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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.10  Oliveira de Azeméis jun. 2022  Epub 01-Jul-2022

https://doi.org/10.36367/ntqr.10.2022.e523 

Artigo Original

Constituição de dados na pesquisa qualitativa de abordagem fenomenológica: desafio ao pesquisar qualitativo em meios digitais

Data constitution in qualitative research with a phenomenological approach: challenge in qualitative research in digital media

Maria Aparecida Viggiani Bicudo1 
http://orcid.org/0000-0002-3533-169X

Luciane Ferreira Mocrosky2 
http://orcid.org/0000-0002-8578-1496

Nelem Orlowski3 
http://orcid.org/0000-0002-1426-9671

Josiel de Oliveira Batista4 
http://orcid.org/0000-0002-3030-8992

Marilize Nogas Pudelco3 
http://orcid.org/0000-0003-3410-7773

1 Universidade Estadual Paulista (UNESP), Brasil

2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Brasil

3 Prefeitura Municipal de Curitiba,Brasil

4 Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), Brasil


Resumo:

Neste artigo discutimos desafios que vimos enfrentando na pesquisa qualitativa de abordagem fenomenológica, conduzida a distância, com o uso de recursos tecnológicos digitais. Para isto, trazemos a descrição e a discussão de trabalhos em desenvolvimento no âmbito dos grupos Fenomenologia em Educação Matemática (FEM) e no de Estudos e Pesquisa em Formação de Professores (GEForProf). Nestes trabalhos discutem-se possibilidades e modos pelos quais os encontros foram promovidos entre pessoas, bem como nosso estilo de produzirmos pesquisa qualitativa de abordagem fenomenológica, estando à distância, por meio da escuta. Concluímos que os modos de estar juntos a distância solicitou produzir recursos formativos e criar vínculos que sustentassem encontros capazes de manterem-se na continuidade programada das pesquisas.

Palavras-chave: Pesquisa qualitativa; Fenomenologia; Escuta; Intervenção Baseada em Internet.

Abstract:

In this article, we discuss challenges that we have been facing in qualitative research with a phenomenological approach, conducted at distance, using digital technological resources. For this, we bring the description and discussion of work in progress within the Phenomenology in Mathematic Education s (FEM) and Study and Research in Teacher Formation (GEForProf) groups. These works discuss possibilities and ways in which meetings were promoted between people, as well as our style of producing qualitative research with a phenomenological approach, being at a distance, through listening. We concluded that the ways of being together at a distance required the production of training resources and the creation of links that would support meetings capable of maintaining the programmed continuity of research.

Keywords: Qualitative research; Phenomenology; Listening; Internet-Based Intervention.

1.Introduction

No grupo Fenomenologia em Educação Matemática (FEM) e no de Estudos e Pesquisa em Formação de Professores (GEForProf), onde vimos desenvolvendo nossas investigações, vem se destacando pesquisas na região de inquérito da Educação Matemática e suas variações no Ensino, como uma área em que congregamos as vertentes em Matemática e Ciências. Independente da direção tomada, todas têm sido conduzidas mediante procedimentos da pesquisa qualitativa (Bicudo & Paulo, 2011; Bicudo, 2012), que em sua maioria vai ao encontro de pessoas, sejam professores, alunos ou outros pesquisadores, em busca de compreensões do vivido e dos conhecimentos que nós, seres humanos, produzimos ao habitar o mundo-vida. Nesse trajeto, são levantadas algumas inquietações sobre possibilidades de produção de dados com tecnologias digitais, por exemplo, quando são realizados encontros síncronos ou assíncronos em salas virtuais. É comum pensarmos em modos de condução, mas não nos demoramos em propostas, entendendo que estas poderiam esbarrar em questões éticas e afetar o rigor investigativo. É o caso de observar se há necessidade de garantia de sigilo dos dados, quando produzidos na dependência de uma rede de internet, pois qualquer participante poderia compartilhar as vivências ali registradas. Sobre esse aspecto, o Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos (CEP) na resolução nº 466/12 e na Carta Circular nº 1/2021-CONEP/SECNS/MS sinaliza a necessidade de preservação dos dados pelo compromisso assumido entre pesquisadores e participantes. Outro fator que se destaca como preocupante no momento de elaboração dos projetos de pesquisa, é o que diz respeito à condição de presença física do participante, que poderia ficar mascarada pelas lentes do virtual, interferindo em modos de escuta que buscam aprofundar elementos qualitativos desvelados pelo encontro. O cenário pandêmico nos tirou a possibilidade de ficar fisicamente juntos, mas trouxe outra forma de estar com o outro: entre-vistas viabilizadas pelas tecnologias digitais, juntos à distância, nos fazendo pré-sença. A pré-sença foi considerada neste texto para lançar luz às TD como possibilidades, portanto, como abertura para a compreensão do mundo e do como vimos sendo no mundo. A intencionalidade da escolha se deve ao estar presente, de forma que se torna parte de nós, mas também o termo pré, no sentido daquilo que antecede, que vem antes, abrindo caminho e, assim, permanecendo (Batista et al., 2021, p. 13). Nos últimos dois anos “a distância” foi se mostrando como alternativa de estar “em campo” investigando, ou seja, pelo imediatismo do possível em nossas condições históricas, a pesquisa a distância se fez presença e se presentificou no ciberespaço. Como Bicudo, (2009), não nos referiremos ao “estar no ciberespaço como um modo de ser presença virtual, mas tão somente como uma das possibilidades de a presença se tornar ao ser lançada ao mundo” (p. 141). No contexto pandêmico, para continuarmos pesquisando foi necessário enveredar por novos meios em que o encontro fosse possível. Reiteramos nosso entendimento de que a pesquisa em meios digitais já existia e acontecia anteriormente ao cenário pandêmico, mas com ele houve uma intensificação, onde o que estava presente, se mostrou como presença com todos os seus determinantes histórico-filosóficos, requerendo a busca por modos de pesquisar qualitativos exclusivamente no meio digital. Estar com pessoas, pesquisando e produzindo conhecimento, esteve determinado pela condição da distância e pela possibilidade digital, assim como, nos demais aspectos de nossas vidas, durante o período de isolamento social em que fomos lançados, em um novo modo de viver que, nos levando ao estranhamento, nos mobilizou a fazermo-nos presença e de nos mantermos presentes sem o encontro físico. Como nos referem alguns autores (Ribeiro et al., 2021, p. 02): “uma das características do espírito do tempo que estamos vivendo, desde que o isolamento social foi utilizado para conter o avanço do COVID-19, é a necessidade imediata de adaptação”.

Para além da adaptação, vista por nós como um processo de a pessoa se moldar ao dado, houve necessidade de atualizar modos de ser pesquisador e de produzir pesquisa de caráter qualitativo, em que o distanciamento não é tão somente uma opção, porém uma condição a ser satisfeita. Nesse cenário, colocamo-nos alguns questionamentos. Como encontrar nossos pares para esclarecimentos e produção de dados num momento de distanciamento social? Como o que vem sendo produzido nos abre a diferentes discussões acerca do pesquisar qualitativo com tecnologias? Como constituir dados, nos mantendo entre-vistas com participantes, em ambientes cuja lógica de funcionamento é o estar perto, mesmo que longe? Quais os princípios éticos que regem essa forma de nos lançarmos à pesquisa qualitativa e estarmos com o outro em ambientes virtuais? Este trabalho se propõe a discutir e descrever desafios que vimos enfrentando na pesquisa qualitativa à distância com os meios digitais. Lançamos luz às possibilidades de estar com o outro à distância; ao modo pelo qual os encontros foram promovidos entre pessoas; ao modo pelo qual quando nos encontramos, produzimos pesquisa qualitativa de abordagem fenomenológica, estando à distância. Os dados apresentados são oriundos de três pesquisas em andamento que têm em comum a escuta atenta ao outro por meio de entre-vistas mediadas pelas tecnologias digitais. Na primeira parte trazemos alguns aspectos da pesquisa qualitativa de abordagem fenomenológica. Na segunda, descrevemos os desafios que nossos grupos de estudos vêm enfrentando, bem como como a maneira pela qual vimos dando conta da constituição dos dados. Fazemos isso ilustrando com nossas produções que têm como fio condutor o estar-com as pessoas por meio das tecnologias digitais. Como em Heidegger (1987), para nós ‘fio condutor’ aqui diz dos modos de enunciabilidade que “conduzem o olhar em direcção à determinação da presença, quer dizer, em direcção ao Ser dos entes” (p.71).

2.Pesquisa qualitativa de abordagem fenomenológica

Consideramos o enfoque à pesquisa qualitativa em que se assume procedimentos oriundos de modos de ver e de conhecer a realidade por pensadores que têm sido denominados fenomenólogos. Ou seja, pesquisamos qualitativamente entendendo a Fenomenologia como um pensar filosófico que tem se configurado como uma linha, originada nos trabalhos de Edmund Husserl (1859-1938), seguido por filósofos como Heidegger (1889 - 1976), Gadamer (1900 - 2002), Merleau-Ponty (1908 - 1961). Com isso, estamos afirmando que “há autores cujas trajetórias filosóficas se movimentam no solo das ideias fenomenológicas, avançando em termos de trabalhar com a complexidade mediante a qual nossa realidade mundana se mostra” (Bicudo, 2012, p. 22).

Nesse modo de compreendermos pesquisa e nos compreendermos pesquisadores, é importante que, já de início, coloquemos de modo claro a pergunta condutora da investigação, apontando para o fenômeno que queremos conhecer. Este, por sua vez, não é objetivamente dado, mas se mostra da perspectiva do olhar do investigador, a qual não esgota seus modos de aparecer. Ficar atento a essa característica, faz parte do rigor sistemático de proceder.

Compreendemos que a abordagem fenomenológica requer um pensar articulador, não cumulativo, no sentido de que não há como repetir os procedimentos investigativos tal e qual foram desenvolvidos em pesquisas semelhantes. Isso porque esse pensar articula nuanças nos modos de a qualidade se mostrar, cujos modos são descritos, analisados e interpretados. Com isso, “Não se obtém verdades lógicas sobre o investigado, mas indicações de seus modos de ser e de se mostrar. Obtêm-se, portanto, generalidades expressas pelas convergências articuladas” (Bicudo, 2012, p. 19). Modos esses que podem se evidenciar diferentemente entre pesquisadores. Tais considerações se acentuam ainda mais quando nos posicionamos como membros de grupo de pesquisa em que se investiga prioritariamente produções ou pessoas envolvidas com a Educação e com a Educação Matemática. Isso porque, nesse caso, o que se revela como estrutural insere-se e movimenta-se no estar com o outro, tomado como sujeito significativo . Essa postura caracteriza a pesquisa qualitativa fenomenológica e acarreta compromisso ético com os envolvidos. Trata-se de

um modo de proceder que permite colocar em relevo o sujeito do processo, não olhado de modo isolado, mas contextualizado social e culturalmente; mais do que isso e principalmente, de trabalhar concebendo-o como já sendo sempre junto ao mundo e, portanto, aos outros e aos respectivos utensílios dispostos na circunvizinhança existencial, constituindo-se, ao outro e ao mundo em sua historicidade (Bicudo, 2012, p. 16).

Desse modo, conduzimos nossas pesquisas procedendo qualitativamente, tendo no horizonte o envolvimento entre pessoas, que compreendem que o sentido do mundo e tudo que nele há é dado ao sujeito, corpo-vivente, entrelaçado à sua historicidade, constituída no estar com o outro. Nesse sentido, a “Fenomenologia se mostra apropriada à pesquisa na área da Educação, pois considera o ser humano ontologicamente em sua subjetividade” (Mondini et al., 2018, p. 04). Assim, na maioria de nossas pesquisas, muito além de buscar por sujeitos significativos, vamos ao encontro deles, ficando com eles, em um movimento de compreendê-los e compreendermo-nos. Esse movimento, sendo assim, é um fluxo de compreensão-interpretação-compreensão, em que o ouvir o modo de o outro se fazer presença para nós e nós para ele é imperante. Somente onde se dá a possibilidade existencial de discurso e escuta é que alguém pode ouvir. Quem “não pode ouvir” e “deve sentir” talvez possa muito bem e, justamente por isso escutar. O ouvir por aí é uma privação da compreensão que escuta. Discurso e escuta se fundam na compreensão. A compreensão não se origina de muitos discursos nem de muito ouvir por aí. Somente quem já compreendeu é que poderá escutar (Heidegger, 1989, p. 223). Assumimos a “compreensão” como ontologicamente presente à existência que, no sentido heideggeriano, está sempre no movimento de sendo pela atualização das possibilidades que, a cada um, individualmente, em sua singularidade, se apresentam. Ao trazer a perspectiva ontológica, em que mundo e compreensão são inseparáveis na constituição do ser, consideramos, entendendo com Heidegger (1987), que é neste contexto homem/mundo que a compreensão pode inserir-se. Com essa visão, mais do que um proceder metodológico, nos abrimos a nos reconhecermos em nossas experiências vivenciadas no mundo como pessoas envolvidas com a educação, ou seja, ao estarmos com os pares em um movimento compreensivo, temos a possibilidade de ampliar nossa compreensão de mundo. Isso significa que, ao movimentarmos nosso modo de caminhar metodológico de abordagem fenomenológica, constituímos os dados. É nesse movimento de compreensão-interpretação-compreensão que descrevemos e discutimos na próxima seção, desafios que vimos enfrentando na pesquisa qualitativa, a distância com os meios digitais.

3.Estar-com-o-outro-a-distância

A pesquisa em ambiente e com recursos digitais, lança desafios pelo modo de irmos à escuta da presença do outro, evidenciando modos de ser e de compreender o mundo, constituindo, assim, dados qualitativos que permitam avançar em estudos sobre o fenômeno investigado. Isso quer dizer de um movimento investigativo em que o pesquisador, “de modo atento, olha para algo querendo saber do que se trata. Esse algo poderia ser visto como a ‘coisa’, que nos escapa ao conhecimento, mas que se doa aos nossos sentidos, em seus modos de doação” (Bicudo, 2020, p. 34). Como nos mantermos atentos à pesquisa? Elaborando a interrogação orientadora do estudo no campo do interesse do pesquisador, e nos lançando a eleger sujeitos significativos ao perguntado. Assim, encontrar e convidar participantes, sem estar frente a frente, é um primeiro desafio que se impõe. O chamado por redes sociais, e-mails, ou outros modos, para sensibilizar e ter o comprometimento de envolver pessoas, coloca-nos em caminhos tortuosos. Muitas mensagens de convite enviadas por e-mail não retornam; muitas retornam com sinalização positiva, entretanto, ao longo do trajeto de produção de dados, as pessoas se escondem tomando como escudo, por exemplo, a tela de um computador. Neste caso elas não se fazem presentes, mas também não desistem do curso . O computador se mostra como uma porta fechada, cuja fechadura é usada como um ponto de onde espiar o que acontece, mantendo o anonimato e distanciamento entre pares. Há, ainda, os que respondem ao chamado, mas não realizam o curso. Para descrever essas possibilidades que se fizeram presentes em cursos à distância, trazemos três pesquisas em andamento. Duas delas, uma de doutorado e outra de mestrado, visaram o encontro assíncrono com professores para estudar possibilidades formativas e ambos efetuadas na plataforma Moodle da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). A primeira pensada desde o início para ser remota; a segunda, à distância foi o imposto para existir, devido a pandemia deflagrada no ano de 2019. A terceira investigação, também de doutorado, visou ouvir professores da licenciatura em Matemática, buscando contribuir com a formação do professor, ao tematizar a docência universitária. Esta, também, pela situação de distanciamento social, só encontrou possibilidade de ser investigada pelo que os meios digitais oferecem. O que as três pesquisas têm em comum? A busca do fenômeno pela escuta atenta ao outro. Todas se pautam no COMO compreender os modos de pesquisar, tendo uma tela informacional como intermédio desse estar-junto. Os modos de estar com os professores foram produzidos desdobrando as possibilidades tecnológicas em três formas: i) curso de extensão; ii) encontros formativos com professores; e iii) por depoimentos espontâneos mediados por recursos tecnológicos. As respectivas interrogações orientadoras são assim postas: “O que é isto, a forma-ação de professores ao aprender-ensinar matemática?” (Orlowski, 2022) ; “O que a escuta da expressão do aluno pode trazer para a formação do professor?” (Pudelco, 2022) e “Como o formador de professor entende a docência na/para constituição da prática pedagógica?” (Batista, 2022) . Em Orlowski (2022), professores da educação básica foram convidados via divulgação da UTFPR, compartilhada em redes sociais. Ao todo 75 professores atenderam ao chamado e iniciaram o curso, mas apenas 25 permaneceram até o fim. Alguns não chegaram a acessar a plataforma, outros iniciaram o curso, mas desistiram, justificando questões relacionadas à falta de tempo. Pudelco (2022), incialmente convidaria professoras alfabetizadoras de uma determinada escola municipal de Curitiba. Com a Pandemia, o encontro com as alfabetizadoras deu-se pelo envolvimento destas em grupos de estudos em Educação Matemática da UTFPR. Em Batista (2022), a meta foi ir ao encontro dos sujeitos significativos no cenário da educação superior e estar com eles em encontros individuais, em salas do google meet. Foram convidados todos os professores da Licenciatura em Matemática de uma universidade pública no estado do Pará, por meio de um e-mail nominalmente enviado. Essa foi uma exigência do Comitê de ética. As pesquisas de Orlowski (2022) e Pudelco (2022) se deram no auge da pandemia e trouxeram o medo de que os professores estafados com tantas reuniões virtuais, vissem a participação nas pesquisas como mais um link solicitando tarefas e o tomassem, antes de tudo, como uma sobrecarga de trabalho, desprezando o convite. O medo constante agiu, ora como inibidor, pois entravam em cena os desafios da conectividade; ora como motivador, pois colocava a pesquisa em uma nova perspectiva de articulação às situações que vinham surgindo. Assim, o primeiro contato com os professores se mostrou como sendo decisivo para a continuidade das investigações, pois era preciso deixar claro os objetivos da pesquisa, a importância desta para a formação de professores e as garantias de que cada participante estava amparado pelas normas que regem a pesquisa que envolvem seres humanos. Cada fala inicial continha, especificamente, os modos como cada pesquisa seria desenvolvida, amparadas no descrito no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), garantindo a preservação dos direitos e deveres dos participantes. Tendo transcendido o momento disparador, a manutenção da rcede de internet constituiu-se num novo desafio: que imprevistos poderíamos ter? Como resolvê-los sem perder o rigor ou invalidar trajetos na produção dos dados? Como conduzir os encontros para que o professor, presente à distância, não se ocultasse, escondendo-se atrás da tela computacional? Em todos os casos, foi destacado o compromisso com o anonimato e de que a segurança dos dados dependia também do compromisso dos participantes, não somente das garantias oferecidas pelo pesquisador, conforme as normas estabelecidas pelo CEP. Enquanto a pesquisa de Batista (2022) previa 11 professores e 10 participaram ativamente, nas outras duas, em que o tempo seria maior e a proximidade se daria de modo assíncrono, o esvaziamento veio se dando como um apagar das luzes, em que cada um saiu de cena sem deixar muitos rastros pelo caminho. Isso quer dizer, sem a problematização das dificuldades, mas com ecos de indícios de que, na era digital, a sobrecarga de trabalho tem tomado conta da linha de produção. Enfrentado os desafios de encontrar participantes, o próximo foi o de estar-junto. Como constituir dados, nos mantendo entre-vistas com participantes, em ambientes cuja lógica de funcionamento é o estar perto, mesmo que longe? O desafio era estar perto a distância, constituindo dados por meio da escuta do outro que se presentificava por meio de uma tela do computador e dos recursos da plataforma. A importância do olhar, dos gestos, das expressões faciais são constituintes caros da pesquisa qualitativa, tendo em vista que, com eles é possível dizer muito sem que seja pronunciada uma palavra. Mas, como fazer isso estando tão distante? Como dizer e ouvir o dito sem os ruídos da condição tecnológica, em meio ao isolamento social de uma pandemia? Como manter o contato entre-vistas quando, muitas vezes, a necessidade de silenciamento do áudio ou do fechamento da câmera (por parte do pesquisador), era condição necessária para a manutenção do sinal de internet? A saída foi, com o que estava a nós dado, buscar modos atentos de ouvir as diversas possibilidades investigativas pelas quais as pesquisas e suas respectivas interrogações nos impulsionavam à constituição dos dados. No caso da pesquisa de Orlowski (2022) essa à distância foi proposital, ou seja, ao enfocar a interrogação as pesquisadoras vislumbraram a possibilidade de realizá-la em Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), pois o foco era permanecer com os docentes com possibilidade de avançar e de retroceder no movimento de aprendizagem do conteúdo e respectivas atividades didático-pedagógicas. Articular tecnologia e formação docente também era um desafio para formadoras e participantes, pois a pesquisa buscava conhecer modos de a produção de conhecimento matemático se dar com a tecnologia na/em Educação Matemática. Com isso, um desafio que se evidenciava era o da plataforma Moodle não ser tão somente um ambiente de transferência de conteúdos como expostos em meios presenciais para o ambiente virtual. Era preciso desenvolver uma dinâmica diferenciada em que o ponto disparador viesse dos formadores, mas quem movimentasse o curso fossem os participantes. Isso foi possível pelo layout criado com fóruns que traziam além de questões referentes ao conteúdo programático, provocações filosóficas, imagens, poesias e citações que pudessem possibilitar aos envolvidos o estranhamento.

Compreendemos o estranhamento como algo característico de uma atitude filosófica, assim como a indagação, a argumentação e a reflexão. O estranhamento acontece quando uma pessoa vivencia uma circunstância diferente da que costuma experimentar cotidianamente ou, quando no viver com o familiar, algo lhe salta aos olhos, provocando estranheza. Perplexos, ficamos em estado de alerta, atentos às coisas de modo a observarmos algo que antes não víamos ou que não nos causava incômodo. No estranhar-se com e nas coisas, questionamos o visto, que sempre é observado por alguém, de onde se entende o estranhamento como algo genuíno, dada a singularidade de cada um (Mocrosky et al., 2019, p. 1453).

Esses foram os modos possíveis que, requeridos pelo ouvir atento à interrogação de pesquisa, se abriram em possibilidades de diálogo, do ir e vir em certas questões, demorando no perguntado, compondo assim, um modo de estar juntos intencionalmente à distância. Assim, forma-ação-de-professores-que-ensinam-aprendem-matemática, foi investigado compreendendo o ciberespaço “potencialmente comunicativo como lócus em que a comunicação é potencializada, a partilha da disposição comum é exigida, revelando o ser-com” (Paulo & Ferreira, 2014, p. 318). No andamento dessa pesquisa, outro desafio encontrado ao estarmos atentos à interrogação, foi produzir modos de compor análises que também expressassem o como ouvíamos a constituição dos dados. A dinâmica da realização do curso e as interações entre os professores envolvidos gerou um grande volume de dados, que exigiu a construção de um percurso para proceder às análises, considerando tanto aspetos específicos que envolviam perspectivas do conteúdo programático do curso, quanto aspectos amplos que se referiam aos modos como os professores participantes expressam o dar-se conta de estar entre pares em forma-ação. No caso da pesquisa apresentada, foram mais de trinta quadros de análises, bem como, mais de duzentas ideias que se destacaram como nucleares nos discursos dos sujeitos significativos. Uma possibilidade de expressar essa multiplicidade de sentidos foi delineada pela apresentação de quadros descritivos das vivências dos professores em formação em Redes de Significações (Kluth, 1997). No caso de Batista (2022), ouvir os dados e constituir modos de analisá-los, também solicitou que, com apenas uma pergunta disparadora, fosse aberta possibilidades para o professor falar abertamente sobre suas concepções de docência, o mais livremente possível. Esse procedimento nos garantiu a gravação dos relatos, dos gestos, feições, expressões e uma diversidade de dados, possibilitados pela escuta atenta ao outro. Também mostrou que, mesmo na virtualidade, os laços que ligam entrevistador e entrevistados são afetados pelo compromisso firmado entre as partes, que têm na confiança uma perspectiva de destacar o produzido pelas características qualitativas. Entretanto, ainda persistia o temor de que a constituição dos dados pudesse ser prejudicada pelo fornecimento do sinal de internet. Como fazer em caso de interrupção do sinal? Novamente o compromisso se fez presente. Em duas entrevistas a oscilação do sinal de internet prejudicou as gravações nos levando à reabertura da sala. Em outra, a constituição dos dados teve que se dar por meio da gravação da tela do celular, através de aplicativos de gravação de tela. Independente das situações conseguimos manter a proximidade e o contato direto com os participantes. Isso nos mostrou que era possível estar juntos a distância. E, mesmo sendo essa a única forma de constituição dos dados da pesquisa de Batista (2022), o medo que ora o paralisava, se tornou combustível para impulsionar a realização da pesquisa, que tomou novos rumos, atendendo às especificidades do momento. Esse desafio mostrou que independentemente do cenário, quer seja virtual, quer seja presencial, estar junto vai muito além da presença física. Estar junto interligado ao compromisso com a pesquisa e com a possibilidade de que se prontificar ouvir o outro, permitiu ecoar vozes de docentes que têm muito a dizer sobre a docência-enquanto-ciência-na-formação-universitária, e, como ela constitui a sua prática pedagógica. Em suma, nesse caso, ampliamos as possibilidades de estar juntos, estivemos juntos entre-vistas. Em Pudelco (2022) o estar com o outro foi se revelando pelo ouvir e a pesquisa foi conduzida pelas interpretações-compreensões de cinco professoras alfabetizadoras em Matemática, ao estarem atentas às expressões dos alunos num exercício de escuta. Para compor o estudo, as professoras foram convidadas a participar de quatro encontros assíncronos na plataforma Moodle da UTFPR. É importante ressaltar que inicialmente pretendia-se estar com os professores em escuta com alfabetizadores na escola, no entanto ao ser proposta a situação de isolamento social, a pesquisa passou a ser em tela, ou seja, pela situação, o projeto foi modificado para que os encontros acontecessem pela plataforma Moodle. O que inicialmente se mostrou como um impeditivo, com o passar do tempo revelou-se em possibilidades significativas de investigar mais aprofundadamente a escuta. Esse cenário remete-nos ao dito por Gadamer (1997), que afirma que é da essência do homem romper com as tradições para a criação do novo, em um movimento de reinvenção do dado, uma vez que: Embora sempre faça parte da essência da tradição o fato de ser somente através de apropriação, faz parte também certamente da essência do humano o poder romper, criticar e desfazer a tradição, e na nossa relação para com o ser, aquilo que se realiza nos moldes do trabalho, do real, com vistas aos nossos fins, não será algo muito mais originário? (Gadamer, 1997, p. 27). Estes estudos problematizaram dois pontos que se mostraram nucleares para o enfrentamento de se realizar pesquisa qualitativa assumindo a visão fenomenológica, em ambiente virtual, quais sejam: os desafios de encontrar os participantes e o de estar com os participantes por meio de uma tela que os unia-separava. Evidenciou que muito mais do que a separação pela distância física, tornou possível realizar a investigação a distância, pautada na escuta atenta do outro, produzindo conhecimento.

4.Síntese compreensiva

As pesquisas que ilustram este texto apontam para pensar uma virtualidade como “realidade virtual” (BICUDO, 2010), (BICUDO, ROSA, 2010), um modo de viver caracterizado pelo dar-se como ele é em termos de espaço-tempo coabitados com tecnologias. Um movimento humano de habitar o mundo em que se vive, em que “o virtual está enredado na teia do real”, considerando que:

O mundo cibernético abre possibilidades para a transformação do ser humano na medida em que a pessoa pode vivenciar as mais diversas experiências nesse espaço, não deixando de poder experienciá-las também no espaço-tempo em que está com os outros em sua corporeidade. É um espaço-tempo que se revela a quem o habita como um espaço-tempo próprio, no qual se pode ser o que se deseja ser, afrouxando os laços com a rede que constitui a realidade histórica e social, solo em que estamos e convivemos com os outros. As expressões do sentido, compreendido e interpretado, corporificam-se pelos modos de comunicação, como o da escrita, por exemplo. O mundo cibernético, mostra-se, então, como uma modalidade do mundo-vida, e, portanto, também constituído na dimensão histórica, social e cultural como são constituídas todas as ações e relações humanas (BICUDO, 2010, p. 123).

Estar junto com pessoas nos diz de um modo de ser humano, um modo que se presentifica, que se dispõe e se envolve a pensar na temporalidade vivenciada. Destacamos desafios enfrentados ao realizar pesquisa qualitativa a distância, quando se buscou estar com os sujeitos significativos, de modo a descrever as vivências expressas. Ouvir os modos de estar junto a distância e modos que sendo anteriormente intencionados, ou não, a investigar com instrumental de informática, solicitou produzir recursos formativos e criar vínculos que sustentassem encontros capazes de manterem-se na continuidade programada. O movimento realizado durante as investigações trouxe consigo a complexidade de viver-se em isolamento social. Ao pensarmos qualitativamente os modos pelos quais a tecnologia abre possibilidades de estar juntos, foi indicado pelas pesquisas apresentadas a importância da escuta e do discurso fundados na compreensão. Entendendo com Heidegger que “Escutar é o estar aberto existencial da presença enquanto ser-com os outros...” (HEIDEGGER, 1989, p. 222), compreendemos que a escuta dos sujeitos significativos se embasou no cuidado do pesquisador de ouvi-los, abrindo clareiras de esclarecimentos que foram se fazendo no movimento de estar-junto.

5.Referências

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1Trata-se de um ofício circular emitido pelo Comissão Nacional de Ética em Pesquisa/Secretaria-Executiva do Conselho Nacional de Saúde/ Ministério da Saúde, Orientações para procedimentos em pesquisas com qualquer etapa em ambiente virtual.

2Estar-com proposto com base em Martin Heidegger (1989), como um modo de ser humano que se presentifica. Remete à obra e a indicações heideggerianas do Ser-com e diz de um modo de ser ontológico do ser do ser humano, denominado por ele de Dasein (Heidegger, 1989).

3Significativo na medida em que vivenciamos e compartilhamos o solo histórico-cultural, portanto, significativo ao estudo.

4Trata-se de um curso realizado ao longo das pesquisas de doutoramento de Orlowski (2022), na plataforma Moodle da UTFPR com professores, para estudar possibilidades formativas.

5Brasil essa é denominação de cursos que formam professores para os trajetos escolares anteriores ao ensino superior.

6Estudo em andamento.

7Estudo em andamento.

Recebido: 01 de Novembro de 2021; Aceito: 01 de Março de 2022

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