1.Introdução
Homeschooling é a palavra em língua inglesa que, originária dos Estados Unidos da América, tem designado a modalidade de educação que ocorre na casa dos alunos, sem a frequência a uma instituição de ensino - embora na maior parte dos países onde é permitida, seja exigida a matrícula escolar -, sendo realizada sob a responsabilidade dos pais, que, ao final do período letivo, devem comprovar que seus filhos receberam educação em conformidade com aqueles que frequentaram a escola (Vasconcelos, 2021). Em suas práticas cotidianas, as famílias adeptas do homeschooling usam tanto a modalidade de educação a distância, como a educação online nos espaços de cibercultura, cada vez mais capazes de envolver “não só um conjunto de interfaces para socialização de informação e conteúdos de ensino e aprendizagem, como também, e, sobretudo, as interfaces de comunicação síncronas e assíncronas” (Santos, 2019, p.70). No Brasil a nomenclatura utilizada, na atualidade, para conceituar essa prática é educação domiciliar. Já em Portugal, país onde ela nunca deixou de ser permitida, embora não fosse estimulada pela legislação, é chamada, desde os seus primórdios, de educação doméstica ou ensino doméstico, nome que ainda é previsto na normatização vigente (Vasconcelos & Morgado, 2014). A educação doméstica foi recorrente, durante o século XIX, particularmente adotada nas camadas mais favorecidas da população ou para o ensino de meninas, considerando que as escolas eram escassas e tratadas com inúmeras reservas por uma parcela significativa da sociedade, até mesmo no que se refere ao medo das epidemias mais presentes naquela época. Nesse sentido, a educação doméstica, cujas origens remontam ao século XIX, de acordo com nosso outro estudo (Vasconcelos, 2005), tratava-se de uma modalidade de educação que ocorria na casa do aprendiz, na esfera privada, na qual os pais contratavam, mediante sua livre escolha, os mestres, professores particulares ou preceptores, para ministrar os conteúdos e as habilidades escolhidas a seus filhos e filhas, no tempo e disposição exclusivamente determinados por eles. Na atualidade, demandada por inúmeras famílias em todo o mundo, esse movimento pela educação na esfera privada sob a responsabilidade de pais e mães volta a ser pleiteado, trazendo uma discussão intensa sobre a perspectiva de desescolarização da sociedade. O estudo em pauta tem como objetivo descrever aspectos da educação doméstica no Brasil e em Portugal, sinalizando a origem dessa prática na atualidade e suas principais distinções nos dois países, especialmente no que concerne à regulamentação, considerando que no Brasil é proibida e em Portugal é regulamentada por Lei. Em um plano mais específico, pretende-se mostrar como a prática do homeschooling é uma influência norte-americana que ganha adeptos por todo o mundo e se torna, cada vez mais, um desafio contemporâneo para a educação.
2.Metodologia do estudo
Para a análise das origens e distinções da prática de homeschooling no Brasil e em Portugal, o estudo refere-se a uma pesquisa qualitativa e documental, que partiu da análise da legislação referente ao assunto nos dois países. Nesse sentido, foi realizada, inicialmente, uma investigação exploratória, na qual buscou-se mapear os diplomas legais exarados sobre essa modalidade de ensino, tomando como recorte temporal a década de 2000, uma vez que a procura por essa modalidade intensifica-se neste período. Trata-se, portanto, de uma investigação qualitativa e exploratória, que faz parte de um projeto de pesquisa maior, na qual se pretende o que assinala Zanette (2017): “o uso do método qualitativo gerou diversas contribuições ao avanço do saber na dinâmica do processo educacional e na sua estrutura como um todo” (p. 159). Neste artigo em particular, o foco está voltado para fontes, essencialmente legislativas, tanto brasileiras, quanto portuguesas. Além disso, os autores Neri de Souza, Neri de Souza e Costa (2014) alertam para a importância da definição da questão problema e de sua emergência a partir das fontes. Nessa perspectiva, foi com base na pesquisa exploratória, a qual pressupõe “proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses” (Silveira & Córdova, 2009, p.35), que surgiu a necessidade de se localizar a origem da prática do homeschooling na atualidade, no Brasil e em Portugal, e suas principais distinções nos dois países, desde os anos 2000. Dessa forma, como afirmam Costa e Neri de Souza (2017, p. 17), na “investigação qualitativa envolta em diversidade e complexidade de dados não-estruturados e não-numéricos, com determinadas particularidades e subjetividades”, é preciso o “olhar” atento do pesquisador, para encontrar o seu objeto, analisá-lo e discerni-lo. Para tanto, com a intenção de complementar a pesquisa documental, visando acrescentar aspectos empíricos ao levantamento da legislação pesquisada, foram entrevistadas duas famílias, uma residente em cada país, Brasil e Portugal, que utilizam essa modalidade para educar seus filhos e filhas, prescindindo dos espaços escolares para esse fim. No Brasil, a família entrevistada reside no estado de Minas Gerais, na Mesorregião do Vale do Rio Doce, onde ficam as cidades de Governador Valadares e Ipatinga, tendo em vista a difusão do modelo norte- americano de homeschooling nessa região. Essa escolha foi corroborada no estudo de Vieira (2012, p. 28), quando apresenta a amostra de questionários aplicados a “62 pais educadores brasileiros”, nos quais dos 59 respondentes, 55,9 % residiam no estado de Minas Gerais, embora apareçam mais 11 estados listados com famílias praticantes da educação domiciliar (Vieira, 2012, p.69). Cabe ressaltar que a família brasileira teve seu pleito para educar os filhos na casa negado diante dos órgãos responsáveis pelo cumprimento das determinações legais, tanto das secretarias de educação local, quanto do poder judiciário, respondendo a processos civis e criminais, de acordo com o que estabelece a legislação, como medida de punição para pais que não enviam os filhos em idade de educação obrigatória para a escola. A família portuguesa vivia em uma cidade na Região do Centro de Portugal, na divisa com a Área Metropolitana de Lisboa. A educação na Região do Centro era, na ocasião da entrevista, administrada pela Direcção Regional de Educação (DREC), cujo Relatório, relativo ao período de 2002 a 2009, demonstrava, por meio de gráficos, que o ensino doméstico constituía-se na modalidade mais procurada em relação ao ensino individual, registrando-se nela 11 alunos e apenas um aluno na modalidade de ensino individual, totalizando 12 alunos, no período, em modalidades diferentes da escolarização. A Direcção Regional de Educação conclui o seu Relatório afirmando que havia uma evolução para essa modalidade nos últimos sete anos, a partir de 2002, sugerindo que, tal fato “demanda uma nova atitude perante a realidade, de maior colaboração entre os vários intervenientes e, mesmo, um acompanhamento partilhado/reflectido” (Portugal, Direcção Regional de Educação, 2009, p. 11). As entrevistas com as famílias foram realizadas durante a pesquisa de campo em meados dos anos de 2010 e 2011, tendo em vista que o objetivo do estudo envolve examinar a origem dessa prática nos dois países. Para resguardar a privacidade dos entrevistados, as famílias serão identificadas pela nacionalidade, tratadas portanto, por família brasileira e família portuguesa. A questão de pesquisa que norteou as entrevistas utilizadas no estudo em pauta refere-se exclusivamente a uma pergunta semi-estruturada: Como a família tomou conhecimento do homeschooling? A questão de estudo foi proposta às duas famílias, tanto à família portuguesa que tem o ensino doméstico consentido por lei, como aquela que considera ter negada essa “liberdade de escolha”, a família brasileira, levando-se em conta, ainda, as peculiaridades presentes nos contextos português e brasileiro. As entrevistas com ambas as famílias foram gravadas, desgravadas e transcritas. Assim, os procedimentos metodológicos aplicados pretenderam aproximar a questão norteadora ao problema de investigação, através da consulta às fontes, por meio das quais foi realizado “um cerco em torno de um problema”, conforme definição do ato de pesquisa dado por Gatti (2002, p.62). Segundo a autora: “É necessário escolher instrumentos para acessar a questão, vislumbrar e escolher trilhas a seguir e modos de se comportar nessas trilhas, criar alternativas de ação para eventuais surpresas, criar armadilhas para capturar respostas significativas” (2002, p. 62 - 63). Portanto, dentre as trilhas escolhidas para o percurso nesta investigação, iniciou-se com uma pesquisa documental, na qual foram utilizadas como fontes de pesquisa a legislação de cada país para, a seguir, analisá-la diante dos depoimentos das famílias praticantes de homeschooling.
3.O homeschooling na legislação dos dois países
3.1 A educação domiciliar no Brasil
No limiar da República brasileira, pouco a pouco, a partir de 1889, o projeto de escolarização da população, como uma das medidas decorrentes da intervenção estatal do governo do estado no governo da casa (Mattos, 1994), vai imputando credibilidade às escolas frente aos outros processos de escolarização, até as tornarem hegemônicas na legitimidade de educar. Contudo, esse processo permanecerá “em campanha” ao longo de todo o século XX, com movimentos periódicos que buscavam promover o acesso e a igualdade de oportunidades, chamando a atenção para a importância da escolarização da população (Faria Filho, 2000; Cury, 2021). Ainda que as Constituições republicanas brasileiras não explicitem com clareza os limites entre a educação na casa e na escola até 1988, a menção à obrigatoriedade da frequência presente desde a Constituição Federal (CF) de 1934 (Brasil, 1934), sugere a determinação de escolarização a partir de então. Daquela para a última Constituição, a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), esse princípio somente se intensificou - em que pesem as interpretações diversas -, e a legitimidade de ensinar foi se tornando exclusividade da escola, a tal ponto que as palavras educação e escola foram usadas, muitas vezes, como sinônimas, sem se conceber educação como modalidade de ensino fora da instituição escolar. No entanto, nos anos 2000, o pleito por educar os filhos na casa e não na escola, ressurge, em diferentes circunstâncias que não tem relação com seus antecedentes históricos, mas que os trazem à tona. Esse movimento vai se denominar, hodiernamente no Brasil, de educação domiciliar, por ser essa a designação que adquire em grande parte dos Projetos de Lei (PLs) apresentados no Parlamento brasileiro, buscando a regulamentação da matéria (Vasconcelos & Boto, 2020; Rosa & Camargo, 2020). Para regulamentar a matéria já foram apresentados em torno de 17 PLs à Câmara dos Deputados e ao Senado, alguns aguardando apreciação apensados ao PL n. 3.179/2012 de autoria do deputado Lincoln Portela, ao qual todos os Projetos de Lei posteriores, que tratam do mesmo assunto, foram apensados. A partir do ano 2000, tem-se em torno de 16 PLs tramitando entre a Câmara e o Senado sobre o tema, o que totaliza quase uma média de um Projeto de Lei por ano. Essa demanda de apresentação de PLs ao Parlamento brasileiro para a regulamentação da educação domiciliar no Brasil, somente vai diminuir em 2020. Notadamente, há uma tentativa de regulamentação via lei federal, conforme estabeleceu o Supremo Tribunal Federal em 2018, ao ser provocado via Recurso Extraordinário, para se posicionar sobre a temática. No entanto, a educação domiciliar no Brasil permaneceu como uma matéria não regulamentada e, portanto, não permitida. Isto ficou claramente disposto no Acordão do ministro Alexandre de Moraes, após o julgamento do Recurso Extraordinário que chegou ao Supremo Tribunal Federal, por iniciativa de uma família de Canela que pretendia educar sua filha em casa. Segundo a decisão do STF: “4. O ensino domiciliar não é um direito público subjetivo do aluno ou de sua família, porém não é vedada constitucionalmente sua criação por meio de lei federal, editada pelo Congresso Nacional” (Supremo Tribunal Federal, 2019). Assim, até que haja uma lei federal regulamentando essa modalidade, ela não é permitida no território nacional, deixando as famílias que a praticam sujeitas às penalidades previstas na legislação para os pais que não matriculam ou enviam os filhos às escolas. Nos anos de 2020 e 2021, o governo Bolsonaro tomou como prioridade a regulamentação da matéria, a despeito de todas as demais prioridades que a educação no país demandava. Assim, convocou a deputada Luísa Canziani para relatoria do PL que pretendia regulamentar a educação domiciliar no país. A deputada, desde então, vem tentando estabelecer uma normativa que garanta, também, a matrícula das crianças e adolescentes nas escolas, avaliações periódicas, currículos conforme as diretrizes nacionais, algo semelhante ao modelo português, mas, ainda assim, encontra muita resistência à aprovação, aguardando condições mais propícias à relatoria para ir ao plenário do Parlamento (PL n. 2.401/2019).
3.2 O ensino doméstico em Portugal
Apesar de pouco registrada, a educação doméstica era uma “modalidade de ensino” comumente aceita e praticada no início do século XIX em Portugal. Fernandes (1994) observa que, em Portugal, ela era “até certo ponto” controlada pela “Junta da Directoria dos Estudos e Escolas”, o que indica um estatuto instituído para a sua realização: “A instrução de filhos ou sobrinhos, pelos pais ou pelos tios no interior do lar, não carecia de concessão de licença precedida de exame ao respectivo ‘mestre’” (p. 201). Fernandes (1994, p. 200), acerca da realidade portuguesa, afirma, ainda, que “o ensino doméstico se achava enraizado nos costumes nacionais”. Desde a primeira infância, na casa, enquanto as amas encarregavam-se das crianças na “primeira criação”, as aias “desempenhavam funções mais complexas”, ocupando-se da sua educação. No que se refere à atualidade, a Constituição da República Portuguesa de 02 de abril de 1976, que entra em vigor no dia 25 de Abril de 1976, em seu preâmbulo da VII Revisão Constitucional datada de 2005, explicita que a 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, derrubou o regime fascista, o que representou “uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa”. A seguir, a Assembleia Constituinte reafirma “a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático (...)”. Logo, em seu artigo 43º intitulado Liberdade de aprender e ensinar assegura a liberdade de aprender e ensinar. Muito embora esse artigo pudesse, por si só, garantir o ensino doméstico ao abrigo da liberdade de aprender e ensinar, os artigos 73 º, 74 º e 75 º do capítulo III que trata dos direitos e deveres culturais, respectivamente intitulados: Educação, cultura e ciência; Ensino; Ensino público, particular e cooperativo; já estabelecem regras mais restritivas, mas que, no entanto, não limitam à educação ao sistema de escolarização, apesar da obrigatoriedade prevista. O item 2 do artigo 73º, assegura que o Estado deve promover a democratização da educação e as demais condições para que a educação seja “realizada através da escola e de outros meios formativos” (Portugal, 1976). O artigo 74º, por sua vez, estabelece que “Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar. 2. Na realização da política de ensino incumbe ao Estado: a) Assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito”. Ainda no artigo 75º: “1. O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população. 2. O Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei” (Portugal, 1976). Todavia, até adiantado o século XX, a legislação portuguesa admitia o ensino individual ou doméstico, como se pode constatar pela Lei nº 2.033, de 27 de junho de 1948, que estipulava: “1. O ensino particular pode ser ministrado (…) individualmente. 2. O ensino doméstico, ministrado individualmente no domicílio (…) por parentes até o 3º grau ou por pessoas que vivam na mesma economia familiar”. Portanto, enquanto no Brasil o ensino doméstico já não era mais aceito desde 1934, tornando-se obrigatória a frequência à escola, em Portugal essa prática ainda permanecia regulamentada, para além da Constituição da República Portuguesa de 02 de abril de 1976, por meio do artigo 3º, nº 4, alíneas a e b, do Decreto-Lei nº 553, de 21 de novembro de 1980, que definia o “ensino doméstico e ensino individual”:
Ensino individual, aquele que é ministrado por um professor diplomado a um único aluno fora de estabelecimento de ensino;
Ensino doméstico, aquele que é leccionado no domicílio do aluno, por um familiar ou por pessoa que com ele habite.
Assim, observa-se que tal prática nunca deixou de ser consentida em Portugal, ainda que sua existência não fosse estimulada, como se verifica no Relatório dos Alunos em Ensino Individual/Doméstico 2008/2009, que tem como foco esse assunto. Ao final da década de 2000, o Relatório dos Alunos em Ensino Individual/Doméstico 2008/2009 produzido pela Direcção Regional de Educação do Centro, mais especificamente, pela Direcção de Serviços de Apoio Pedagógico e Organização Escolar, em dezembro de 2009, afirmava em sua introdução que: “No dia-a-dia, no âmbito do trabalho desenvolvido na área técnico-pedagógica, os procedimentos são consumados no pressuposto de ser a Escola - o espaço escolar, a vivência na comunidade educativa - a melhor solução para as crianças e os jovens, respeitando contudo o direito de opção dos pais” (Portugal, Direcção Regional de Educação, 2009, p.3). Além da liberdade de escolha prevista na Constituição portuguesa, a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), Lei nº 46 de 14 de outubro de 1986, alterada pela Lei nº 115, de 19 de setembro de 1997 e pela Lei nº 49, de 30 de agosto de 2005, que fixa os “princípios organizativos” da educação portuguesa, também estabelece no seu artigo 3º que “no acesso à educação e na sua prática é garantido a todos os portugueses o respeito pelo princípio da liberdade de aprender e de ensinar, com tolerância para com as escolhas possíveis” (Portugal, Lei de Bases do Sistema Educativo, 1986, art. 3º). Cabe destacar que na legislação portuguesa, as crianças e jovens com idades compreendidas entre os 06 e os 18 anos são consideradas em idade escolar, o que implica estarem abrangidas pelo regime da escolaridade obrigatória. Contudo, apesar da escolaridade obrigatória prevista, permanece a possibilidade de matrículas para o ensino individual ou doméstico, à medida que as crianças e adolescentes também fiquem condicionados a um estabelecimento oficial de ensino, como já era permitido antes das novas regras sobre o assunto: “a matrícula ou renovação da matrícula nos ensinos individual e doméstico é efectuada pelo encarregado de educação do aluno no estabelecimento de ensino oficial da área da residência, nas mesmas condições e prazos dos correspondentes graus de ensino” (Portugal, Direcção Regional de Educação, 2009, p. 5). Na atualidade, o sistema escolar português foi alterado através da Portaria n.º 29, de 29 de janeiro de 2013, que definiu a missão, as atribuições e o tipo de organização interna da Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares. Já em um contexto administrativo distinto do anterior, em 2019, a Portaria n.º 69 de 26 de fevereiro, regulamentou novamente o ensino individual e o ensino doméstico, para a sua aplicação aos alunos abrangidos pela escolaridade obrigatória que pretendiam optar por essas modalidades. No entanto, a vigência da Portaria n.º 69/2019 foi bastante rápida, tendo sido revogada por meio do Decreto-Lei n.º 70, de 03 de agosto de 2021, que faz somente pequenas alterações no texto de sua antecessora, mantendo quase todo o seu conteúdo, com exceção do acesso à ação social escolar e aos manuais gratuitos. As mudanças trazidas pelas recentes regulamentações em Portugal, em especial o Decreto-Lei n.º 70/2021 vigente, aprofundaram, detalharam e incluíram mais compromissos das famílias em relação às normas anteriores. O pedido de matrícula deve ser dirigido ao diretor da escola da área de residência do aluno, contendo, além de outros requisitos, a exposição dos fundamentos de facto e de direito em que se baseia (n.º 2, artigo 9º), bem como o certificado de habilitações acadêmicas exigidas do responsável educativo, de acordo com o artigo 16º. No caso da opção por um estabelecimento de ensino particular ou cooperativo, o pedido de matrícula é apresentado na escola selecionada pelo encarregado de educação (n.º 6, artigo 9º). A matrícula é completada pela realização de uma entrevista com o aluno e o encarregado de educação mediante convocatória da escola, com vista a conhecer o aluno e o seu projeto educativo (n.º 5, artigo 9º). Constatam-se, ainda, alguns acréscimos de compromissos às famílias: a) O protocolo de colaboração com mais elementos; b) Relatórios individuais das provas de aferição, quando aplicável; c) Relatórios médicos e ou de avaliação psicológica, sempre que úteis ao percurso educativo e formativo do aluno; d) Registro da participação em projetos no âmbito do voluntariado ou de natureza artística, cultural, desportiva, entre outros, de relevante interesse social e educativo, desenvolvidos pelo aluno, devidamente certificados pelas respectivas entidades promotoras e previstos no protocolo de colaboração. Além disso, em síntese, cabe ao responsável educativo pelo aluno (artigo 16º): no ensino doméstico, ser detentor, pelo menos, do grau de licenciatura; no ensino individual, o responsável educativo e, sempre que existam, os demais docentes responsáveis pelo desenvolvimento do currículo devem estar habilitados para a docência, nos termos da legislação em vigor; assegurar o desenvolvimento do currículo em consonância com o previsto no artigo 7.º e no protocolo de colaboração, adotando a língua portuguesa como língua de escolarização, ou no caso de um projeto bilingue, fazer prova de proficiência linguística na língua estrangeira do currículo nacional em que pretende desenvolver parte do currículo. Como a parte mais destacada desta legislação evidencia-se o Protocolo de Colaboração (artigo 12º), que deve ser celebrado entre a escola de matrícula e o encarregado da educação do aluno, com a duração de um ano letivo, onde constem, entre outras: a explicitação da gestão do currículo que vai ser adotada; as formas de monitorização e acompanhamento das aprendizagens realizadas pelo aluno, incluindo a calendarização de, pelo menos, uma sessão presencial, coincidente com o final do ano letivo, a realizar na escola de matrícula; a assunção do português como língua de escolarização, sem prejuízo de partes do currículo poderem ser ministradas numa das línguas estrangeiras que integram o currículo nacional, através da abordagem bilingue; a realização das provas de equivalência à frequência, das provas finais do ensino básico, e dos exames finais nacionais, nos termos dos normativos em vigor; a possibilidade de realização das provas de aferição, nos termos dos normativos em vigor; e o período de vigência. Com relação ao acompanhamento e à avaliação, a escola de matrícula deve assegurar o acompanhamento, a monitorização e a certificação das aprendizagens e designar um professor tutor que deverá acompanhar o processo educativo do aluno (artigo 18º). A informação relativa ao trabalho e às aprendizagens realizadas pelo aluno deverá ser concretizada através de um registro organizado, um portifólio, que congregará as evidências das aprendizagens realizadas e sua evolução. O portifólio deverá conter também a autoavaliação do aluno e a apreciação do trabalho elaborada pelo responsável educativo. O portifólio será remetido à escola de matrícula com a regularidade definida no Protocolo de Colaboração, para ser apreciado em reunião conjunta com o aluno, o professor tutor e o encarregado de educação. As escolas de matrícula devem incluir nos seus relatórios de autoavaliação as conclusões do acompanhamento da implementação dos protocolos de colaboração celebrados. Os serviços de Direção devem produzir e enviar ao membro do governo competente um relatório anual relativo à implementação do ensino individual e do ensino doméstico. Para efeitos de certificação da aprendizagem na conclusão de ciclo, ou de nível de ensino, os alunos realizam na escola de matrícula as provas de equivalência à frequência nos anos terminais de cada ciclo do ensino básico. No ensino secundário os alunos realizam na escola de matrícula as provas de equivalência à frequência nos anos terminais de cada disciplina. “Sempre que exista oferta de prova final no ensino básico ou, no ensino secundário, de exame final nacional, estas substituem as provas de equivalência à frequência” (artigo 19º, p. 19).
4.Resultados
A par do levantamento da legislação brasileira e da legislação portuguesa sobre a temática verifica-se que, embora essa prática ocorra nos dois países estudados em números proporcionalmente semelhantes, no Brasil a educação domiciliar é proibida, deixando quem a pratica à margem da legislação e sem nenhum parâmetro de exigências, enquanto em Portugal o ensino doméstico é detalhadamente regulamentado por lei, fazendo com que aqueles que aderem a essa modalidade tenham que cumprir com todos os requisitos estabelecidos no Decreto-Lei n.º 70, de 03 de agosto de 2021. No que se refere à origem dessa prática na atualidade, cabe evidenciar os depoimentos das famílias, que corroboram a hipótese de que a relação com outras famílias homeschooling e o conhecimento dessa modalidade e de sua realização nos Estados Unidos da América podem ser consideradas as bases da motivação inicial, citada pelas famílias entrevistadas. A família brasileira entrevistada neste estudo, é constituída por um casal e três filhos, dois meninos e uma menina em idades, na ocasião, entre 5 a 17 anos. Questionado sobre como tomou conhecimento desta modalidade de educação, o pai explicou que esteve nos Estados Unidos da América e lá fez contato com famílias homeschooling, conhecendo e achando interessante essa forma de educar. Ao voltar para o Brasil continuou a conviver com outros imigrantes que faziam uso dessa prática de educação, decidindo, então, adotá-la em sua família. Além desses aspectos a família brasileira acrescenta que foi fundamental para entender como funcionava a prática de educar os filhos na casa, o acesso à internet e a possibilidade de encontrar subsídios de material educativo por meio da web, em sites norte-americanos, para todas as matérias elencadas (pelo pai) para estudo. A família portuguesa, é constituída por um casal e dois filhos, sendo que a filha mais velha já exerce uma profissão, tendo estado por quase toda a idade escolar em ensino doméstico, e o filho mais novo, ainda estava nesta modalidade. Neste caso, a decisão partiu da mãe, que conheceu também o movimento norte-americano, a partir de pesquisas na internet. Essa família apresenta um estilo de vida alternativo, mudando-se com frequência, o que levou a mãe a decidir retirar os filhos da escola e planejar, ela mesma, um programa de estudos que englobasse e valorizasse outros saberes além dos exigidos pelo currículo tradicional de escolarização. Assim, a partir de pesquisas realizadas na internet e do conhecimento travado com outras famílias que já praticavam essa modalidade de educação domiciliar, ela decidiu adotar a modalidade de ensino doméstico permitida em Portugal. Cabe ressaltar ainda que, neste caso, a mãe relata que suas buscas por um sistema desescolarizado também deveram-se ao alto custo escolar, às exigências do sistema, e ao seu descontentamento com o ensino público. Ambas as famílias têm como semelhança o fato de considerarem a educação domiciliar uma forma livre de educar os filhos e filhas, podendo construir o seu próprio espaço/tempo de educação dentro do ambiente doméstico, elegendo os métodos pedagógicos, assim como podendo variar os espaços de aprendizagem para fora da casa. Para as duas famílias entrevistadas, o papel do estado deveria ser o de “fortalecer a família”, permitindo que a educação ocorresse de forma “livre”, uma vez que para eles “a escolarização é apenas um meio”. Enquanto no caso da família portuguesa ambos os filhos foram educados na modalidade de ensino doméstico, embora matriculados nas escolas, sem maiores problemas em relação à legislação do país, no caso brasileiro, diante da ausência de regulamentação, o cenário é bastante diferente. De acordo com Barbosa (2013), a decisão de tirar os filhos da escola trouxe várias consequências para as famílias e estas sofreram com as punições da Justiça, que vão desde bloqueios de bens à ameaça da perda da guarda das crianças pelos Conselhos Tutelares, tornando-se um enorme desafio praticar a educação domiciliar no Brasil. Como uma forma de “burlar” a legislação, ou de se utilizar de suas próprias deficiências para atingir seus propósitos, a família brasileira, assim como outras nesta mesma situação, quando ameaçadas, recorrem à justiça, ainda que já exista uma decisão do STF. No entanto, a morosidade da justiça brasileira nas diferentes etapas do rito processual, permitem, muitas vezes, que as crianças e adolescentes possam terminar o período de escolaridade obrigatória na modalidade de educação domiciliar, enquanto aguardam a decisão final de cada caso, percorrendo as diversas instâncias jurídicas.
5.Considerações Finais
O ensino doméstico nunca deixou de ser permitido em Portugal diferentemente do Brasil e, embora se trate de um desafio na atualidade devido ao crescimento de sua demanda, a relação da escolarização com essa prática não envolve conflitos tão antagônicos como no cenário brasileiro, uma vez que se baseia no princípio constitucional de liberdade de escolha educacional dos pais. Outro ponto importante a destacar é que o estado português se preocupou em detalhar e publicar normas complementares às leis já existentes sobre o tema, em 2019 e 2021, quando essa demanda tornou-se mais visível na sociedade. Além disso, vale notar que Portugal já resolveu problemas básicos de sua escolarização como falta de vagas e a universalização da educação pública de qualidade, que responde por cerca de 80% das matrículas escolares. No caso brasileiro a universalização da educação escolar de qualidade ainda tem um longo caminho a percorrer.