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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.12  Oliveira de Azeméis ago. 2022  Epub 25-Ago-2022

https://doi.org/10.36367/ntqr.12.2022.e620 

Artigo Original

Visita mediada (viagem formativa) na perspectiva da Educação na Cidade: Alguns aspectos teórico metodológicos

Mediated visit (formative trip) from the perspective of education in the city: Some theoretical and methodological aspects

Dilza Côco1 
http://orcid.org/0000-0001-8371-8517

Sandra Soares Della Fonte2 
http://orcid.org/0000-0002-9514-7202

Priscila de Souza Chisté Leite1 
http://orcid.org/0000-0003-2689-4180

Érika Sabino de Macêdo1 
http://orcid.org/0000-0001-6647-7176

1Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), Brasil

2Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Brasil


Resumo:

O artigo aborda aspectos metodológicos necessários a elaboração de roteiros de visita mediada a espaços da cidade. Tais roteiros integram proposta de formação de professores da educação básica, na área de ensino de Humanidades, sistematizada por um grupo de pesquisa que defende o conceito de Educação na Cidade, vinculado ao Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes - Brasil). Tem como objetivo explicitar as várias etapas e procedimentos desenvolvidos para produção de roteiros, denominados metaforicamente pelo grupo de “viagem formativa”. Com base em pressupostos lefebvrianos evidencia que a produção de roteiros de visita mediada envolve seis etapas distintas, porém articuladas, e que exige a adoção de diferentes técnicas de produção de dados (fotografia, registro documental, entrevista, mapas etc.). Para isso, recorre a dois exemplos de roteiros oriundos de pesquisas realizadas em cidades do Espírito Santo - Brasil. Por meio dos dados, mostra que a proposta de visita mediada ou “viagem formativa” tem potencial para revelar conflitos e contradições que marcam e constituem o espaço urbano. Dar visibilidade a esses elementos no processo de formação docente requer o deslocamento da morfologia física ao espaço social; superar uma visão social naturalizante e harmônica para uma ênfase nos conflitos e contradições; além da identificação das marcas da dor e do sofrimento que as contradições sociais impõem. Desse modo, o grupo de pesquisa entende que por meio de roteiros de visita mediada é possível estabelecer condições para olhar o espaço urbano sobre outros ângulos e fornecer elementos críticos para a elaboração de novos modos de organização do ensino na área de Humanidades.

Palavras-chave: Roteiro; Visita mediada; Educação na cidade; Ensino de humanidades.

Abstract:

The article addresses methodological aspects necessary for the elaboration of mediated visit itineraries to spaces in the city. These scripts are part of a proposal for training teachers of basic education, in the area of teaching Humanities, systematized by a research group that defends the concept of Education in the City, linked to the Federal Institute of Espírito Santo (IFES-BRAZIL). Its objective is to explain the various stages and procedures developed for the production of scripts, metaphorically called by the group “formative journey”. Based on Lefebvrian assumptions, it shows that the production of mediated visit itineraries involves six distinct but articulated stages, which require the adoption of different data production techniques (photography, documentary record, interview, maps, ...). For this, it uses three examples of itineraries from research carried out in cities in Espirito Santo- Brazil. Through the data, it shows that the proposal of a mediated visit or "training trip" has the potential to reveal conflicts and contradictions that mark and constitute the urban space. Giving visibility to these elements in the teacher training process requires the displacement of physical morphology to social space; overcoming a naturalizing and harmonious social vision to an emphasis on conflicts and contradictions; in addition to identifying the marks of pain and suffering that social contradictions impose. In this way, the research group understands that through mediated visit itineraries it is possible to establish conditions to look at the urban space from other angles and provide critical elements for the elaboration of other ways of organizin teaching in the Humanities area.

Keywords: Road map; Mediated visit; Education in the city; Humanities teaching.

1.Introdução

Por sua condição de país periférico, o Brasil sofre, de um modo mais exacerbado, as implicações da apropriação do espaço urbano pelo capital. Circuitos de riqueza, com seus sistemas de segurança, convivem com os aglomerados de miséria, com seus poderes paralelos ao estatal. A distribuição, o acesso e a qualidade de moradias, comércio, instituições de ensino, transporte coletivo, saneamento básico e infraestrutura, espaços e equipamentos de lazer, estabelecimentos de saúde revelam uma cidade segregada e fraturada.

A segregação urbana é uma das faces mais importantes da exclusão social. Ela não é um simples reflexo, mas também motor indutor da desigualdade. À dificuldade de acesso aos serviços e infraestrutura urbanos (transporte precário, saneamento deficiente, drenagem inexistente, dificuldade de abastecimento, difícil acesso aos serviços de saúde, educação e creches, maior exposição à ocorrência de enchentes e desmoronamentos, etc.) somam-se menores oportunidades de emprego (particularmente do emprego formal), menores oportunidades de profissionalização, maior exposição à violência (marginal ou policial), discriminação racial, discriminação de gênero e idade, difícil acesso à justiça oficial, difícil acesso ao lazer. A lista é interminável. (Maricato, 2001, p. 1).

Ao ser transformada em mercadoria, a cidade vive uma segregação que não apenas cinde, fragmenta e hierarquiza o uso e usufruto do espaço social, mas também produz experiências urbanas distintas. Carlos (2004, p. 62) entende que: “para uma imensa parcela da sociedade, a vida urbana constitui-se pela precariedade absoluta, envolvida num processo de trabalho dividido e sem conteúdo, numa cidade que não lhe pertence e com a qual não se identifica”. A partir dessa relação, a cidade se apresenta em sua aparência mais epidérmica como uma justaposição de fragmentos que em nada se articulam, como um amontoado de elementos físicos que a estruturam e a moldam: edifícios, luminárias, bancos, monumentos, lixeiras, pontos de ônibus, sinalização de trânsito, praças, calçadas, parques e jardins, ruas e avenidas entre outros. Nesse contexto, a relação que se estabelece com a cidade é de vivência. Sob a inspiração de Walter Benjamin, Adorno observa que o esvaziamento da vida humana é sua limitação ao momento integrativo no qual prevalece a vivência, isto é, a vida é tomada por eventos pontuais, singulares e intransferíveis. A vivência é apressada e imediata; nela, prevalece “[...] um estado informativo pontual, desconectado, intercambiável e efêmero, e que se sabe que ficará borrado no próximo instante por outras informações” (Adorno, 1996, p. 405). Desse modo, como pontua Cavalcante (2006), a obsolescência da vivência e do saber que dela advém é correlata da efemeridade da mercadoria e da perda do rastro histórico-social pela equivalência quantitativa que subjaz à troca mercantil: sob o poder do valor, tudo se iguala e ganha uma expressão monetária. Assim, as narrativas que nascem daí apresentam-se como trechos de histórias, episódios particulares que não fortalecem a memória comum e a experiência coletiva. Por essa razão, segundo Benjamin, a pobreza de experiência compartilhada pela humanidade se apresenta como uma nova barbárie, uma nova miséria: “Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?” (Benjamin, 1994, p. 115). O rompimento da relação da produção humana com o próprio humano nos torna clandestinos urbanos em nossa própria cidade. Nossa relação com ela é de alienação, de não pertencimento e de não reconhecimento: não a usufruímos de modo pleno, assim como não a compreendemos. A segregação socioespacial se impõe como um fenômeno estático e natural. Esvaziada a experiência em sua dimensão vivencial, a cidade é reduzida à sua morfologia física. Ao tomar como eixo de seus trabalhos o diálogo entre educação e cidade, o Grupo de Estudos e Pesquisas Educação na Cidade e Humanidades (Gepech) considera que o espaço urbano é uma produção humana. Porém, não se trata tomá-lo apenas como um conjunto de prédios, monumentos, edifícios, parques, estátuas etc. Como indica Lefebvre (2001, p. 52),

Se há uma produção da cidade, e das relações sociais na cidade, é uma produção e reprodução de seres humanos por seres humanos, mais do que uma produção de objetos. A cidade tem uma história; ela é obra de uma história, isto é, de pessoas e grupos bem determinados que realizam essa obra nas condições históricas.

Sob esse aspecto, para Lefebvre (2008), os espaços urbanos são constituídos por relações contraditórias. A cidade condensa a história dos grupos e dos conflitos que, sob certas condições históricas, realizaram- na. Entrar em contato com essa história invisibilizada de conflitos e contradições é uma ação insuficiente para a conquista e o exercício efetivo do direito à cidade, mas, nem por isso, menos importante. Nesse sentido, ainda segundo esse autor, estudar a lógica e a propriedade desses espaços demanda uma análise dialética de suas contradições. O Gepech tem compreendido que sua proposta de Educação na cidade pode contribuir com esse objetivo. Mesmo que limitada, essa proposta pode oferecer alguns antídotos contra essa relação vivencial com a cidade. Essa tarefa implica fortalecer a experiência urbana como um projeto formativo, mediado pelo acesso ao conhecimento sistematizado socializado pela instituição escolar. Segundo Adorno (1996), fazer experiência significa conjugar o viver a um pensar que alcance complexidade e densidade. Em outros termos, aliar a prática da vida a um pensar que saia dos clichês cotidianos. Essa convergência só é possível quando se recorre à atividade conceitual para compreender a vida. O conceito pede mediação, pede que saiamos de um mundo plasmado, empírico, avaliado em sua utilidade, aplicabilidade, para compreender a conexão de um viver em si relativamente uníssono (Adorno, 1996). Fazer experiência é afastar tudo que é imediato, sem reflexão, a fim de compreender a vida e elaborar uma narrativa que seja assimilada, prolongada no tempo, tendo em vista a construção consciente de uma tradição; compartilhar e revigorar “[...] palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel” (Benjamin, 1994, p. 114). Em contraste com a vivência, a experiência representa "[...] a continuidade da consciência em que perdura o ainda não existente e em que o exercício e a associação fundamentam uma tradição no indivíduo [...]” (Adorno, 1996, p. 405). Aqui assume relevância a atividade teórico-conceitual como momento de negatividade e, portanto, de afastamento do imediato. Com base nessa sustentação teórica, assume-se que as visitas mediadas pela cidade como uma “viagem formativa”. Essa proposição significa defender a necessidade da experiência e do conceito para a formação de novos sujeitos. A “viagem formativa” desenvolvida pelo Gepech assimila essa reflexão e propõe um deslocamento: de uma relação vivencial para uma experiência com a/da cidade. Em outras palavras, de uma relação individual e fragmentada com a cidade para uma relação que perceba as determinações que constituem esse espaço social, que se transforme em saber elaborado comum, partilhado, que possa ser transmitido para as gerações. Mas por que optamos por situar as visitas mediadas como viagem? Na língua alemã, formação diz-se Bildung. Suarez (2005) chama atenção para algumas dimensões da Bildung. Dentre elas, duas nos parecem muito salutares para guiar o que chamamos de “viagem formativa”. A Bildung é trabalho. O trabalho forma, modela; isto é, o trabalho é mediação ou agir formativo; apresenta-se como um processo prático no qual, pela ação sobre o mundo, forma-se o objeto (mundo humanizado) e o próprio sujeito que trabalha como humano. Segundo Suarez (2005), a Bildung também é viagem. O sentido mais comum de viagem é a superação de tempo-espaço, isto é, o deslocamento do sujeito para um outro lugar que não o de sua moradia familiar. Há aí um trânsito geográfico de um ponto para outro. Ortiz (2006, p. 26) nos ajuda a ampliar essa compreensão:

Mas o que é realmente a viagem? Eu diria de forma preliminar: é um deslocamento no espaço. Ela é sempre passagem por algum lugar e sua duração se prolonga entre a hora da partida e o momento do regresso. O viajante é alguém que se encontra suspenso entre esses dois referenciais que balizam o seu percurso. Nesse sentido, a viagem se aproxima dos ritos de passagem. Ela implica na separação do indivíduo de seu meio familiar, depois, uma prolongada estadia on the road, para enfim reintegrá-lo em sua própria casa, em sua terra de origem. Sublinho este aspecto de separação. Ele contém a ideia de que uma pessoa sai de um mundo anterior para penetrar em um outro inteiramente novo. [...] O processo é na verdade uma “viagem” durante a qual ele experimenta uma “outra” realidade […].

Quando afirmamos que as visitas mediadas se situam em um contexto maior de uma “viagem formativa”, não indicamos apenas que fomentaremos um caminhar na cidade, um passeio intencionalmente organizado em alguns lugares citadinos. A viagem possui uma nuança metafórica de evocar a saída do familiar, da vida cotidiana e ordinária, para visitar o extraordinário. Isso significa, segundo Suarez (2005), que a viagem tem como lei a alteridade; aventurar-se no encontro com a alteridade e consigo mesmo. Em outros termos, ao experimentar o diverso de si, esse “lugar” distante do que lhe é mais habitual, o viajante tem a chance de retornar e compreender-se melhor, de modo mais enriquecido: formação e autoformação se dão as mãos. Em “O conto da ilha desconhecida”, José Saramago (1998) nos oferece uma metáfora literária para essa dimensão da “viagem formativa”: seu protagonista insiste em uma viagem rumo a uma ilha incógnita. Navegar e dirigir-se para o desconhecido: essa ação implica, para Saramago, conhecer um novo lugar e nos conhecer nesse outro lugar.

[...] mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem eu sou quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas. Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós (Saramago, 1998, p. 40-41).

Sob a figuração do literato português, a “ilha desconhecida” é um lugar, é o barco por meio do qual se viaja (também batizado como “ilha desconhecida” no conto), é o próprio processo de busca, é o esforço, ao mesmo tempo, sereno e temeroso de aventurar-se rumo ao insólito e ignorado. Assim, a potência da metáfora da viagem está em evocar mudança, transformação, movimento. Nesse sentido, não residiria o sucesso do trabalho educativo em nos transformar em viajantes? Por isso, “A “grande viagem” que caracteriza Bildung não consiste em ir a um lugar qualquer, não importa aonde, mas, sim, lá onde nos possamos formar e educar” (Suarez, 2005, p. 195). Portanto, as visitas mediadas não representam apenas a ida a lugares da cidade; articuladas com as outras ações do grupo de pesquisa, elas pretendem fomentar uma nova formação subjetiva, cultural, a partir do olhar apurado que, pela mediação teórica, problematiza os conflitos que se materializam na cidade. Por sua vez, em “Vidas Secas”, Graciliano Ramos traz para a cena literária outras dimensões da viagem. Fabiano, Sinhá, a cadela Baleia, o filho maior e o filho menor constituem uma família de retirantes forçados a sair de seu local de origem. Viajam de regiões desérticas do nordeste brasileiro rumo ao sul litorâneo, terra desconhecida para eles. É uma viagem impulsionada pelo sofrimento e pelo amargor da vida: crianças sem estudar, ausência de chuva, plantio que não prospera, fome, falta de trabalho, sede, seres humanos embrutecidos. Porém, essa partida também contém esperança:

Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa, porque não sabia como ela era nem onde era. [...] E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. [...] Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá (Ramos, 2010, pp.127-8).

A viagem desses retirantes é de fuga da seca, assim como viajam tantos no mundo em decorrência de desastres ecológicos, perseguições políticas, ameaças sociais, guerras. É uma errância para sobreviver. Como já mencionado, nossa condição é clandestina em nossa própria cidade. Estabelecemos com ela uma relação vivencial. Não por acaso, o espaço citadino de modo imediato como um amontoado de prédios, ruas, monumentos, enfim, fragmentos sem articulação. É uma cidade que exclui, que segrega, que é desigual. A proposta de “viagem formativa” implica colocar em xeque essa relação vivencial que expressa a miséria humana decorrente da exploração do capital, da coisificação do humano da desigualdade, da injustiça socioespacial. A pesquisa realizada pelo Gepech assume essa preocupação. A educação na cidade implica, portanto, revelar a cidade como espaço de disputa/cisão socioespacial. De acordo com o exposto até o momento, os traços constituintes do que chamamos “viagem formativa” envolve: o deslocamento da morfologia física ao espaço social, de uma visão social naturalizante e harmônica para uma ênfase nos conflitos e contradições; e a identificação das marcas da dor e do sofrimento que as contradições sociais impõem. Para tanto, a “viagem formativa” deve nos fazer superar a condição de retirantes em nosso próprio espaço citadino. Dele precisamos nos afastar, sem nunca dele se desprender. Esse afastamento implica fazer a experiência pela mediação dos diversos conhecimentos elaborados (ciências, filosofia, arte, ética e política). Propõe-se, então, uma errância, intencionalmente organizada, que vá a contrapelo dos mecanismos alienadores e alienantes. Ao fazer isso, temos a chance de compreender o mundo e nos compreender neste mundo, criado por nós, mas cuja lógica se agiganta a ponto de nos submeter em sua teia de desigualdade. A proposta de “viagem formativa” carreia uma dose de esperança de chegar a um lugar melhor, de reapropriação da cidade pelos seus criadores, de remodelação da vida a partir das necessidades sociais que tenha o humano como seu sentido primeiro e último. Portanto, a “viagem formativa” também envolve o devir: a tarefa de compreender a cidade e o que nela somos é também um exercício de indagar como enfrentar as contradições existentes e o que desejamos ser:

[...] então a questão sobre qual tipo de cidade queremos não pode estar divorciada da questão sobre qual tipo de pessoas desejamos ser, quais tipos de relações sociais buscamos, qual relação nutrimos com a natureza, qual modo de vida desejamos. [...] O direito à cidade está, por isso, além de um direito ao acesso àquilo que já existe: é um direito de mudar a cidade mais de acordo com o nosso desejo íntimo. A liberdade para nos fazermos e nos refazermos, assim como nossas cidades, é um dos mais preciosos, ainda que dos mais negligenciados, dos nossos direitos humanos (Harvey, 2009, p. 9).

2.Etapas metodológicas de elaboração de proposta de “viagem formativa” na cidade

O Gepech tem ensaiado a criação de percursos de visita para subsidiar ações em cursos de formação continuada com docentes da Educação Básica. Esse processo tem sido organizado em seis etapas. A primeira etapa, a criação de proposta inicial de percurso de visita, consiste no trabalho interno do grupo, iniciado pelo pesquisador que, em decorrência do seu objeto, percorre a cidade. A partir do que foi observado durante a caminhada pela cidade, o pesquisador realiza registros diversos (escritos, orais, imagéticos etc.) que são relacionados com os estudos teóricos e bibliográficos. Diante desses dados iniciais, é construída uma proposta de percurso de visita à cidade. Não um percurso aleatório, mas uma proposta embrionária que se relaciona com um determinado objeto de pesquisa que tem como foco apresentar os espaços urbanos de modo crítico e contraditório. A segunda etapa, validação do percurso de visita à cidade pelos integrantes do grupo, ainda se refere a uma etapa interna, e necessita ser vivenciada por integrantes do grupo, como modo de validar a proposta, antes de efetivar a formação de professores. Integra o momento de planejamento da formação de professores. A terceira etapa refere-se ao curso para professores da Educação Básica. Como mencionado, o curso é organizado em momentos que envolvem discussão teórica, visitas mediadas à cidade, oficinas de arte e de criação de percursos de visita, estratégias de validação dos materiais educativos e apresentação, por parte dos professores cursistas, de propostas pedagógicas ou relatos de experiências. No curso, busca-se inicialmente socializar os conhecimentos que os professores participantes possuem acerca da cidade, assim como os resultados das pesquisas do Gepech. Assim, eles são incentivados a criarem itinerários de visita à cidade a partir desses conhecimentos. Os cursistas são convidados a criarem percursos que exigem deles um caminhar imaginativo, que tenta reviver percursos já realizados e retomar a experiência e o conhecimento sobre a cidade. Nesse momento, o Gepech avalia e replaneja, em parceria com os cursistas, o roteiro embrionário elaborado na primeira etapa e validado internamente na segunda. A partir da reformulação realizada, empreende-se a quarta etapa que se refere à execução do percurso de visita criado e validado nas três etapas anteriores. Dessa etapa participam os professores cursistas e os pesquisadores do Gepech. Durante a caminhada, os participantes vão percorrendo a cidade, parando em espaços estratégicos para conversar sobre conflitos e contradições que estão velados ali. A partir daquilo que a cidade apresenta ser, os participantes discutem como o espaço urbano chegou a forma atual e por qual motivo. Na quinta etapa, os professores avaliam, por meio de questionário sistematizado, o percurso de visita experienciado e, a partir dessa avaliação, o roteiro passa a compor o material educativo elaborado pelo grupo de pesquisa quanto àquele espaço citadino. A sexta etapa consiste no trabalho final no qual cada professor participante da formação propõe um novo percurso de visitação que atenda às demandas da sua realidade e que se vincule ao seu contexto de intervenção escolar. Os cursistas, portanto, apresentam relatos de experiência ou propostas pedagógicas nos últimos encontros do curso, como modo de compartilhar os diferentes percursos de visita elaborados. Em função da pandemia da Covid-19 iniciada em 2020, essas etapas ganharam adaptações, mas sem abandonar as bases teóricas fundamentais. Uma série de rearranjos foram realizados. O principal deles foi a suspensão do curso de formação de professores, mas se manteve a elaboração do material educativo no qual se propõe trajetos de visitação da cidade. Mantivemos, portanto, o fluxo de produção dentro das etapas de reelaboração e validação da proposta, com a requerida criticidade e intencionalidade educativa, conforme Côco, Chisté, Della Fonte & Macêdo (2021). A elaboração do material e a sua validação foram adaptadas e se valeram da própria diversidade da composição dos integrantes do Gepech, que agrega profissionais dos vários níveis de ensino, com múltiplas áreas de formação. Assim, no final do primeiro semestre de 2021, foi planejado que cada material educativo seria avaliado por uma banca com dois participantes do grupo que atuam na Educação Básica. Eles leriam com antecedência o material, preencheriam o formulário de avaliação e ainda fariam uma exposição oral de julgamento em um encontro via Google Meet entre os membros do grupo.

3.Algumas propostas de “viagem formativa” do Grupo de Pesquisa XXX

Desde 2016 o grupo trabalha na formulação de propostas de “viagem formativa” direcionadas à educação básica. No ano de 2021 duas novas propostas foram elaboradas, identificadas nesse texto como pesquisas 1 e 2. A primeira abordou conflitos socioespaciais que se materializavam em modelos de habitação na forma condominial na Região Metropolitana de Vitória e o que revelam ou ocultam a história, a organização, o perfil de moradores e a gestão desses condomínios quanto ao direito à cidade. Tem-se como objetivo geral revelar a cidade como espaço de disputa e cisão socioespacial, a partir da prática espacial da habitação, de modo a deslindar suas contradições e a sistematizá-las em material educativo a ser compartilhado e avaliado por professores da educação básica. A fim de trazer essa discussão à baila, optou-se por estudar o condomínio Residencial Vila Velha, no bairro Jabaeté, município de Vila Velha no Estado do Espírito Santo. A análise dos dados sinaliza a dominância da lógica do capital que impõe a moradia como habitat. Os processos de homogeneização submetem os espaços da cidade ao negócio e à sua apropriação privada. No condomínio Residencial Vila Velha, a interferência do mercado imobiliário ocorre pela mediação do Estado, pois tal conjunto decorreu do âmbito das políticas públicas, mais precisamente do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), sendo os projetos e as obras executadas por empresas privadas. Ressalta-se ainda que os processos de homogeneização se acompanham da fragmentação e hierarquização espacial. O Residencial Vila Velha localiza-se na periferia do município de Vila Velha em um bairro considerado de “risco social”. Os espaços comuns entre os moradores são restritos, assim como os próprios apartamentos, construídos com materiais baratos e sem refino no acabamento. Isso significa que, ao estar submetida à lógica do valor, essa moradia do PMCMV na forma condominial expressa a segregação da cidade e de seus espaços. Por mais que prevaleça a lógica racionalizada do habitat nesse condomínio os habitantes do Residencial Vila Velha podem estabelecer com sua moradia algo que escapa à lógica da mercadoria. Por vezes, porém, apropriam-se do seu apartamento como a realização de um sonho e a conquista de um direito, abrigo necessário a todo ser humano. A proposta desenvolvida na pesquisa 1 foi intitulada “Vamos dar um rolê por Vila Velha?” e convida os/as docentes a “pegar” a linha 654 do Transcol (sistema metropolitano integrado de transporte público), rumo ao bairro Jabaeté, até “saltar” na frente dos “predinhos”, com intuito de ampliar as possibilidades de análises práticas sobre o tecido urbano vilavelhense e sobre a prática de habitação do Residencial Vila Velha. Consideramos que, durante o trajeto que a linha 654 percorre, há muitas possibilidades de análises sobre a produção social do espaço em Vila Velha. O desembarque proposto é no ponto final do bairro, justamente em frente aos “predinhos”. A partir daí, foi definido os seguintes pontos de observação e diálogo: diante do residencial, na avenida França; um olhar de cima, a partir da ocupação por movimentos de moradia nas adjacências do RVV; um olhar ao redor, no entorno imediato do RVV; um olhar de dentro do residencial e conversas com moradores. Abordar esses diferentes ângulos e pontos de análise do espaço urbano do condomínio, permite apreender repertório variado de conhecimentos que mostram problemas, desigualdades e potencialidades que podem estimular o desejo de mudanças na vida socio- espacial. Em relação a pesquisa 2, esta elaborou proposta de “viagem formativa” para explorar conhecimentos sobre um bairro da cidade de Serra, que integra a região metropolitana de Vitória, no Espírito Santo. Essa proposta convida os docentes a conhecerem o bairro em uma perspectiva macro e micro. Em nível macro, a “viagem formativa” propõe utilizar o transporte público para percorrer o bairro e o seu entorno. Desse modo, o participante pode verificar conexões da vida no bairro com outras influências, como indústrias e comércio do entorno, circulação viária devido a rodovias federais, proximidade com faculdades, hipermercados e terminais de ônibus que ligam as diferentes regiões da cidade. Em nível micro, a “viagem formativa” propõe conhecer o bairro, por meio de caminhadas que explora pontos localizados em três regiões distintas: parte central, parte de encosta e parte de planície. Nessas três camadas geográficas, o bairro mostra conflitos e desigualdades distintas. Na parte central é a região com maior benfeitorias produzidas ao longo do tempo, como comércio local desenvolvido, ruas pavimentadas, praças, serviços de transporte público, de educação e de saúde etc. A partir dessas condições, nota-se a presença de atrativos para uma nova etapa de ocupação que revela disputa pelo espaço. No lugar de moradias lineares e simples da época dos primeiros moradores, na atualidade ocorre a presença de empreendimentos imobiliários verticais em grande escala, direcionado ao público de maior poder aquisitivo. Na região de encosta, os moradores continuam com restritas condições de circulação (becos, escadarias), ausência de áreas de lazer, bem como serviços de educação e saúde. Quanto à região de planície, esta apresenta as piores condições, pois sofre com alagamentos nos períodos de chuva, queimadas da vegetação de turfa no período da seca, condições de moradias precárias, ausência de rede de esgoto e pavimentação, dentre outros desafios. Desse modo, uma única região comporta realidades diversas, evidenciando, assim, a necessidade de colocar a vista velhos e novos conflitos que atravessam a vida nesse lugar. Nesse sentido, a proposta de “viagem formativa” elaborada na pesquisa 2 visou produzir outros modos de ver, sentir e pensar a realidade da vida no espaço urbano e assim ter condições mais enriquecidas para propor o trabalho educativo sobre a produção desse espaço citadino, na perspectiva do direito à cidade.

4.Considerações finais

Nesse texto, buscamos apresentar fundamentos teóricos e metodológicos para elaboração de roteiros de visita mediada a espaços urbanos, com objetivos formativos alinhados ao conceito de Educação na Cidade. Esses roteiros, também denominados de “viagem formativa”, foram/são desenvolvidos pelo grupo de pesquisa como importante recurso para compor ações de formação de docentes da educação básica, vinculados ao campo do ensino de Humanidades. Nesse sentido, o artigo explicitou a defesa dos conceitos de experiência e de Bildung como balisadores para estabelecer relações analíticas mais aprofundadas sobre conflitos e contradições presentes nos espaços urbanos. Por meio desses conceitos, entende-se que é possível interagir, analisar e refletir sobre a realidade urbana, superando uma visão simplista, imediata, superficial que se limita aos aspectos da aparência. Assim, os roteiros de visita mediada propostos pelo Gepech requerem uma elaboração cuidadosa que envolve seis etapas, desde a imersão do pesquisador a fim de compreender e identificar os lugares e pessoas mais significativas para levantamento dos dados e elaboração do protótipo inicial do roteiro, passando pela validação técnica e com o público-alvo, até ser redimensionado a partir de contribuições dos participantes das formações. Para cada etapa é necessário planejamento específico e a adoção de técnicas variadas como elaboração de mapas, registros fotográficos, textos escritos e documentais, além de entrevistas. A ocorrência da pandemia de Covid-19, nos anos de 2020 e 2021, implicou a superação de alguns desafios aos pesquisadores, já que tiveram que realizar ajustes nas etapas e nos procedimentos de elaboração dos roteiros, especialmente com relação às pesquisas que demandavam encontros presenciais. Contudo, os recursos digitais de comunicação foram a saída mais viável para proceder os ajustes necessários e prosseguir com a produção dos roteiros, conforme sinalizado nos exemplos descritos. Nesse universo de discussões, a partir dos conceitos implicados na Educação na Cidade, os roteiros de visita mediada constituem uma estratégia concreta de reapropriação da cidade de modo a gerar novos olhares e possibilidades de interagir, viver e atuar no espaço urbano, com especial destaque para o contexto do trabalho pedagógico realizado em escolas públicas brasileiras. Fomentar e instigar uma nova qualidade do ver e compreender a cidade junto aos professores da Educação Básica constitui a direção das pesquisas do grupo que ora se abre para os demais interessados sobre o assunto.

5.Referências

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Recebido: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2022

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