1.Introdução
As inovações científicas e tecnológicas dos últimos tempos trouxeram inegáveis contribuições para os campos da saúde e da Medicina. O uso eficiente de novas tecnologias possibilitou realizar diagnósticos precoces e tratamentos mais eficazes, aumentando as possibilidades de cura, reabilitação e interferência na qualidade de vida das pessoas. Porém, ao fortalecer o modelo médico-centrado, induziu-se uma prática desumanizada (Ferreira et al., 2016), impactando em uma prática médica com reduzida capacidade de reconhecer e lidar com as distintas dimensões da vida individual e coletiva, com responsabilidade, solidariedade, causando a quebra da confiança com o paciente e a sociedade. O profissionalismo é visto por muitos como “[...] o caminho para a retomada da relação de confiança necessária à interação médico- paciente e profissão-sociedade e a força mediadora das transformações necessárias na formação e exercício profissional” (Santos, 2018, pp. 14-15). Os estudiosos concordaram quanto à importância do profissionalismo para a educação e a prática médica (Swick, 2000), não quanto ao seu conceito (Carneiro et al., 2020, Feitosa et al., 2019; Swick, 2000;) e domínios constituintes (Epstein & Hundert, 2002). Educadores médicos investigaram o significado e os valores do profissionalismo, as estratégias para a reflexão no ensino e no trabalho (educação permanente/continuada), e os métodos para a sua avaliação (Epstein & Hundert, 2002, Passi et al, 2010, Swick, 2000). Quanto à definição, trata-se do “[...] uso habitual e criterioso da comunicação, do conhecimento, das habilidades técnicas, do raciocínio clínico, das emoções, dos valores e da reflexão na prática diária, em benefício do indivíduo e da comunidade atendida” (Epstein & Hundert, 2002, p. 226). Para Santos (2018, p. 19) “[...] engloba um conjunto de elementos interrelacionados, de limites imprecisos, que, em linhas gerais, expressam o compromisso ético, moral e humanístico que os profissionais em geral devem manter no decurso do exercício do seu trabalho”. Cohen (2007) referiu-se a uma íntima ligação entre profissionalismo e humanismo, embora distinga: profissionalismo relaciona-se ao agir de acordo com valores normativos, enquanto que humanismo é uma forma de ser, que compreende um conjunto de convicções pessoais profundamente arraigadas sobre as responsabilidades de uns para com os outros, especialmente aqueles que precisam, manifestando-se através de altruísmo, dever, integridade, respeito pelos outros e compaixão. Resume que: “[...] o humanismo fornece a paixão que anima o profissionalismo autêntico” (Cohen, 2007, p. 1029). Os estudiosos apresentaram os valores humanísticos como imprescindíveis ao profissionalismo. Mas, existe ainda um caminho a percorrer, para criar um cenário na formação e na prática médica, favorável à aquisição e ao desenvolvimento dos referidos valores, de maneira a “formar o médico adequado, competente, atualizado, com bagagem científica e postura profissional” (Moreto et al., 2018, p. 186), perfil desejado pela sociedade e preconizado nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) de Medicina. As DCN contemplam o profissionalismo, implicitamente, começando pelo perfil da formação: “O graduado em Medicina terá formação geral, humanista, crítica, reflexiva e ética, (...) com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania, da dignidade humana, da saúde integral do ser humano [...]” (Brasil, 2014, p. 1). Embora adequar os currículos contemplando avanços científicos e tecnológicos e visão ética e humanística seja preciso, para Levites e Blasco (2013, p. 2) ainda convém “[...] uma reforma interior de professores e alunos, uma volta às humanidades para nos lembrar quem somos, o que realmente importa e o que nos distingue como seres humanos”. Mairot et al. (2019, p. 54) referiram que as artes “[...] apresentam qualidades únicas que podem auxiliar no desenvolvimento dos aspectos sociais da prática médica, oferecendo maneiras novas e distintas de exploração do conhecimento e da identidade profissional”. No mesmo trabalho, buscando analisar a eficácia do uso das artes no ensino médico, apontam para seu benefício no desenvolvimento pessoal e profissional, de habilidades de comunicação e dos aspectos subjetivos da prática médica. Com apoio nas evidências construiu-se a pergunta da pesquisa: Qual o entendimento dos docentes do curso de Medicina sobre o uso da Arte para o desenvolvimento de competências humanísticas relacionadas ao profissionalismo médico? Buscou-se identificar, sob a luz do constructo do profissionalismo e humanismo médico, o sentido atribuído pelos docentes à utilização e adequação da Arte no ensino, para o desenvolvimento e a expressão de competências de prática profissional humanística.
2.Métodos
A pesquisa desenvolvida refere-se a um estudo exploratório, descritivo, tipo estudo de caso, com abordagem qualitativa. Segundo Minayo (2002),responde a questões muito particulares e se preocupa com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças valores e atitudes o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (pp. 21-22) O estudo desenvolveu-se com docentes de Medicina de uma instituição pública do nordeste brasileiro, selecionados por sorteio. Elegeu-se como participantes, os docentes efetivos lotados na Faculdade de Medicina (FAMED), que assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), ou que concordassem verbalmente, antes do início do grupo focal on-line. Excluíram-se os docentes afastados por licença médica ou maternidade, ou em férias, durante a coleta de dados. O Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), aprovou a pesquisa com o Parecer nº 4.422.661, de 26/11/2020. O método de coleta de dados foi grupo focal, considerado por Borges e Santos (2005), como uma das várias modalidades de entrevistas grupais e/ou grupos de discussão, cujo emprego, como única técnica ou em combinação com outras, pode oferecer um importante instrumento na aproximação dos pesquisadores/profissionais ao universo da população-alvo em vários momentos da pesquisa. Em virtude da pandemia por Coronavírus, realizaram-se grupos focais virtuais. Moretti-Pires (2020) considerou que, no contexto pandêmico, as técnicas focais on-line podem ser caminhos para a continuidade das pesquisas. Ressaltou, que os grupos focais on-line são derivados da técnica de grupo focal, tendo a mesma base epistemológica e metodológica, com algumas particularidades. Os grupos focais foram realizados de acordo com os pontos fundamentais definidos por Rea e Parker (2000), e as orientações de Moretti-Pires (2020), para o formato on-line. Seguiram-se as etapas: Planejamento, Recrutamento dos participantes e Implementação das sessões. Após o sorteio, foram encaminhados os convites a 30 docentes, por e-mail, disponibilizando o TCLE (como link do Google Forms e cópia digital anexada ao e-mail, para ciência, assinatura e devolução por e-mail). Durante o período de coleta de dados, para facilitar a comunicação, utilizou-se, além do e-mail, o aplicativo WhatsApp. Em virtude de situações aleatórias, alguns docentes não puderam participar. Formaram-se três grupos: Grupos 1, 2 e 3, com oito, cinco e sete docentes, respectivamente, totalizando 20 participantes. Os encontros foram realizados pelo Google Meet, com duração de: 1h20min30 - Grupo 1; 1h11min43 - Grupo 2 e 1h33min25 - Grupo 3. Cada sessão contou com a participação da pesquisadora, da moderadora e dos docentes convidados. Para preservar a identidade, os participantes foram identificados como “P1” a “P20”. No início de cada sessão procedeu-se a acolhida dos participantes e as orientações quanto ao funcionamento e os papéis dos presentes no grupo focal. Solicitou-se a autorização dos presentes para a gravação da sessão, concedida verbalmente ou por meio de registro no chat. Nos grupos onde houve participantes que ainda não tinham dado o consentimento por meio do TCLE, foi feita a leitura e esclarecimentos das dúvidas, em seguida os participantes deram o aceite verbal ou registraram sua anuência no chat. Asseguradas as exigências éticas, realizaram-se os grupos focais, utilizando-se, para nortear a discussão, um roteiro (Figura 1) elaborado e testado em grupo focal piloto on-line com cinco participantes. Os participantes puderam expressar suas percepções sobre as questões propostas por meio da fala ou escrita no bate- papo público.
A análise dos dados foi realizada por meio da técnica de análise de conteúdo que, segundo Bardin (2016, p. 48), é “um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição dos conteúdos das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens”. Seguiu-se as seguintes etapas da análise: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Na pré-análise preparou-se o material por meio da escuta exaustiva das gravações das falas de cada grupo e simultâneas transcrições. Nessa etapa foi perceptível como a escuta e a leitura exaustiva do material foram fundamentais para adquirir afinidade com o material e realizar as análises preliminares, conforme salientou Malheiros (2011). À medida em que o material tomava forma, percebeu-se que o conteúdo poderia ser utilizado para responder à pergunta da pesquisa. Dessa forma, decidiu-se utilizar todo o material transcrito para análise. Foi assim definido o Corpus, “conjunto dos documentos tidos em conta para serem submetidos aos procedimentos analíticos”, levando-se em conta as regras de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência (Bardin, 2016, p. 126). Ao continuar com a exploração mais aprofundada do material, ressaltaram-se as unidades de registro (temas) e de contexto, que tinham relação com os objetivos desta pesquisa e construídos indicadores que deram origem a quatro categorias emergentes dos dados analisados. A interpretação dos dados teve como referência os pressupostos teóricos do humanismo e profissionalismo médico. Quanto ao conceito de Arte, adotou-se a visão proposta por Ferreira (2014):
[...] há ao menos dois conceitos básicos significados pela palavra arte na linguagem comum, bem como na linguagem filosófica: arte em sentido restrito, como obra de arte, como aquilo que está no museu, no teatro, nas galerias ou em qualquer contexto teórico, histórico e institucional legitimador; e arte em sentido amplo, como experiência inovadora, criação, originalidade, de modo que qualquer setor das atividades humanas pode ter um núcleo reconhecido como artístico, desde que envolva um ato criativo potente, ou uma experiência estética, ou um germe crítico, ou a abertura de um novo modo de habitar o mundo - como se queira chamar. (p.24)
3.Resultados
Vinte docentes participaram da pesquisa, nove do sexo masculino e 11 do sexo feminino. Quanto à área de formação, predominou a da saúde (85%). A área de humanas e sociais representou 15% do total. Em relação ao tempo de docência dos participantes no curso de Medicina, 30% têm menos de dez anos; 60% entre dez e 19 anos e 10% mais de 30 anos. Emergiram da análise quatro categorias temáticas: Medicina: ciência e arte; arte e desenvolvimento do profissionalismo na educação médica; encontros e relações dialógicas mediados pela arte no ensino médico; e promoção da arte no ensino médico: desafios e oportunidades (Figura 2).
3.1 Medicina: Ciência e Arte
As ponderações iniciais pareciam indicar faces distintas da Medicina: Medicina Ciência e Medicina Arte. Refletiu-se que a Medicina Ciência baseada nos conhecimentos técnico-científicos não contempla as particularidades do sujeito, necessitando da Medicina Arte, para lidar com a subjetividade inerente à relação médico-paciente. Nesse sentido, Miranda-Sá Jr. (2013 pp. 62-63) afirma que “[...] a atividade médica... não é só um trabalho profissionalizado, não é apenas tecnológica, nem exclusivamente humanitária. Mas a identidade de cada médico se faz com componentes de cada uma dessas influências.” O avanço das discussões, configurou o entendimento da inseparabilidade dessas duas faces da Medicina, alinhando-se à literatura sobre o tema, conforme opina o “P3”:
[...] no momento em que eu vejo a singularidade de cada pessoa, mesmo sabendo do que tá por trás de toda a Ciência, do que é o protocolo que deve ser usado, às vezes eu preciso usar a minha criatividade, a minha arte para ter um resultado melhor.
Um dos participantes, o “P2” despertou reflexões sobre a influência da visão da Medicina como Ciência e Arte na identidade do médico: “[...]a medicina por si só, ela pode e deve ser considerada uma arte? Ou seja, o médico ele é um artista só porque é médico, né?.” Olhar a Arte como sinônimo de humanidade, pode talvez identificar o médico que atua com princípios humanísticos como um artista. No entanto, considerando também essencial, o conhecimento científico, sua identidade profissional traria os atributos do cientista e do artista, como afirmou D’avila (2013, p. 6): “[...] ser médico é exercer a Arte e a Ciência ao mesmo tempo [...]”. Na visão dos participantes, o médico, é um artista, pois necessita utilizar toda sua criatividade para realizar sua prática, conforme percepção do“P5”:
[...] ele [o médico] é um tipo de artista, porque exige dele a criação, um acúmulo, uma interconexão e uma intersubjetividade na hora dele atuar e o que é o ato médico? É essa imbricação dos vários saberes acumulados com a experiência dele, na relação como paciente, e é um ato criador.
A insuficiência da atenção centrada no protocolo (técnica, serial) em contradição com a atenção que considera a singularidade dos sujeitos, é reconhecida, porém, não se consegue articular um discurso onde a criatividade seja o espaço para a escuta da voz do paciente, libertada do regime protocolar e da imagem médica idealizada. Reinventa-se para ser melhor, criar é recriar-se, para atender melhor às singularidades. Southgate (2007) afirmou que a principal qualidade que assemelha a Arte e a Medicina é a capacidade de olhar profundamente cada detalhe. Essa atenção, tanto do artista quanto do médico, revela a receptividade dos mesmos com seus objetos, a natureza e o paciente, respectivamente. Finaliza afirmando que “a própria Medicina é uma arte. É uma arte de fazer e, se for assim, deve empregar as melhores ferramentas disponíveis - não apenas as melhores em Ciência e Tecnologia, mas as melhores em conhecimento, habilidades e caráter do médico.” (p.1)
3.2 Arte e desenvolvimento do profissionalismo na educação médica
No campo das práticas docentes apontou-se o uso da Arte, nos âmbitos do ensino da graduação e pós- graduação e na extensão, principalmente, como um recurso pedagógico de aprendizagem, e para reflexões sobre questões éticas e valores humanísticos, mencionando-se ainda, a utilização na avaliação e pesquisa, conforme afirmou “P6”: “Eu uso a arte como um recurso pedagógico nas várias disciplinas que leciono, né? Como também, nos projetos de extensão [...].” e “P5” complementou: “É a gente tem usado [a arte]... na graduação... no mestrado... no projeto de extensão [. ].” A arte foi vista como um recurso capaz de minimizar a pressão e a cobrança sofrida pelos estudantes de medicina durante a formação, auxiliando a lidar com emoções, sentimentos, com o sofrimento, a dor e o adoecimento das pessoas, no campo da medicina, conforme refletiu “P3”: “[ ] na medicina, um espaço onde a gente lida com muito sofrimento, adoecimento, dor, muita cobrança, né? de estudo. Eu acho que a arte ela alivia um pouco essa pressão [ ].” Os participantes elencaram experiências utilizando Música, Teatro, Artes Visuais, Cinema, Fotografia, Literatura, Jogos, Paródias, entre outras expressões. Estudos destacaram a relação do teatro, (Klein, 2020; Reilly, 2012), Artes Visuais (Klein, 2020; Mukunda et al., 2019), Música, Cinema (Gularte et al., 2019; Klein, 2020), e Literatura (De Benedetto, 2010; Shapiro et al., 2004) para o desenvolvimento de atributos humanísticos relacionados ao profissionalismo médico. A ampla grade curricular com extensa carga de informações e a cobrança recebida pelos alunos para a adequação à imagem idealizada do bom profissional, pode ocasionar esgotamento físico, mental e afetar o desempenho (Lima et al., 2021). Além disso, a necessidade de lidar com a dor, o sofrimento, a morte, a possibilidade de cura ou de um prognóstico desfavorável, da atuação médica, torna-a um campo de sensibilidades, com questões humanísticas que, se não forem compreendidas, podem dificultar ou até inviabilizar um cuidado em saúde de qualidade (Rios, 2018). Mangione et al. (2018) testaram a influência da participação ou exposição às Humanidades (Artes Visuais, Música, Teatro, Literatura, entre outras) em estudantes de Medicina, e confirmou-se a relação entre a exposição às humanidades e a diminuição no esgotamento, bem como, um aumento no nível de qualidades pessoais positivas, como, empatia, autoeficácia e tolerância à ambiguidade. Trabalhar os sentimentos, emoções e despertar valores éticos e humanísticos como, sensibilidade, respeito, empatia, não julgamento, otimismo, liberdade de criar, foram referidas pelos participantes como contribuições do uso da Arte na Educação Médica, conforme ponderou “P6”: “[ ] um dos grandes potenciais da Arte... é... aflorar sua sensibilidade... a empatia ela é tocada, quando a gente utiliza o recurso da Arte e quando ela trabalha também a questão dos sentimentos.” O participante “P13” complementou: “[...] É... porque a Arte... ela... humaniza mais leva a gente para outro patamar de conhecimento, de reflexão, empatia [ ]”. Na visão do “P8”, “a Arte também traz alguns valores que a gente pode transferir pra uma aula... valores, sem julgamento... interação, otimismo [. ].” Demonstrar, entre outros valores humanísticos essenciais, a empatia e o respeito está incluido entre os comportamentos do profissionalismo (Swick, 2000). Fasce et al. (2009) demonstraram que excelência, empatia, responsabilidade, habilidade, treinamento contínuo, bondade e compromisso estiveram entre os atributos ideais do médico mais citados pelos médicos e estudantes de Medicina participantes da pesquisa. Experiências com recursos humanísticos, como, literatura, música, cinema e narrativas, na educação de estudantes e residentes de medicina, apresentadas em estudo de De Benedetto et al. (2014) apontam as humanidades como meios para educar as emoções e promover a empatia, considerada por eles como ponto central do profissionalismo médico e da conduta ética. Pesquisa de Pories et al. (2018) indicou que 42% dos participantes consideraram que a integração de artes e humanidades na educação médica teria capacidade de melhorar o humanismo no atendimento ao paciente, elevando a empatia, o autocuidado, a comunicação e a compaixão. Massud e Barbosa (2007) indicaram que para se formar um “médico completo”, preparado para lidar com o ser humano, é necessário “[ ] o despertar interior dos qualificativos que mais adornam o espírito humano, como a sensibilidade e a compaixão” (p. 18). Os requisitos do profissionalismo, para o Accreditation Council for Graduate Medical Education (ACGME), relacionam-se ao demonstrar compromisso com o cumprimento das responsabilidades profissionais, com os princípios éticos e a sensibilidade para com os pacientes (Kirk, 2007). Sarinho (2014) considerou que a aproximação com a Arte pode auxiliar no desenvolvimento da percepção e da sensibilidade pelo outro. Reconhece a importância da Literatura como fonte de relatos de vivências físicas, emocionais e espirituais que se assemelham àquelas vivenciadas pelo profissional de saúde ao lidar cotidianamente com seres humanos. No entanto, até esse momento, a Arte ainda está distante da prática docente, sendo vivenciada em iniciativas isoladas, pontuais, podendo ser institucionalizadas ou não, conforme mencionou “P6”:
É, eu acho que as iniciativas que a gente tem da inserção da Arte como instrumento de ensino, hoje, ela parte muito da iniciativa dos professores. Embora as diretrizes curriculares têm lá em um dos artigos eu acho que isso é pouco fomentado enquanto institucionalmente.
3.3 Encontros e relações dialógicas no ensino médico mediados pela arte
Buber considerou o encontro dialógico, a relação inter-humana como a relação de maior valor existencial (Zuben, 2006). Um encontro dialógico que viabilize a expressão da sua singularidade e qualidades humanas é uma necessidade primordial do ser humano (Hycner & Jacobs, 1997). Emergiram das percepções quatro domínios de relações dialógicas institucionais, possíveis de mediação pela Arte: relação médico-paciente; relação docente-discente; relação discente-discente e relação docente-docente. Na relação médico-paciente, enfatizou-se a individualidade do paciente e o exercício das artes de abordar, de ouvir, de olhar o paciente como um todo. Para D’Avila (2013, p. 5), essa relação “deve ser pautada por um diálogo franco e humanamente paritário, para que faça nascer relações radicadas no denso valor ético-social da recíproca confiança.” A fala de “P4” traz essa visão:
[...] quando você tem a sua relação médico-paciente você trabalha com indivíduos tem suas particularidades. Então, há necessidade de a gente aplicar na execução prática, as nossas ideias e saber lidar bem com o paciente que é um sujeito diferenciado dos demais.
Na relação docente-discente, a Arte foi percebida como estratégia capaz de promover a conexão, a aproximação, e favorecer a criação do vínculo professor-aluno, como aponta o “P7”:
[...] naquela aula onde tá tendo a dramatização... a gente se conecta mais com os alunos se aproxima mais deles. É porque a gente toca nesse ponto da criatividade, da sensibilidade, do subjetivo, né? Então, isso favorece o vínculo, né? entre o docente e o aluno.
Rios e Schraiber (2012, p. 314) consideraram que “A atuação de professores capazes de construir vínculos com alunos e pacientes em situações mais ativas de ensino... promove verdadeiras experiências de intersubjetividade que criam condições para o desenvolvimento humanístico”. O curso de Medicina analisado desenvolve, transversalmente, distintas e complexas estratégias de metodologias ativas de ensino-aprendizagem, propiciadoras de encontros horizontais humanizantes. Levites e Blasco (2013) ressaltaramm a responsabilidade do docente em promover a integração dos conhecimentos científicos e o humanismo necessário à prática médica, sendo primordial reconhecer a necessidade de humanizar-se e apontam uma direção: “a Arte e as Humanidades são caminhos para melhor conhecer a realidade na qual o ser humano está imerso e melhor conhecer-se a si próprio, na sua dimensão corporal e espiritual”. (p. 5) Na relação discente-discente, a Arte foi citada como promotora de união, integração e harmonização, além de reduzir a competição e facilitar o trabalho em equipe, conforme opina “P9”: “Eu acho que a Arte une muito os alunos.... a Arte, acho que ela integra, sabe? Que acaba essa parte da competição... e acaba tornando ali, todo mundo igual, todo mundo no mesmo clima. Num clima harmônico[...].” A prática ética, o trabalho em equipe a integridade e a justiça social são elementos que caracterizam as relações, de acordo com os princípios e compromissos do profissionalismo (Moretto et al., 2018). A relação docente-docente é percebida por alguns participantes como fragilidade, apontando-se a dificuldade de interação e comunicação, conforme opinou “P8”: “Eu acho que o grande, assim, desafio... é justamente essa dificuldade de juntar, né? de conectar os professores.” No entanto, outros participantes apontaram como potencialidade, um espaço promotor de aprendizados, troca de saberes e experiências, essencial ao desenvolvimento da Arte no curso, como sugere “P13”: “[...] uma estratégia que se poderia fazer, são trocas de experiência..., mostrar que você tem possibilidades pra dar uma aula diferente utilizando arte.”
3.4 Promoção da Arte no ensino médico: desafios e oportunidades
As reflexões dos participantes, nesta categoria, fizeram surgir três sub-temas: Desafios, Potencialidades e Estratégias. Os desafios referem-se ao currículo e aos docentes. A estes últimos relacionaram-se os maiores obstáculos para desenvolvimento da Arte: falta de integração, falta de vontade de modificar as práticas e de abertura para novas formas de fazer, conforme mencionou o “P12”: “Eu acho que o primeiro desafio é o professor querer fazer, num é isso?... É só a gente querer.” O participante “P3” opinou: “eu acho que o grande desafio.... É do relacionamento, né?... Então, assim, eu acho que o grande desafio é fazer essa união.” Quanto ao currículo, apontou-se a carga horária, conforme percebeu o “P20”: “[...]o maior dos desafios, né? que é a carga horária.” Rios e Schraiber (2011) incluíram entre os requisitos necessários à formação humanística de Medicina, a conscientização do papel docente e a institucionalização de valores e diretrizes, gerados por meio de diálogos coletivos. A institucionalização das práticas e espaços dialógicos para o desenvolvimento da Arte no curso, foi considerada relevante para garantir a realização e manutenção das iniciativas, como percebido por “P2”: “[...]Então, acho que de fato, a estratégia seria, é... discutir aí, uma plataforma institucional de... de inserção dessas artes dentro do cotidiano.” Nesse sentido, as ações estratégicas propostas e potencialidades reconhecidas (Figura 3), em parte, presentes no PPC do curso como: política de capacitação docente; semana de planejamento; espaços para encontros dialógicos; extensão universitária, entre outros (Universidade Federal de Alagoas, 2013), podem promover esses requisitos. Conforme apontaram os participantes:
P6. Quando a gente tinha aqueles momentos de planejamento, né? [...] eu acho que isso era mais dialogado, nesse sentido de fortalecer a arte como instrumento de ensino [...].
P5. [...] eu acho que uma coisa que tá nas normas, que tá na política [...] e que eu tenho sentido muita falta, são os espaços de desenvolvimento docente, né? [...].
P13. [...] a gente tinha pensado justamente na extensão como essa mola propulsora [...].
P15. [...] se os cursos de saúde fizessem uma parceria maior com os cursos de Arte, [...] com o jornalismo, com a publicidade, com[...] a escola de Arte, e a dança, o pessoal da educação física.
P14. [...] disciplinas optativas, que tivessem [...] um componente mais artístico, né? [...] ou dentro das disciplinas já existentes, [...].
P17. [...]Por que não, a disciplina Artes e Humanidades, né? [...] que poderia transcorrer no meio do curso, né? De ponta a ponta [...].
Adams (1998) corroborou com esse olhar dos docentes para a importância da institucionalização afirmando que:
As idéias... terão vida curta, a não ser que sejam feitas tentativas para institucionalizá-las.... através do treinamento de professores... de iniciativas de desenvolvimento de currículos... equipes de trabalho interprofissionais... de programas de avaliação… principalmente enquadrados no currículo oficial. (p. 133)
4.Considerações Finais
As escolas médicas têm buscado meios de promover o desenvolvimento de atributos humanísticos relacionados ao profissionalismo na formação, para garantir uma prática humanizada que contemple a singularidade do paciente e atenda ao perfil de profissional que a sociedade espera. A interação das Artes e Humanidades com a Medicina tem sido vista como um caminho para alcançar esse objetivo. Considera-se que a utilização da abordagem qualitativa, na interface Artes, Humanidades e Medicina, foi essencial para o alcance dos resultados. Certamente, em um espaço permeado de subjetividade, não seria possível alcançar a profundidade das percepções, sentidos e significados com uma abordagem quantitativa. Os grupos focais permitiram compartilhar as percepções, experiências e dificuldades, bem como, identificar possíveis caminhos ao desenvolvimento da Arte na escola médica pesquisada. Assim, este estudo possibilitou a compreensão sobre a importância que os docentes atribuem ao uso da Arte, bem como, a percepção quanto à sua aplicabilidade no ensino para o desenvolvimento e a expressão de competências para uma prática profissional humanística. Na visão docente, o uso da Arte no ensino médico tem importância no desenvolvimento de valores, como: empatia, sensibilidade, ética e respeito, além de competências e habilidades relacionadas à comunicação, interação e vínculo. Utiliza-se a Arte principalmente como recurso didático-pedagógico, e para reflexões sobre questões éticas e valores humanísticos, sobretudo nos contextos do ensino e da extensão universitária, por meio de iniciativas individuais de docentes, institucionalizadas ou não. Apontou-se a Arte como meio para promover união, integração, aproximação e harmonia, o desenvolvimento de empatia, sensibilidade, ética, respeito e de competências e habilidades para lidar com a subjetividade; comunicação, interação e vínculo. Espera-se que este estudo contribua para ampliar o conhecimento sobre o tema e promover novas reflexões além do interesse de pesquisadores e educadores médicos no desenvolvimento de investigações qualitativas mais abrangentes sobre os objetivos, estratégias utilizadas e formas de avaliação do uso Arte no ensino e cuidado em Medicina, impactando na formação de profissionais para uma prática humanística.