1. Introdução
Em decorrência do contexto da saúde pública no Brasil nas décadas de 1970 e 80, surge a necessidade da criação de um sistema único de atenção à saúde da população. É aprovado em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, o Sistema Único de Saúde (SUS), baseado em princípios da universalidade, integralidade e equidade (Freitas & Santos, 2014). Com a implementação do SUS foi criado, em 1994, o Programa Saúde da Família como uma estratégia de reorientação do modelo assistencial na Atenção Primária à Saúde (APS), a fim de reestruturar as ações e instituir novas práticas de saúde (Silveira et al., 2016).
Posteriormente, tornou-se Estratégia Saúde da Família (ESF), com o papel de implementação da atenção primária em saúde e mudança do modelo de cuidado vigente no país.
Propõe alteração do paradigma de organização e implementação do cuidado, o qual está focado nas doenças, baseado no hospital como espaço de resolução maior dos problemas de saúde, para o de promoção de saúde, prevenção de doenças e cuidado às doenças crônicas e baseado no território de abrangência das Unidades de Saúde (US) (Silveira et al., 2016).
As equipes da ESF são compostas por um enfermeiro, um médico, um auxiliar de enfermagem, cirurgião dentista, o técnico de saúde bucal e de quatro a seis agentes comunitários de saúde (Paula et al., 2014). O profissional enfermeiro na APS estrutura seu processo de trabalho em cinco dimensões, sendo essas complementares e interdependentes: assistência, gerência, ensino, pesquisa e participação política. Dentre as atribuições do enfermeiro na ESF pode-se citar a realização do cuidado integral atuando na promoção e proteção da saúde, diagnóstico, tratamento, reabilitação da saúde dos indivíduos e famílias, por meio de atividades como a realização da consulta de enfermagem e solicitação de exames complementares (Freitas & Santos, 2014).
A sistematização é um método que facilita, organiza e agiliza o trabalho dos enfermeiros na ESF e se constitui em um instrumento metodológico dinâmico e inovador essencial para orientar a prática da enfermagem e está prevista pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEn), na Resolução COFEn nº 358/2009 como Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE) (Resolução n. 358, 2009).
Essa resolução reforça a importância de planejar o cuidado em enfermagem e dispõe que sua implementação deve ocorrer nas dimensões do cuidado individual e coletivo e em todas as instituições de saúde, públicas ou privadas, a fim de nortear o trabalho do enfermeiro na ESF e atender os princípios do SUS (Resolução n. 358, 2009).
A SAE é viabilizada de diversas maneiras, sendo uma delas o Processo de Enfermagem (PE), o qual é composto pelo diagnóstico, intervenções e resultados de enfermagem, podendo ser registrado, dentre outras formas, a partir de um Sistema de Classificação em Enfermagem, veiculado em linguagem padronizada (Barros et al., 2020).
Uma etapa importante no PE é o registro do processo de cuidado. Na sua implementação faz-se necessária a documentação do trabalho, que está prevista na resolução Nº 429/ 2012. Esse documento dispõe sobre os registros do cuidado, sendo de responsabilidade dos profissionais realizar esse registro no prontuário do paciente, seja em meio eletrônico ou impressos do próprio serviço (Resolução n. 429, 2009). Além disso, o registro se costitui um dever ético e legal (Resolução n. 564, 2017).
Essa documentação se mostra como uma ferramenta fundamental para o cuidado integral e interprofissional, uma vez que sua existência e qualidade são essencias para a comunicação entre os profissionais.
No entanto, dificuldades foram encontradas pelos enfermeiros para executar o PE, destacando-se a falta de entendimento do método, a desvalorização do processo de pensamento clínico por parte dos profissionais no cotidiano, a grande demanda de trabalho, bem como o acúmulo de funções no serviço de saúde refletem diretamente no cuidado realizado, tendo desdobramentos do nível de segurança das práticas realizadas com o paciente e na efetividade das ações (Oliveira et al., 2020). A partir do exposto, questiona-se como os enfermeiros da ESF têm realizado a SAE e o PE.
1.1 Referencial Teórico
No processo de trabalho constituído na ESF o cuidado deverá estar alicerçado a partir de práticas fundamentadas no princípio da integralidade. Considera-se que esse ocorra quando as necessidades de saúde das pessoas, famílias e comunidade estão como objeto central do trabalho da equipe, indo além das necessidades biológicas, mas abarcando a complexidade da vida. A equipe trabalha considerando as necessidades tendo definido um território e população adstrita, buscando construir uma relação de vínculo e confiança (Santos et al., 2018).
O trabalho interprofissional em equipe representa um dos pilares da assistência integral. A abordagem integral pode ser facilitada pela articulação de diferentes olhares dos diversos profissionais que compõem a ESF (Viegas & Penna, 2013).
2. Objetivo
Objetivou-se analisar como os enfermeiros realizam a sistematização da assistência em enfermagem (SAE) na Estratégia Saúde da Família.
3. Metodologia
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo exploratória e descritiva, que tem como intenção compreender os significados, as crenças, os valores, as percepções, as opiniões e a forma de pensar em sociedade (Minayo, 2014).
O cenário de pesquisa se dá em um município do centro-oeste do Estado de São Paulo, Brasil. Sua população é de aproximadamente 217 mil habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2010). A cidade é considerada referência estadual em saúde.
As unidades da ESF representam o cenário da pesquisa, levando-se em consideração que há um investimento do MS em realizar mudanças na APS e a ESF tem sido o modelo escolhido para que as atividades sejam realizadas.
Há no município 50 enfermeiros atuando nas ESF e UBS, distribuídas nas regiões norte, sul, leste e oeste. Trabalhou-se com uma amostra intencional, na qual um subgrupo participará da investigação, que será representativo do todo.
Considerando-se as características das unidades e as regiões do município, utilizou-se, portanto, como critério de inclusão dos participantes: serem enfermeiros contratadas e atuando há pelo menos um ano nas unidades ESF da SMS; estar trabalhando nas ESF no período de coleta de dados; selecionar as profissionais considerando a distribuição nas unidades de saúde das regiões de saúde (norte, sul, leste e oeste, inclusive as unidades da região rural).
Como critérios de exclusão: estar atuando a menos de um ano nas unidades da ESF e estar ausente por motivos de férias, licenças ou outros no período de coleta de dados.
Do total de 38 enfermeiros atuantes, selecionou-se 19 participantes, de acordo com a distribuição proporcional por região de saúde do município. Dentre esses, 18 estão inseridos nas equipes e um faz a substituição dos profissionais em situações de afastamento. Todos os enfermeiros são do sexo feminino, com idade entre 30 e 51 anos, com média de 38,2 anos.
Dentre os entrevistados apenas um não possui pós-graduação, os outros possuem nas áreas de saúde da família, saúde pública, saúde coletiva, educação e saúde, saúde mental, urgência e emergência, administração de serviços de saúde, enfermagem do trabalho, envelhecimento, saúde e envelhecimento, preceptoria, gestão em saúde, unidade de terapia intensiva, formação didático pedagógica.
Atuam na ESF num período entre três e 20 anos, com média de 12 anos, aproximadamente. Já o tempo de atuação na APS varia entre três e 20 anos, com média de 11,8 anos.
A coleta dos dados foi realizada por meio de entrevista semi-estruturada. Utilizou-se um roteiro para auxiliar a condução da entrevista, sendo composto de perguntas abertas, relacionadas a descrição de uma situação de cuidado realizado na unidade da ESF, como organiza e sistematiza o cuidado realizado e quais os aspectos que destacaria de como realiza a sistematização.
Os dados foram coletados no período de abril a maio de 2018, por uma única pesquisadora, tendo as entrevistas duração de 05:08 a 29:13 minutos, em média 13:11 minutos. Iniciou-se a coleta solicitando aos participantes a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, respeitando procedimentos previstos na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012).
O trabalho de campo realizou-se após a aprovação do projeto no Conselho Municipal de Avaliação em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Marília e no Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA), sendo aprovada pelo Parecer 2.517.766.
O tipo de análise que utilizou-se notrabalho é a análise de conteúdo, na modalidade temática, segundo Minayo (2014). A análise se constitui de três etapas. A primeira é chamada de pré-análise que se compõe abordagem do material analisado, retomando as hipóteses e os objetivos iniciais do trabalho. Ainda na pré-análise realizou-se uma leitura flutuante para tomar como posse todo material resultante da coleta, para então ter a constituição do corpus. Trabalhou-se a partir de alguns pontos: exaustividade, considerando que o material contemple todos os aspectos levantados no roteiro; a representatividade seria conter características essenciais do universo compreendido; homogeneidade que siga os critérios precisos de escolha quanto aos temas tratados, as técnicas empregadas e os atributos dos interlocutores e por último a pertinência que os documentos analisados sejam adequados para dar resposta aos objetivos desse presente trabalho.
A segunda etapa consistiu-se na exploração do material, que se resume basicamente ao investigador buscar encontrar categorias que são expressões ou palavras significativas em função das quais o conteúdo de uma fala se organiza. A categorização consiste num processo de redução do texto às palavras e expressões significativas (Minayo, 2014).
E na terceira etapa realizou-se a discussão e interpretação dos dados a partir do referencial de educação, cuidado e integralidade (Minayo, 2014).
Para que a identificação dos participantes se mantivesse preservadas, os fragmentos das falas são representados pela letra “E” e o número da entrevista. Ex: E1, E2, E3, ... E19.
4. Resultados
A seguir serão apresentados os fragmentos das falas dos entrevistados agrupados a partir dos núcleos de sentido e temas.
5. Discussão
A prática do enfermeiro na ESF, no Brasil, tem proporcionado ações no âmbito do cuidado individual e coletivo, além da gestão para o cuidado. No âmbito do cuidado individual realiza consultas, procedimentos e, ao seguirem os protocolos municipais, estaduais e federais é possível fazer requisição de alguns exames, efetuar encaminhamentos, prescrever alguns medicamentos e renovação de receitas, o que proporciona uma certa autonomia do profissional enfermeiro frente ao cuidado na APS (KAHL et al., 2018).
A partir da investigação captou-se que o cuidado pode ser efetuado nos momentos do acolhimento, da consulta de enfermagem com pacientes hipertensos, diabéticos, criança, gestante, na realização da coleta do exame de Papanicolaou, do teste rápido para detectar sífilis ou HIV. Percebe-se que esse profissional pode ser referência para o usuário no serviço de APS, com construção de vínculo, tendo-se a percepção de qual é a prática realizada pelo enfermeiro nesse serviço.
Realiza-se o cuidado considerando os seguintes movimentos: primeiro olha na agenda do e-SUS para ver se a paciente chegou, pode começar pelo acolhimento que foi realizado pelo auxiliar de enfermagem ou inicia direto com o enfermeiro, verifica a necessidade de agendamento ou intervenção, podendo agendar consulta para outro momento. Descreve-se que, dependendo da situação, retomam os dados escritos no prontuário, coleta história da pessoa, seus dados principais, mas esses dados, muitas vezes, estão direcionados para a queixa.
Em algumas situações os entrevistados consideram a história da pessoa no momento, a parte social, dados de identificação, como o trabalho é realizado, uso de medicação, se está com a vacinação em dia. Porém, alguns participantes fazem a história completa. Realiza-se exame físico direcionado para a queixa, faz-se a conexão dos dados com o exame físico, levanta-se os problemas e/ou necessidades de saúde, como também se trabalha com o diagnóstico de enfermagem do paciente. Verifica-se e se discute a necessidade de conduta a ser tomada junto ao médico. Assim, realiza-se a prescrição de enfermagem, orientações gerais e das medicações, se necessário, dá a conduta no momento embasada em protocolos, mas também, pode-se dialogar com o paciente para dar a conduta.
A prática clínica desde o século XX se estrutura no olhar objetivo-materialista, em um modelo biologicista, focado no orgânico. De acordo com Fertonani et al. (2015), a implementação de um modelo de atenção à saúde em sintonia com os princípios do SUS, orientado para a integralidade e as necessidades ampliadas de saúde, é um dos grandes desafios. A sua conformação resulta de um processo histórico-social, dinâmico e multifactorial, sendo influenciado por determinantes macro e microssocial. Envolve as concepções de saúde e de direito à saúde, sendo influenciado pelo paradigma hegemônico de ciência. Convive-se com movimentos de avanços, conflitos ou conservação de um determinado modelo influenciados pelas disputas dos interesses dos diversos atores que atuam no cotidiano do trabalho em saúde.
Na investigação realizada há indícios de que há tentativas de se realizar o cuidado na perspectiva da integralidade, com contrução de vinculo, realizando a prescição de enfermagem de forma dialogada com o medico e com o usuário do serviço. Porém, também está presente uma prática voltada para o modelo biomédico, com pouca ampliação da conduta, estando voltada para a queixa da pessoa.
Realizam a sistematização do cuidado utilizando os referenciais de necessidades de saúde, CIPESC e o North American Nursing Diagnosis Association-International (NANDA). Citam que seguem os passos da sistematização da NANDA, enquanto raciocínio clínico no cuidado, mas nos resultados não fica claro se estabelecem os diagnósticos segundo o mesmo. Utilizam a Classificação Internacional das Práticas de Enfermagem em Saúde Coletiva (CIPESC) e as necessidades de saúde para construir os diagnósticos.
No entanto, percebe-se pelos resultados da pesquisa que não há uma diretriz a ser seguida pelos profissionais para realizar a SAE e o PE no município pesquisado.
A sistematização a partir de NANDA, taxonomia norte americana muito utilizada e conhecida no serviço brasileiro, associada às etapas de sistematização, requer conhecimento clínico, realização de diagnóstico, intervenções e resultado. De acordo com Herdman et al (2017) entende-se por diagnóstico, o julgamento clínico sobre a resposta de um indivíduo, uma família ou uma comunidade com relação a problemas de saúde reais ou potenciais/ processos de vida que fornecem a base para uma terapia definitiva que busca alcançar resultados nos quais a enfermagem é necessária.
A CIPESC surge a partir de um projeto desenvolvido pela Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), no período de 1996 e 2000. Cavalcante et al. (2016) identificaram que os enfermeiros não tinham conhecimento sobre o vocabulário CIPESC antes da sua implantação informatizada, ficando vinculado à curiosidade dos enfermeiros.
No cenário pesquisado, as equipes e os enfermeiros da APS trabalham com o prontuário eletrônico do cidadão (PEC) desde 2016. No PEC utiliza-se a Classificação Internacional de Atenção Primária (CIAP) para elencar os diagnósticos (World Organization of Family Doctors, 2009).
Os enfermeiros apoiam-se no CIAP para elaborar os problemas/diagnósticos da pessoa atendida, considerando o que tem mais correlação com o que a pessoa está apresentando, mas sentem limites ao utilizarem essa classificação, por ser um instrumento novo para a sistematização e registro do cuidado para todos os profissionais da equipe.
Sendo o PEC e a CIAP instrumentos recentes de organização e registro na APS no município investigado, percebe-se que não há clareza, por parte dos enfermeiros, do manuseio do sistema, de suas bases teórico e organizacional, considerando que estão aplicando diversos referenciais na realização da SAE e PE.
Desde a década de 70, o Comitê de Classificação da World Organization of Family Doctors (WONCA) percebeu inadequação na classificação das situações de saúde dos usuários somente a partir das doenças. Visando resolver este problema, a WONCA criou a Classificação Internacional de Problemas de Saúde em Atenção Primária (CIPS). Essa classificação ocorre a partir dos motivos da consulta. Com as modificações de bases teóricas, acrescentou-se diagnósticos a partir dos problemas na perspectiva do paciente, surgindo a CIAP, estando orientada para o paciente, e não para a doença ou para o profissional de saúde (World Organization of Family Doctors, 2009).
Percebe-se que o uso e o registro do cuidado a partir do e-SUS e do PEC ainda é recente, necessitando do envolvimento dos gestores e formação dos profissionais para utilizar o sistema com clareza de seus referenciais e recursos (Gontijo et al., 2021).
6. Conclusões
Verificou-se por meio da análise temática, que os enfermeiros, na ESF, realizam o cuidado na perspectiva do modelo biomédico, mas existem tentativas de se ampliar as práticas na lógica da integralidade abordando as necessidades de saúde.
Os enfermeiros ao realizarem a SAE e o PE têm dificuldades quanto a realização da sistematização do cuidado em enfermagem, utilizando diversos referenciais como CIPESC, NANDA e necessidades de saúde. Com a adoção a implantação do e-SUS e do PEC novos desafios surgiram, de forma que há necessidade de os profissionais compreenderem os referenciais adotados e como trabalhar com a SAE e PE nesse novo Sistema de registro das informações.
Nesse sentido, percebe-se a necessidade de se constituir um plano para estabelecer estratégias e formação junto aos enfermeiros e gestão da APS, para que a sistematização do cuidado tenha diretrizes e um referencial a ser seguido, considerando a prática interprofissional e os princípios do SUS.