uma criança que é educada no Brasil é bem diferente de uma que é educada na Suíça, em termos de regras, limites, entre outros. Bronfenbrenner (1996) também se refere aos estilos de vida, costumes e crenças que permeiam todos os contextos. Logo, a cultura perpassa todos os ambientes do contexto. Segundo Vélez-Agosto, Crespo e Oppenheimer (2017), a cultura transita desde o macrossistema até o microssistema. Em termos do microssistema escola, as dificuldades apareceram em vários níveis, seja na nova língua, com os colegas de classe e em alguns casos até com os professores, como se vê no seguinte depoimento.

Na escola eu fui pra uma classe especial, que junta crianças de muitos lugares para aprender alemão e depois de um ano fui para a escola normal. Nesta sala foi bom, mas quando fui transferido pra classe normal, fui muito discriminado. Não conseguia fazer amigos porque não falava direito, na pausa ficava sozinho. Parecia que, às vezes, até a professora ria do meu alemão (Nilson).

No relato percebe-se que quando Nilson estava junto às crianças estrangeiras, os processos proximais ocorreram de forma natural. Ao mudar para outra sala com crianças nativas é que as dificuldades apareceram. Em alguns casos os professores também apresentam dificuldades com alunos migrantes. Existe preocupação no sentido de que alguns professores não estejam adequadamente preparados para atender às necessidades específicas das crianças migrantes e para tratá-las de forma justa, sem preconceitos implícitos (Collicelli, 2001). Berger, em uma entrevista concedida a Zehnder (2018), afirma que uma criança que não conhece a língua local precisa de, em média, dois anos para poder se comunicar com facilidade. E para alcançar o nível de proficiência, como ocorre na língua materna, são necessários de cinco a sete anos. Diante desse fato, só aos poucos é que a criança migrante vai conseguindo se comunicar e estabelecer processos proximais positivos no microssistema escola.

Mesossistema. O mesossistema que inclui as relações entre família, escola, amigos e vizinhos também sofreu várias mudanças. As relações da família com a escola são muitas vezes mediadas pela mãe, que nesta pesquisa são brasileiras e muitas vezes elas próprias têm dificuldades com a língua. Neste sentido, a língua dificulta essa relação entre família e escola. Outra dificuldade é a falta de conhecimento sobre como o sistema escolar funciona, o que leva muitas mães a se surpreenderem quando os filhos são colocados em escolas profissionalizantes, que não fornecem, pelo menos de forma direta, acesso à universidade, como se verifica nas seguintes falas:

Quando minha mãe soube que eu ia pra escola secundária, e isso aqui já se decidia na quinta série, ela até pensou em me mandar de volta. Chegou até a perguntar lá na minha antiga escola (no Brasil) como seria, mas lá disseram que eu ia ter que repetir tudo. Hoje eu sou garçom, mas estou perto da minha mãe (Danilo). Meus filhos não conseguiam falar as palavras com sch, por exemplo, e por isso tiveram algumas dificuldades com alemão, e como aqui se decide tudo muito cedo na escola, eles foram para a escola secundária, o que é comum aqui (Mãe Celia).

Para as mães, as dificuldades estão em manter o relacionamento com a escola em função da língua e também em ajudar os filhos com as tarefas escolares. Acrescente-se a isso o fato de que geralmente não conhecem bem o sistema escolar e só se dão conta depois, que o futuro profissional se decide muito cedo. Na maioria das vezes, essa descoberta se dá muito tarde para mudar o curso dessa história. Lamberti, fundadora de uma associação para apoiar pais e filhos migrantes, em entrevista concedida a Tinoco (2018), explica que pais que não estejam familiarizados com o sistema suíço ou que ainda não falem o alemão terão, provavelmente, menos condições de apoiar os filhos. Lamberti inclusive aconselha aos pais: intervenha o quanto antes, busque ajuda desde o início, se necessário. Se houver dificuldade em alguma matéria, busque ajuda extra.

O futuro profissional começa desde a base. Segundo Mainardi (2005), muitas brasileiras dizem que não só é difícil ser mãe, mas, até mesmo, ser mulher. Na Suíça elas se sentem totalmente responsáveis pela educação dos filhos.

Ao longo do processo de integração no país de acolhimento, mães e filhos vão adquirindo novos pensamentos, como vemos no depoimento dado por Birrer (2014) em um blog chamado “Mamães da Suíça”. Ela diz: “não acho que todos tenham que cursar uma faculdade, mas acho importante que eles tenham mais possibilidades de escolha.” Por outro lado, ela também afirma que admira que “as profissões como pedreiro, pintor e eletricista, entre outras, são respeitadas e propriamente ensinadas”.

Exossistema. Nesta pesquisa, podemos citar como exossistemas que interferem diretamente na vida das crianças migrantes, as leis de imigração e o sistema escolar do país de acolhimento. Percebe-se como o sistema escolar influenciou o percurso da vida dos participantes da pesquisa, uma vez que todos possuem uma profissão ao nível médio.

O mais difícil é que eu tinha sonho de ser médico e aqui eu só consegui ir pra escola profissional. Eu tive que escolher umas das profissões que dava pra mim. Hoje eu sou cozinheiro e hoje gosto do que faço (Nilson).

Algumas mães brasileiras que levaram os filhos, desejando para eles um futuro melhor, quando confrontadas com o sistema educacional suíço, ficam confusas. Muitos adolescentes veem o seu sonho profissional ruir muito cedo, dependendo do seu rendimento escolar, culminando na ida para a escola de nível técnico ou profissional. Os filhos de pais migrantes, em geral, não conseguem as melhores colocações. Considerando-se todos esses aspectos, vê-se como o sistema escolar influenciou a vida dos participantes levando-os a cursarem escolas secundárias e possuírem profissões de nível médio, que, em alguns casos, não eram desejadas inicialmente.

Macrossistema. O macrossistema é formado pelos elementos da cultura em que a pessoa está imersa, influenciando assim todos os outros sistemas. A influência ocorre porque esses elementos determinam como os outros sistemas podem ser expressos. Deste modo, as crianças, agora jovens, se adaptaram à cultura em que vivem, embora tenham algumas ligações com a cultura de origem. Nota-se, por exemplo, que diferentemente de filhos brasileiros que permanecem na casa dos pais por muito tempo, quase todos os participantes já moram sozinhos, com amigos ou companheiros, e são independentes financeiramente, como pode-se constatar no seguinte depoimento:

Eu e minha irmã somos cabeleireiras. Essas são as oportunidades que temos aqui. Mas eu consigo pagar minha despesas, morar sozinha. Porque minha mãe hoje em dia mora com outro companheiro, e aqui a partir dos dezoito anos cada um segue sua vida (Nanda).

Pode-se considerar que as crianças que nasceram no Brasil e cresceram na Suíça possuem em sua identidade aspectos biculturais. Constata-se que existem mais aspectos na identidade da cultura em que estão inseridos, mas que alguns aspectos da cultura de origem permaneceram. Atualmente pessoas com identidades multiculturais têm se tornado cada dia mais comuns, o que se deve ao crescente número de famílias interculturais.

Ah eu nem sei. Você nunca é um só porque tudo seu acaba se misturando. Seja no jeito assim... por exemplo, aqui dizem que sou muito aberta, extrovertida e sorridente para uma suíça e lá eu sou pontual demais para uma brasileira. Então é os dois... tudo meu tem um pouco dos dois. O jeito de se expressar ou de se vestir... por exemplo, sempre ando com meu chaveiro do Brasil, aí o pessoal já pergunta se torço pelo Brasil, e aí acabo dizendo que sou do Brasil também. É engraçado porque você acaba percebendo quem é assim, de dois lugares, porque acaba tendo um jeito diferente, multicultural assim. Acho muito legal conhecer outras pessoas assim, de dois países como eu (Elena).

5. Considerações Finais

A Teoria Bioecológica nos forneceu subsídios para compreender o desenvolvimento das crianças migrantes em um contexto bastante amplo. Os processos proximais sofreram alterações na família, na escola, na vizinhança, entre outros, notando-se sua presença nos diversos sistemas. A criança precisa se adaptar à todas essas mudanças, ou seja, trata-se de uma transição não normativa que pode produzir estresse. Ao longo do desenvolvimento, elas também vivem transições normativas no país de acolhimento e passam pela adolescência, momento em que buscam uma identidade e também fazem sua escolha profissional.

Ao ampliar o olhar para mais um sistema, percebemos que o sistema escolar suíço influenciou bastante o curso de vida dos participantes, uma vez que todos eles têm uma profissão de nível médio, caracterizando o exossistema. A nível de mesossistema, as relações entre família e escola, a princípio, foram difíceis. As mães que faziam a mediação apresentaram duas dificuldades principais: a língua e o não conhecimento do sistema escolar. Os microssistemas família e escola passaram por mudanças radicais. A criança, por sua vez, foi buscando se adaptar à nova situação, vencendo crises e dificuldades para integração do novo em sua vida.

Para as crianças que nasceram no Brasil e cresceram na Suíça, ou seja, em dois macrossistemas com culturas bem diferentes, o tempo foi essencial. No passado, muitas dificuldades foram vencidas, ao mesmo tempo em que um leque de possibilidades se abriu. Hoje, pode-se dizer que os jovens são capazes de transitar entre duas culturas. Essas crianças migrantes, hoje os jovens biculturais, com identidades híbridas, trazem consigo uma nova forma de ver o mundo e assim um potencial para muitas mudanças.

Portanto, verificamos que a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano se mostrou muito pertinente para a compreensão da trajetória das crianças migrantes no país de acolhimento, uma vez que amplia o nosso olhar sobre o fenômeno o alocando em diversos sistemas. Desse modo, podemos compreender o desenvolvimento como um processo multideterminado e atravessado por fatores contextuais e individuais que envolvem a pessoa.

Consideramos que o presente artigo se constitui como um ponto de partida, vislumbrando-se à possibilidade de outras pesquisas como: ouvir os professores e os profissionais que lidam com as crianças migrantes na Suíça; entrevistar pais e crianças inseridas em outras culturas que não a Suíça, bem como estimular iniciativas que possam oferecer um maior suporte às crianças e às famílias migrantes.

Agradecimentos

Agradecemos a CAPES por financiar a presente pesquisa.

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Recebido: 18 de Março de 2021; Aceito: 28 de Abril de 2021

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