1.Introdução
Os movimentos mais recentes no âmbito da digitalização e transformação digital que se observam a nível mundial, de natureza gradual (planeada) ou emergencial (forçada), generosamente ampliados pela disseminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2), tendem a ser considerados pelos investigadores como uma condição necessária para a renovação dos ambientes educacionais (Volkov & Chikarova, 2021). Para além de proporcionarem excelentes oportunidades para a revisão dos conteúdos escolares, tais movimentos também potenciam a criação de sistemas de gestão escolar mais flexíveis, assim como a introdução de novas práticas, métodos e recursos de apoio aos processos de ensino e de aprendizagem em diversos contextos de educação e formação (Bakhmat et al., 2020). Considerando a digitalização em massa como uma nova realidade na qual o professor moderno está completamente imerso, é necessário atentar não apenas para o potencial da renovação que se vislumbra, mas também para as condições requeridas para dar sustentabilidade às mudanças desejadas na educação (Griban et al., 2019). Entre os muitos desafios, a investigação recente tem salientado a permanência de lacunas na preparação de professores e destacado a fragilidade de lideranças estratégicas nas escolas para fortalecer a digitalização, preferencialmente de forma articulada com as estratégias nacionais existentes (Lindqvist & Pettersson, 2019). Embora os professores tenham estado sempre no seio das preocupações das várias iniciativas e esforços nacionais no âmbito da digitalização e modernização dos contextos escolares, desenvolvidos ao longo de muitos anos, para promover a aceitação e uso das tecnologias nas escolas (Lindqvist & Pettersson, 2019), são ainda escassas as discussões explícitas e esclarecimentos conceptuais sobre o que é a digitalização e o que ela envolve em diferentes contextos escolares (Pettersson, 2021). Neste sentido, o conhecimento de como os professores e outros atores educativos, com responsabilidade no desenvolvimento e implementação de programas e ações enquadradas nesta área, entendem e conceptualizam a digitalização na escola tem vindo a configurar-se como um requisito adicional para a tarefa de levar a educação a um nível qualitativamente novo, beneficiando da infusão de novas tecnologias em contexto escolar de forma consciente, intencional e coletivamente deliberada. Procurando contribuir para este desiderato, no âmbito deste estudo, encaramos o fenómeno da digitalização em contexto escolar como um processo de transformação em várias etapas e em vários níveis de decisão curricular (Roldão & Almeida, 2018). Nesse sentido, embora se reconheça uma diversidade de atores relevantes e com responsabilidade em diversos campos de incidência da gestão curricular, a nossa atenção recai nas representações dos professores sobre o que pensam ser (ou poderia ser) uma escola digital. Assim sendo, com este trabalho, pretende-se conhecer e descrever as representações dos professores do 1.º ciclo do ensino básico (1.º CEB) sobre o fenómeno da digitalização na escola. Metodologicamente, trata-se de um estudo de cariz qualitativo, especificamente alinhado com a abordagem fenomenológica, por apresentar uma clara intenção em investigar “o que, na realidade, faz sentido e como faz sentido para os sujeitos investigados” (Amado, 2017, p.41). Os dados empíricos coligidos para os fins em vista são de natureza qualitativa e integram o corpus documental constituído, recentemente, no âmbito das atividades do Observatório Amadora Digital do Projeto Escol@s Digitais, envolvendo um processo de auscultação de todos os professores do 1.º CEB que lecionam em estabelecimentos da rede escolar pública do Município da Amadora. Trata-se, portanto, de um estudo parcial que se enquadra num projeto de investigação e intervenção mais amplo, o Projeto Escol@s Digitais, iniciado em 2021 com a finalidade de apoiar a transformação digital em todas as escolas do 1.º CEB da rede pública municipal da Amadora. Além desta introdução, que enquadra o estudo realizado, o artigo integra uma revisão de literatura que se concentra na identificação de tópicos e categorias analíticas que se destacam nas discussões e nos resultados de estudos recentes com incidência no fenómeno da digitalização na escola. Prossegue com a descrição detalhada da metodologia usada neste estudo, clarificando os processos e procedimentos de análise e de recolha de dados empíricos que suportam a análise e discussão dos resultados que apresentaremos na sequência. Por fim, nas conclusões, sistematizam-se algumas ideias-chave do trabalho desenvolvido, incluindo os aspetos que se afiguram mais relevantes do ponto de vista teórico e prático.
2.Revisão de Literatura
No quadro das novas lógicas de ação e iniciativas orientadas para a generalização da “escola digital” que se encontram em estado de aceleração para responder a novas e velhas preocupações, espoletadas ou adensadas a partir do primeiro trimestre de 2020, após declaração ao mundo de uma nova pandemia causada pelo SARS-CoV-2, somos convocados a (re)equacionar o tipo de educação que desejamos para o futuro dos nossos filhos, as nossas crianças de hoje, cidadãos do amanhã. Não se tratando propriamente de uma convocatória de caráter inédito (UNESCO, 2016), emergem importantes discussões e reflexões sobre a escola, a pedagogia e o futuro da educação pós-pandemia (Bettencourt, 2021; Figueiredo, 2021). Paralelamente, temos ao dispor um acervo já bastante volumoso de balanços e relatórios diversos que acentuam os efeitos nefastos da chamada brecha digital no acesso à educação (Santos, 2021), observando-se, ainda neste registo, um reconhecimento igualmente acentuado do papel do Estado em proteger aquele princípio e assegurar a igualdade de oportunidades, criando soluções tecnológicas que não prejudiquem ainda mais os alunos que já estão em desvantagem (UNESCO, 2020; Santos, 2021: Sanz, Sáinz & Capilla, 2020). Para além do apelo ao reforço ou criação de medidas que garantam as condições de conectividade e de acesso a dispositivos, recursos e equipamentos, solicita-se ainda à escola, por diversas vias, o compromisso com o desenvolvimento intencional de competências digitais dos aprendentes e dos principais responsáveis pela organização dos processos de aprendizagem, designadamente educadores e professores de todos os níveis e áreas de ensino (UNESCO, 2020; Santos, 2021). Compromisso que, como bem nota Pettersson (2018a), deverá considerar a influência de condições contextuais mais amplas no ambiente escolar, exigindo, por essa razão, que os pesquisadores se envolvam no desenvolvimento de novas abordagens que possam aprimorar a competência digital dos professores de forma contextualizada, em função das necessidades concretas de cada contexto. A estes desafios consideráveis, somam-se vários estudos que evidenciam o papel determinante da preparação dos docentes no alicerçar da integração transversal do digital nas suas práticas profissionais e pedagógicas, na vida da escola, nas suas rotinas e procedimentos diários e, sobretudo, na aprendizagem e na vida dos alunos (Afonso et al., 2022). Fazendo ainda realçar a ideia de escola digital por associação à imagem de uma instituição educativa moderna, com bons equipamentos informáticos e boa conectividade (Ređep et al., 2020), outra boa parte da investigação desenvolvida em torno do fenómeno da digitalização em contexto escolar adensa o conjunto de fatores que condicionam a visão e as práticas de mudança e inovação educacionais desejadas. Nesta linha de preocupações, além da formação e do incremento das competências pedagógicas e digitais dos futuros professores e dos professores já em serviço, destacam-se os já conhecidos desafios associados à aceitação e ao uso de tecnologias digitais por parte de professores e alunos (Grönlund et al., 2017; Lindqvist, 2015), à manutenção de práticas de ensino tradicionais, dificultando o uso de tecnologias ao serviço da aprendizagem significativa (Denoél et al., 2017; Costa, 2019; Grönlund et al., 2017; Jahnke et al., 2017) e, ainda, dificuldades diversas ao nível das lideranças existentes nas escolas para apoiar a mudança pedagógica, organizacional ou institucional (Blau & Shamir-Inbal, 2017; Hauge, 2016; Kafyulilo et al., 2016; Pettersson, 2018a; Lindqvist & Pettersson, 2019; Zong, 2017). Apesar da discussão recente e aprofundada sobre as diversas facetas que aqui procurámos sistematizar, são ainda poucos os estudos que partem de um modelo conceptual holístico para descrever, mapear e compreender a complexidade inerente à digitalização e transformação digital das escolas, destacando-se nesta linha de preocupação dois estudos recentes desenvolvidos por Haynes e Shelton (2018) e por Jeladze e Pata (2018). No primeiro caso, e embora a tónica incida no papel determinante dos líderes escolares para a construção de um caminho sustentável para promover as mudanças necessárias para a digitalização e transformação digital das escolas, somos levados a reconhecer a dimensão gigante dos desafios que se colocam neste processo e que, desejavelmente, terão de ser equacionados de forma articulada e altamente contextualizada. Em concreto, e tal como sugerem os resultados apurados por Haynes e Shelton (2018), trata-se de desafios que podem ser caracterizados, avaliados e monitorizados em torno de dez categorias, designadamente: 1) Liderança; 2) Aprendizagem profissional; 3) Recursos e fontes de recursos; 4) Sistemas de suporte; 5) Política; 6) Implementação de tecnologia; 7) Ambientes de aprendizagem; 8) Infraestrutura; 9) Qualidade e avaliação; 10) Compromisso da comunidade. Reforçando igualmente a necessidade de uma visão holística sobre os processos de digitalização em curso nas escolas, mas também uma orientação muito focada na consolidação e sustentabilidade das práticas já em curso, Jeladze e Pata (2018) desenvolvem um modelo conceptual bastante robusto e abrangente para mapear os processos de transformação digital, denominado de Ecossistema de Aprendizagem Inteligente e Digitalmente Melhorado (no original: “Smart, Digitally Enhanced Learning Ecosystem”). Este modelo, fundado numa perspetiva ecológica, além de fornecer uma sólida fundamentação para se olhar a escola como um sistema complexo e adaptável, em constante interação e interdependência com o ambiente externo onde está inserido, também se configura pertinente para analisar a evolução da maturidade digital1 nas escolas. Considerando os resultados apurados no referido estudo, os investigadores sugerem que o caminho em direção à digitalização das escolas deverá equilibrar duas intenções de sustentabilidade: estabilizar o atual ecossistema de aprendizagem com as suas necessidades atuais sem, no entanto, comprometer a procura e testagem de novas soluções e metodologias em direção às mudanças. Face ao exposto, percebe-se que o entendimento associado ao fenómeno da digitalização da escola, imbuído no conceito de escola digital, não pode limitar-se a uma abordagem baseada na racionalidade técnica, materializada em ações pontuais dirigidas ora à melhoria das infraestruturas, ora à capacitação dos docentes e outros profissionais, implicando, por força de razão, uma unidade e coerência que só uma visão global e integradora permitirá alcançar. Para este caminho, como sugerem os resultados dos estudos revistos, é fundamental que as escolas sustentem os seus esforços no princípio da inclusão de diferentes intervenientes na transformação digital; estimulem o desenvolvimento, a testagem e a aceitação de atividades de aprendizagem melhoradas digitalmente; reforcem as redes internas para a partilha e divulgação de novas práticas; e desenvolvam procedimentos para fornecer feedback da aprendizagem, tendo por base dados e fluxos de informação sistematicamente recolhidos para gerir e monitorizar as mudanças (Jeladze & Pata, 2018). Para além destes aspetos e que, na sua essência, frisam a necessidade de uma liderança estratégica para a mudança transformacional desejada, somos ainda confrontados com a exigência que se coloca à complexidade do pensamento sistémico, o que implica não esquecer a interação permanente e dinâmica entre macro e microprocessos (Hauge, 2016), incluindo a presença de regulamentações e políticas de diferentes escalas e interesses (Mausethagen, 2013; Ozga, 2019).
3.Metodologia
Para os fins do objetivo visado neste artigo, designadamente conhecer e descrever as representações dos professores do 1.º CEB sobre o fenómeno da digitalização na escola, assume-se uma orientação alinhada com a abordagem fenomenológica (Loureiro, 2006; Silva & Gomes, 2020) e mobiliza-se um corpus de dados, de natureza qualitativa, recolhidos através da aplicação de um questionário online a todos os professores do 1.º CEB da rede pública do Município da Amadora, especificamente a partir das respostas fornecidas pelos inquiridos a uma questão aberta, formulada nos seguintes termos: O que considera que poderá ser uma “escola digital”?. Previamente à recolha de dados, negociou-se o acesso ao terreno e contou-se com o apoio de interlocutores-chave, previamente indicados pela Direção de cada um dos 12 Agrupamentos de Escolas (AE). Estes foram os responsáveis pelo envio do convite, em junho de 2021, a todos os professores do 1.º CEB para a participação nesta fase do Projeto a partir da resposta ao questionário online elaborado pelos investigadores. Acompanhando esta solicitação feita aos potenciais participantes, enviou-se um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, além de detalhes acerca dos objetivos do estudo e dos termos que regiam a participação no mesmo. Relativamente ao perfil dos participantes (n=267 docentes), da informação que recolhemos, verifica-se que 85% são do género feminino e mais da metade tem entre 41 e 50 anos. A Tabela 1 apresenta de forma mais detalhada o perfil socioprofissional dos participantes.
Considerando o objetivo central do estudo e a natureza dos dados empíricos, elegeu-se a análise de conteúdo como a técnica mais adequada para escrutinar de forma sistemática e rigorosa o(s) sentido(s) que se manifestam nos discursos dos inquiridos a propósito do tema em análise, possibilitando, assim a reconstrução de ideias centrais emergentes nas suas respostas (Mayring, 2000; Henkel, 2017). Definida a técnica analítica, deu-se início à construção de um banco de dados através do Google Sheets que, além de favorecer a organização e gestão dos dados, também possibilitou o desenvolvimento de um processo analítico e interpretativo assente na triangulação entre os investigadores (Loureiro, 2006). Como corpus de análise foram consideradas todas as respostas elaboradas pelos professores à questão previamente indicada (“O que considera que poderá ser uma “escola digital”?”), contabilizando-se um total de 180 respostas elegíveis para análise, com dimensão e profundidade variáveis. Para a exploração e análise sistemática dos dados, optou-se por uma estratégia de cariz indutivo (Elo & Kyngas, 2007) que se consubstanciou na elaboração de um sistema de categorização que permitisse,
“além de uma rigorosa e objetiva representação dos conteúdos ou elementos das mensagens (discurso, entrevista, texto, artigo, etc.) através da sua codificação e classificação por categorias e subcategorias, o avanço (fecundo, sistemático, verificável e até certo ponto replicável) no sentido da captação do seu sentido pleno (à custa de inferências interpretativas derivadas ou inspiradas nos quadros de referência teóricos do investigador), por zonas menos evidentes constituídas pelo referido ‘contexto’ ou ‘condições’ de produção” (Amado, 2014, p. 304).
Apesar da aparente linearidade do percurso aqui descrito, a construção do sistema de categorização contou com uma progressiva e contínua triangulação entre os investigadores (Loureiro, 2006), até se atingir um grau de conceptualização considerado relevante para a concretização dos objetivos visados, assumindo-se, tal como Maia e Fernandes (2001) explicitam, que a nomeação de categorias possa beneficiar tanto do léxico presente no material textual em análise, quanto da sensibilidade teórica dos investigadores envolvidos. A Figura 1, abaixo apresentada, além de ilustrar uma parte do sistema de categorização em fase de desenvolvimento, também evidencia o modo como o mesmo se operacionalizou. Neste sentido, destaca-se a construção de uma matriz de dupla entrada, prevendo a identificação de dimensões e de categorias analíticas, com definição operacional e inclusão de exemplos ilustrativos do sentido inferido, extraídos das respostas dos inquiridos. Trata-se assim, por esta via, de minimizar eventuais discordâncias de codificação e, consequentemente, aumentar a validade e a confiabilidade da pesquisa (Sampaio & Lycarião, 2021).
No que respeita ao processo de codificação dos dados, prevaleceu a aplicação do critério de afinidade semântica (significado), considerando justamente a definição operacional previamente elaborada para cada uma das categorias. Nestes termos, foram identificadas e codificadas 183 Unidades de Registo (UR), correspondentes a fragmentos textuais, presentes nas respostas dos inquiridos, que contêm um conteúdo semântico relevante para dar robustez a uma determinada categoria. A codificação final, com validação interpares nas diversas etapas do processo, resultou na identificação de três dimensões analíticas, designadamente: 1) Dimensão estratégica - requisitos para a digitalização nas escolas (dimensão que agrega referências que definem “escola digital” por alusão a um conjunto de condições que será necessário assegurar para viabilizar a aplicação das potencialidades que as tecnologias teoricamente incorporam); 2) Dimensão pedagógica - reconhecimento do potencial das tecnologias digitais (dimensão que agrega referências que definem “escola digital” por alusão ao potencial pedagógico das tecnologias digitais, explicitando o que esses recursos permitem fazer, as suas vantagens e ganhos em relação às diversas facetas do trabalho escolar); e 3) Dimensão axiológica- reforço de valores considerados fundamentais (dimensão que agrega referências que definem “escola digital” por alusão aos princípios e/ou à visão pela qual se deverá orientar o serviço prestado pela própria escola e a própria ação educativa). Por fim, em relação ao tratamento de dados, optámos por recorrer à estatística descritiva baseada na quantificação das UR, através da contagem de frequências absolutas e relativas e, dessa forma, evidenciar a existência, intensidade e a relativa importância de cada uma das categorias para a compreensão do fenómeno em estudo (a digitalização nas escolas), à luz da perspetiva dos professores do 1.º CEB.
4.Análise e discussão dos resultados
Os resultados que aqui se apresentam e discutem reportam-se às três dimensões que se destacaram na análise de conteúdo, configurando, no âmbito deste estudo, o núcleo das representações dos professores do 1.º CEB sobre a digitalização na escola. Cada uma das dimensões, operacionalizada em conformidade com o processo de codificação acima descrito, agrega um conjunto de UR organizadas por categorias, conforme distribuição representada na Figura 2.
Partindo desta leitura global, prossegue-se com uma análise e discussão dos resultados apurados por dimensão analítica, dialogando, sempre que possível e considerado pertinente, com análises de estudos anteriores, considerando naturalmente a revisão de literatura previamente apresentada para dar suporte, conceptual e metodológico, a este trabalho.
4.1 Dimensão estratégica: requisitos para a digitalização nas escolas
Globalmente, percebe-se que é na Dimensão Estratégica onde se concentra a maioria das UR analisadas (54%), indicando que as representações dos professores em relação ao que poderá ser uma “escola digital” tendem a centrar-se mais nas carências que identificam na área do digital. Também, na nossa revisão de literatura, destaca-se a compreensão de escola digital por referência aos requisitos para a digitalização nas instituições escolares, sobressaindo aqui a discussão em torno das tecnologias digitais que poderão ser utilizadas (Håkansson Lindqvist, 2015), as competências digitais de professores (Aesaert et al., 2015; Pettersson, 2018a) e o papel das lideranças nesta transformação (Blau & Shamir-Inbal, 2017; Lindqvist & Pettersson, 2019; Pettersson, 2018b; Zong, 2017). Neste sentido, como se pode depreender pelo teor das referências recolhidas e analisadas no nosso estudo, a ideia do que é ou do que poderá ser uma escola digital surge muito acoplada a um conjunto de requisitos ou condições que, de acordo com o pensamento dos professores, será necessário assegurar para viabilizar a aplicação das potencialidades que as tecnologias teoricamente incorporam. Importa registar que, de entre as três categorias de requisitos emergentes dos resultados, é no Apetrechamento que se regista a maior percentagem de UR (49%), legitimando-se, assim, todos os investimentos em vista para a consolidação de uma escola digital através de programas e ações que possibilitem atualizar equipamentos e infraestruturas, como, aliás, se prevê no Programa de Digitalização para as Escolas (Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2020, de 21 de abril). Ainda no que respeita ao discurso das carências e que, no âmbito deste estudo, conceptualizamos como a Dimensão Estratégica inerente à compreensão do fenómeno da digitalização nas escolas, destaca-se, de forma tímida, um conjunto de referências que pontuam a necessidade de garantir nas escolas a existência de Recursos Humanos (4%) com formação na área do digital e com capacidade para manter não apenas a boa manutenção dos equipamentos informáticos, mas também a motivação necessária para apoiar o desenvolvimento das competências digitais dos alunos, em contexto de sala de aula, como também evidencia a literatura (Aesaert et al., 2015;Pettersson, 2018a). E, por fim, com uma expressão ainda mais diminuta no corpus analisado, regista-se um conjunto de referências que sublinham a necessidade de Formação de professores na área do digital (2%), o que, contrastando com o elevado número de estudos que sinalizam a necessidade de olhar para a formação como condição imprescindível para o sucesso da transição digital (Blau, & Shamir-Inbal, 2017), poderá espelhar já o reconhecimento do esforço que a nível nacional está a ser feito no âmbito do Plano de Capacitação Digital de Docentes (PCDD)2.
4.2 Dimensão pedagógica: reconhecimento do potencial das tecnologias digitais
Apesar de os resultados evidenciarem uma forte preocupação com equipamentos, recursos digitais e acesso a “uma boa internet”, convém ainda assinalar o número expressivo de referências que substanciam a Dimensão Pedagógica associada à representação sobre o que é ou poderá ser uma escola digital (30%). Neste estudo, em particular, indicando um reconhecimento explícito, por parte dos professores, dos ganhos e das vantagens do digital no trabalho escolar, muito bem documentado e discutido na literatura revista (Agélii Genlott & Grönlund, 2016; Glover et al., 2016; Jahnke et al., 2017). Desse reconhecimento, como sistematizado na Figura 2, destacam-se, em termos quantitativos, referências que acentuam o valor que as tecnologias poderão oferecer a dois processos considerados absolutamente fundamentais para a construção do conhecimento em contexto escolar - a aprendizagem e o ensino. De facto, e também em sintonia com as mais recentes orientações curriculares para o nível de ensino em que nos situamos, sobressai um conjunto de referências que aludem à Promoção das aprendizagens (13%) e à Diversificação das estratégias de ensino (10%), o que, por outro lado, contrasta com a baixa frequência de unidades de registo relacionadas com o reconhecimento do potencial pedagógico das tecnologias para a Avaliação das aprendizagens (1%).
4.3 Dimensão axiológica: reforço de valores considerados fundamentais
Por último, mas não menos importante para compreendermos as representações dos professores acerca do que é ou poderá ser uma escola digital e, por essa via, contribuirmos para ampliar o debate acerca do fenómeno da digitalização na escola, observa-se, nos resultados deste estudo, um terceiro grupo de referências que, pontuando um olhar mais crítico em relação às potencialidades do digital, destacam quatro categorias de valores e princípios pelos quais qualquer escola, mais ou menos digital, deverá orientar a sua ação: Inclusão, com 6% das referências analisadas, à qual se seguem, com igual percentagem (3%), as categorias Cooperação, Equilíbrio e Adaptabilidade. O conjunto destas categorias, além de ilustrar a emergência de novas preocupações do ponto de vista da instrução propriamente dita, expressas igualmente no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (Martins et al., 2017) - documento curricular de referência para a organização de todo o sistema educativo e para o trabalho das escolas - introduzem aqui uma dimensão de fundo que, apesar de pouco refletida na produção científica revista, espelha uma mudança fundamental na maneira como se equaciona o papel do digital no desenvolvimento global das pessoas que, não se limitando a uma utilização com benefícios estritamente académicos, assenta e reforça um conjunto de valores considerados fundamentais para um crescimento sustentável e uma convivência pacífica (UNESCO, 2017).
5.Conclusões
O estudo aqui apresentado procurou caracterizar e descrever o entendimento do que é ou poderá ser uma escola digital, à luz do pensamento de professores do 1.º CEB, discutindo os resultados apurados em articulação com resultados de estudos recentes e outros elementos e exigências que se refletem em documentos de referência e referenciais curriculares atuais. Além das ligações que se estabeleceram entre as evidências coligidas e determinadas categorias analíticas emergentes na literatura revista, a pertinência deste estudo para o desenvolvimento teórico do tema em apreço está ancorada no desenvolvimento de um sistema de categorias robusto, formado por 12 categorias analíticas que, em coerência com a abordagem fenomenológica adotada, oferecem uma descrição organizada da estrutura do fenómeno em estudo, expondo as peculiaridades inerentes à ideia de escola digital, considerando e valorizando a subjetividade presente nas práticas discursivas dos sujeitos inquiridos (Loureiro, 2006; Silva & Gomes, 2020). Aquelas 12 categorias, tal como apresentadas e interpretadas pelos investigadores, deram corpo a modelo conceptual formado por três dimensões que corroboram a natureza complexa e multifacetada do processo de digitalização e transformação digital das escolas, enfatizando, no caso, as componentes estratégica, pedagógica e axiológica. Emerge, assim, neste estudo uma ideia de escola digital que, num certo sentido, amplia a noção de “instituição educativa com um elevado nível de tecnologias digitais” (Ređep et al., 2020), destacando não apenas a necessidade de uma abordagem sistematizada de utilização desses recursos nos processos de ensino e de aprendizagem, mas também um conjunto de fundamentos que salientam a necessidade de elevar a educação a um nível qualitativamente superior. Para além dos contributos teóricos, o estudo agrega elementos de interesse para líderes escolares e outros agentes que se encontram envolvidos no desenvolvimento e implementação de estratégias e intervenções destinadas a fazer avançar a digitalização e transformação digital nas escolas. Em particular, do ponto de vista prático, este trabalho permitirá ter uma visão muito concreta das representações iniciais dos professores que integram o Projeto Escol@s Digitais, proporcionando uma base de reflexão sustentada em evidências para tomar decisões informadas e coletivamente deliberadas para responder ao desafio da digitalização e transformação digital das escolas do 1.º CEB do Município da Amadora. Apesar de tudo, importa registar o reconhecimento das limitações associadas à tentativa de compreensão objetiva de qualquer fenómeno educativo, assumindo-se assim uma leitura inevitavelmente parcial e muito restrita, marcada naturalmente pela própria capacidade dos investigadores em fazer o conhecimento progredir a partir do pensar fenomenológico (Loureiro, 2006; Silva & Gomes, 2020).