1.Introdução
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a enfermagem orientam para a adequação do ensino ao trabalho em saúde, e às exigências próprias de complexidade da sociedade contemporânea, dentre as quais a humanização, ética, e educação permanente (Batista & Batista, 2003; Ministério da Educação, 2018). As DCN preconizam que a formação em saúde deve basear-se em competências (Ministério da Saúde, 2018), desenvolvendo no estudante a capacidade de agregar conhecimentos, habilidades e atitudes para lidar com a multiplicidade e complexidade de situações, e dilemas de indivíduos, grupos sociais e populações específicas. A análise e reformulação curricular demanda para as instituições formadoras aproximação das concepções pedagógicas às práticas concretas em diversos cenários de aprendizagem. Kurimoto e Da Costa (2016) afirmam que o discurso expresso pelo currículo deixa de ser uma mera forma de registrar disciplinas ou apontar temáticas a serem trabalhadas passando a delinear-se como uma proposta formativa a ser defendida. A matriz curricular precisa oportunizar, desde cedo, a inserção do discente enquanto sujeito histórico e social nos cenários de atuação profissional, considerando-se que o processo de trabalho em saúde é coletivo e envolve atores sociais distintos: comunidade, gestores e profissionais de saúde, universidade e indivíduo (Florêncio et al., 2016). A matriz curricular deve contemplar a abordagem de temas transversais que envolvam conhecimentos, vivências e reflexões sistematizadas acerca dos direitos humanos e da educação das relações de gênero, étnico-raciais e história da cultura afro-brasileira e indígena que instrumentalizem o egresso para seu exercício profissional. Às competências relacionadas à atenção das necessidades individuais de saúde, as DCN (2018) estabelecem que os cursos de enfermagem devem contemplar o desenvolvimento de habilidades em anamnese que considerem o contexto de vida e os elementos biológicos, psicológicos, socioeconômicos e a investigação de práticas culturais de cura em saúde, de matriz afro-indígena-brasileira e de outras relacionadas ao processo saúde-doença. Tais pressupostos remetem ao que, na literatura internacional sobre educação das profissões da saúde, é referido como competências culturais (cultural competence ou cross-cultural competence). Para a atenção em saúde à diversidade, a qualificação para o ensino das competências culturais deve se constituir como política institucional universitária de desenvolvimento crítico da docência, e de constituição e apoio das comissões de educação permanente em saúde pelos municípios onde o ensino em saúde se desenvolve. Para garantir a devida atenção à diversidade cultural na formação das profissões da saúde em países multiétnicos, esta deve ser ancorada em documentos curriculares estratégicos para a educação na saúde. (Loudon et al. 1999). A diversidade cultural na educação em saúde tem sido identificada como um ponto de interesse e discussão para rever o conteúdo dos programas e incluir a diversidade cultural nos documentos curriculares (Horvat et al., 2014). Torna-se fundamental interrogar o campo do currículo, o ensino na saúde, o trato político-pedagógico das relações multiculturais. Interessa ademais, refletir acerca da potencialidade de uma formação em que a matriz curricular em enfermagem, com sua epistemologia própria, possa construir um diálogo mais proporcional e, portanto, de maior respeito e valorização da diferença cultural e dos saberes. Este estudo pretendeu compreender como o curso de enfermagem de uma instituição privada tem organizado o ensino e desenvolvido suas práticas na perspectiva do respeito à diversidade cultural na atenção primária. Para responder a esses questionamentos, recorreu-se à investigação da estrutura do Projeto Pedagógico do Curso (PPC) privado de Enfermagem, inclusive ementas de disciplinas que envolvem ambiente, saúde e sociedade, nas dimensões política e pedagógica, relacionando-as com os pressupostos das DCN específicas da enfermagem (2018), os contextos emergentes das relações multiculturais e a teoria transcultural de Leininger (1978). Foi possível observar a parcialidade e insuficiência do modelo curricular adotado para a abordagem ao tema.
2.Percurso metodológico
Para análise crítica do projeto pedagógico de curso privado de enfermagem, selecionou-se o método de análise documental com ênfase qualitativa, associando-se o uso de software Iramuteq à verificação direta dos textos do PPC, inclusive ementas. A pesquisa documental, segundo Gil (2007), diferencia-se da pesquisa bibliográfica por utilizar: a) material que não recebeu, ainda, nenhum tratamento analítico, como documentos arquivados em órgãos públicos e organizações privadas; e b) documentos como relatórios de pesquisa, tabelas estatísticas, relatórios de empresas etc. Entre as vantagens na utilização da pesquisa documental, elencadas pelo autor, estão: documentos são fonte rica e estável de dados; baixo custo; não se exige contato com os sujeitos da pesquisa. Foi considerado para análise o texto referente ao Projeto Pedagógico de Curso, atual e ativo, com turma no estágio supervisionado na atenção primária. No PPC, são definidos os princípios e estratégias de ensino e aprendizagem, duração do curso e estrutura curricular: módulos, ementas, conteúdos de aprendizagem, e cargas horárias. Foram excluídos da análise outros PPC, do mesmo curso, sem atividade, no estágio da atenção primária, ou em construção. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) com coparticipação da Universidade Integrada Tiradentes, sob o parecer nº 07694919.8.3001.5641. Os documentos foram analisados em duas etapas: na primeira, o texto geral do PPC foi processado com o Software Iramuteq versão 0.7 alpha 2 (Lahlou, 2001; Ratinaud et al., 2012), excluindo as ementas, para observar o modelo geral de gestão do ensino considerando a diversidade cultural. Para análises dos conteúdos textuais foram utilizadas as técnicas de classificação hierárquica descendente (CHD), análise de similitude e nuvem de palavras, que agrupam e organizam graficamente de acordo com sua frequência. Realizou-se a análise multivariada a partir do método CHD, o qual consiste no agrupamento em classes dos segmentos textuais que possuem vocabulários semelhantes entre si. A CHD é apresentada em forma de dendrograma e mostra a relação entre as classes obtidas na análise textual. A partir do corpus do PPC, os segmentos de textos apresentados em cada classe foram obtidos das palavras estatisticamente significativas, permitindo que a análise qualitativa dos dados fosse realizada. Considera-se um bom aproveitamento o índice de 75% ou mais (Souza et al., 2018). A segunda etapa constou da análise por verificação direta das ementas das disciplinas voltadas à atenção primária. Nesta etapa foram definidas as categorias de análise (CA) e unidades de registro (UR) previamente à exploração documental em busca por unidades de contexto (UC), tratamento dos resultados e interpretação. Definem-se como CA os grupamentos de conteúdos de interesse (neste trabalho, em competências culturais) que se relacionam. As UR referem-se aos conteúdos de interesse propriamente ditos agrupados nas CA. Já as UC são definidas como trechos dos documentos em análise que permitam verificar que as UR (conteúdos de interesse) são contempladas no texto analisado. Para definição das CA e UR tomou-se como referência as DCN para o curso de enfermagem (2018), sendo admitidas dezasseis UR distribuídas entre quatro CA.
Não sendo encontradas UC que pudessem decodificar as UR, considerou-se que o conteúdo não era previsto. Para reflexão sobre os resultados foi considerada como norteadora a Teoria Transcultural de Leininger (1978):
(...) a enfermagem é essencialmente uma profissão de cuidados transculturais e interculturais, que assume a centralidade do cuidado na promoção do cuidado para pessoas, de uma maneira significativa e congruente, respeitando os valores culturais e os estilos de vida. Estamos a falar de uma visão, à época, vanguardista, em que o enfermeiro passa a reconhecer o indivíduo como um ser cultural; detentor de uma forma muito particular de ver o mundo, em função das suas crenças, valores, costumes e práticas culturais, em detrimento de situar o seu interesse apenas nos problemas e ou necessidades biofisiológicas afetadas. (Coutinho et al. 2017, p. 1.579)
3.Resultados
A análise do PPC com uso do Iramuteq aproveitou 610 segmentos textuais dentre 21690 palavras, correspondendo a 84,6% do total do corpus, agrupando-os em três classes: classe 1 - perfil do egresso (35,9%); classe 2 - organização do curso (36,2%); classe 3 - competências e habilidades (27,9%). Foram observadas relações de aproximação entre as classes 2, “Organização do curso”, e 3, “Competências e habilidades”, com maior relação de força, mesmo tendo sentidos diferentes; a Classe 1 “perfil do egresso” manteve fraca relação de aproximação com as demais classes. No entanto, a interação conceitual das classes permite a operação conjunta, de articulação política (classe 2) e técnica (classe 3), para a configuração do perfil do egresso (classe 1). A análise direta do PPC, demonstra pouca compatibilidade com as UR pré-definidas. No ciclo teórico- prático composto por dez disciplinas, todas as UR foram identificadas em cada disciplina do ciclo relacionado à atenção primária, no entanto 26,2% apresentavam abordagem incompleta. No estágio supervisionado (nono período), apenas quatro UC foram encontradas, e duas (12,5%) faziam menção à diversidade cultural.
4.Discussão
A análise do PPC pelo Iramuteq gerou três classes interarticuladas: A classe 1 (perfil do egresso) refere-se, mais diretamente, aos elementos do processo saúde-doença, e da realidade epidemiológica, que visam a formação para a integralidade do cuidado. A formação de um profissional generalista com visão de mundo humanista, crítica, é uma diretriz geral, válida para todos os cursos da saúde, relacionada ao conceito ampliado de saúde e a mudança de perspectiva do sistema de saúde (Ministério da Saúde, 2018).
Assim, o Curso de Enfermagem, centrado no modelo de Atenção à Saúde vigente, o Sistema Único de Saúde - SUS, considerando a insuficiência de saúde da população, onde as demandas sociais identificam a necessidade de maior oferta de profissionais enfermeiros, contribui para o desenvolvimento político, sócio, cultural, econômico, científico, educacional, como também da promoção, proteção, manutenção e recuperação da saúde da população do Estado de Alagoas. (UNIT, 2015 p. 49)
O PPC do curso de enfermagem procura dar conta da realidade estadual referindo-se aos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Silva, Sousa e Freitas (2011) propõem que a diversificação de cenários de prática, ampliação dos tempos de prática e aproximação ao SUS, além da orientação ao perfil ético e humanístico dos profissionais e à multiprofissionalidade, direcionarão o futuro enfermeiro a não só conhecer o perfil epidemiológico, mas tornar-se um interventor desse perfil, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. A preocupação com a diversidade cultural para a formação pode ser inferida, na observação de palavras que remetem a textos que versam sobre a formação multicultural, complexa, de Alagoas, limitada pela abordagem clínico-epidemiológica, assistencial e intervencionista nos determinantes sociais.
Como exemplo de sua diversidade cultural, parte importante da história de Alagoas está relacionada á formação de diversas comunidades quilombolas. Na região onde hoje existe a cidade de União dos Palmares foi formado o maior e mais importante quilombo da história brasileira, o Quilombo dos Palmares, sob o comando de Ganga Zumba e, em seguida, de Zumbi. (UNIT, 2015, p. 31) O egresso deverá ser capaz de conhecer e intervir sobre os problemas/situações de saúde- doença mais prevalentes no perfil epidemiológico nacional, com ênfase na sua região de atuação, identificando as dimensões biopsicossociais dos seus determinantes. (UNIT, 2015, p. 52)
Constata-se que o PPC orienta para a abordagem à realidade local, visando uma formação acadêmico- profissional que possibilite ao egresso conhecer e intervir nas condições de vida da população. A organização curricular (classe 2), demonstra que o PPC analisado responde às DCN/ENF (2018), a aprendizagem devendo ser interpretada como caminho que possibilita ao egresso transformar-se e transformar seu contexto.
A formação em Enfermagem (...) contempla a abordagem de temas transversais quer seja através de discussões suscitadas pelos docentes e discentes no âmbito de suas disciplinas, quer seja através de atividades de pesquisa e extensão, quer seja através dos eventos realizados pelo curso ou pela instituição, bem como pelas atividades complementares integralizadas pelos discentes. (UNIT, 2015, p.73) a instituição proporciona aos seus discentes, uma política de atendimento que visa promover o acesso e a permanência de todos (as) os(as) estudantes, independentemente de sua condição física ou socioeconômica assegurando-lhes: igualdade de condições para o exercício da atividade acadêmica; formação integral, garantindo a participação em atividades científicas, culturais, artísticas, esportivas e de lazer; inclusão digital; acesso ao aprendizado de línguas estrangeiras; acesso à saúde e etc. (UNIT, 2015, p. 102)
Em acordo com Ceccim (2002), que considera que quatro vetores são colocados em evidência frente ao desafio do SUS, o da formação, o da atenção, o da gestão e o da participação em saúde, observa-se no texto do PPC:
Unidades orientadas para o exercício e inserção dos alunos em diferentes contextos profissionais, institucionais, sociais e multiprofissionais inerentes a sua área ou campo de atuação, com o intuito de promover a aquisição de habilidades e competências específicas do exercício profissional em questão. Disciplinas: Estágio Supervisionado I, Estágio Supervisionado II, Trabalho de Conclusão de Curso - TCC. (UNIT, 2015, p. 73)
O PPC alinha-se com a Teoria da Diversidade e Universalidade do Cuidado Cultural, proposta por Madeleine Leininger, enfermeira e antropóloga, a qual impulsionou a compreensão da importância social e da influência cultural sobre as crenças de saúde e os comportamentos dos indivíduos (Coutinho et al., 2017).
Conforme preconiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Enfermagem os conteúdos estão relacionados com todo o processo saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade, integrado à realidade epidemiológica e profissional, proporcionando a integralidade das ações do cuidar em enfermagem. (UNIT, 2015, p. 62)
Na classe 3, Competências e habilidades, observa-se que, muitas dessas competências estão subentendidas em alguns textos, ou parcialmente contempladas em relação ao exigido nas DCN/ENF (2018). Para Fontana (2019), é necessário para a enfermagem, apropriar-se de saberes multiculturais, para desenvolver cuidados de forma humanizada e comprometida com os princípios do SUS, agregando valor ao cuidado. A multiculturalidade, para Fontana (2019), tangencia componentes curriculares dos cursos da saúde, e tem a potência de minimizar preconceitos e desenvolver a alteridade, a valorização e o conhecimento da cultura do outro, necessária para a sobrevivência. A organização curricular e o perfil do egresso se articulam de forma coerente visando uma formação orientada para a compreensão e intervenção nos determinantes biopsicossociais do processo saúde- doença, com ênfase nos aspectos clínico-epidemiológicos assistenciais, e limitada pela indefinição das competências e habilidades necessárias para esse desafio. Essas limitações podem distanciar os alunos do perfil desejado, de atuação no SUS. É possível também perceber o distanciamento entre a intenção de mudança no perfil do egresso e o compromisso com a necessária flexibilização e descentralização da gestão acadêmica, ainda verticalizada, não permitindo espaço suficiente para o protagonismo docente e discente na construção de um novo PPC e no fortalecimento da integração ensino-serviço. A análise por verificação direta das ementas do ciclo teórico e prático e estágio curricular permitiu identificar elementos estruturantes do PPC que indicam parcialidade ou insuficiência para as demandas de formação de atenção à diversidade. As categorias contempladas referem-se aquelas elencadas no quadro 1.
4.1 Estrutura social
Ainda no final do século passado, no âmbito das reflexões alargadas que corporizaram o Relatório “Educação um Tesouro a Descobrir” (Delors, 1996), deu-se clara expressão à necessidade de assumir a diversidade como riqueza. A UNESCO (2001), reafirma no início deste século, com a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural que “a diversidade cultural é uma das fontes de desenvolvimento, entendido não só como crescimento econômico, mas, também, como meio de acesso a uma existência social, intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatória” (p. 288). A multiculturalidade constitui-se como mais uma das premissas para a prevenção da exclusão e da discriminação nos diversos domínios (educativo, social, cultural, entre outros) e para a promoção da igualdade de oportunidades (Candau, 2002). Neste contexto, revela-se essencial, demonstrar o reconhecimento da necessidade de reforço e de consolidação de mecanismos institucionais de inclusão, particularmente, na formação profissional. O PPC analisado refere-se a estas premissas:
Estimular e desenvolver atitudes de respeito às diferenças, de sorte que todos possam se relacionar socialmente, incorporando os outros em suas diferenças e diversidades cultural, étnica, de necessidades especiais, de crenças, gênero e orientação sexual, seja no âmbito das relações acadêmicas e/ou das relações sociais em geral. Esse respeito e aceitação devem convergir para o reconhecimento da pluralidade e convivência democrática na efetivação da igualdade de direitos”. (UNIT, 2015, p. 81) Questões referentes à educação para as relações étnico-raciais e indígena são desenvolvidas através de conhecimentos, competências, atitudes e valores, nos projetos pedagógicos dos cursos através dos conteúdos curriculares, na transversalidade, nas atividades complementares, na iniciação científica e nas atividades extensão, na pesquisa, produção e socialização do conhecimento, e na articulação com atores sociais envolvidos em movimentos que atuem nesta área. (UNIT, 2015, p. 83)
Para Santos et al. (2012), a pluralidade humana em suas variadas possibilidades de expressão é condição primária para a prática do cuidado em saúde, apesar da complexidade inerente a esses campos: saúde, enfermagem, cuidado. Considerando a pluralidade e a diversidade, sua aplicação nos cursos da saúde deve ser orientada à anamnese minuciosa e ampliada, atentando para as possíveis respostas humanas e contextos de vida de cada pessoa, pautada na participação e no respeito à autonomia. Como podemos constatar no PPC (2015) ao se referir à população LGBTT, visando,
Assistir quanto aos direitos e necessidades das populações em situações de vulnerabilidades específicas, Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) e saúde integral dos negros. (UNIT, 2015, p. 278)
Essa preocupação com populações específicas demonstra a sintonia do PPC com demandas contemporâneas. Vargas et al. (2018) analisaram como as disciplinas relacionadas à Enfermagem Psiquiátrica e Saúde Mental estão inseridas nas estruturas curriculares dos programas de enfermagem brasileiros, e encontraram grande variação, e pouco interesse em incluí-las, considerando prejuízo para a formação e para a população. O PPC avaliado sugere que a pessoa com transtorno mental deve ser vista como cidadão com direitos e deveres, e que o profissional deve respeitá-lo e fortalecer o inter-relacionamento terapêutico (UNIT, 2015).
4.2 Transculturalidade
A transculturalidade está associada ao cuidado e demanda estudos para melhoria das práticas (Henckemaier et al., 2014). Das quatro unidades de registro previstas, apenas duas, responsabilidade do enfermeiro e ético-político foram contempladas. A saúde resulta de ações individuais ou coletivas, e de governo, para garantir acesso a bens e serviços. (Secco et al., 2017), conforme parcialmente previsto no PPC:
Domínio de conhecimentos teóricos, técnicos e instrumentais que possibilitem intervir sobre os problemas/situações de saúde-doença mais prevalentes no perfil epidemiológico. (UNIT, 2015, p. 251)
Associa-se a prática do cuidado em enfermagem com a responsabilidade ética para transcender o senso comum de uma dedicação pontual e estabelecimento de uma atenção continuada, sistêmica e contextual, o que inclui as questões culturais (Andrade et al., 2016; Biazus & Dalcin, 2019).
Investir e intervir política e tecnicamente espaços institucionais, enquanto as necessidades de saúde socialmente determinadas, como práticas de processo saúde-doença. (UNIT, 2015, p. 277)
Segundo Silva et al. (2021), o cuidado transcultural e o processo saúde-doença em enfermagem estão diretamente relacionados com a prática no ambiente de trabalho, tendo como princípio o respeito pela diversidade cultural de cada indivíduo.
4.3 Valores do cuidar
Para Gualda, Hoga (1992) o valor cultural do cuidado equivale ao modo de agir ou pensar mais desejável ou preferido, que é mantido por um período. Para Leininger (1978), nesse nível, são estudados o cuidado e a saúde, e incluem os indivíduos, famílias e culturas no contexto de um sistema de saúde, em busca de expressões e significados. No que se refere à relação étnico-racial no ensino da enfermagem, Ribeiro, Beretta e Mestriner-Junior (2020) afirmam que a formação de agentes indígenas de saúde, como atores dentro e um contexto multiétnico, é fundamental necessitando que significados e valores culturais sejam abordados e respeitados mesmo em uma formação para o sistema de saúde considerado ocidental. O PPC prevê essa abordagem:
Construir seus próprios parâmetros, a partir da percepção de que a nossa cultura é apenas uma das formas possíveis de perceber e interpretar o mundo e que todas as culturas são igualmente válidas e fazem sentido para seus participantes. (UNIT, 2015, p.298) Políticas afirmativas para populações étnicas e políticas afirmativas específicas em educação. Populações étnicas e diáspora. (UNIT, 2015, 298)
Nascimento et al. (2020) indicam que a importância do reconhecimento da identidade étnico-racial é relativizada, sem contemplar a percepção das especificidades do segmento negro, fortalecendo o mito da democracia racial. Portanto, impõe-se a preparação adequada dos profissionais de saúde e educação para que haja desconstrução da visão eurocêntrica e avaliação crítica do contexto, diante das diversidades/diferenças com os quais convivem. A inserção da temática étnico-racial e afro-brasileira, nos currículos em saúde é uma forma de atender as demandas emergentes e, se constitui em oportunidade de ampliação dos conhecimentos sobre a diversidade cultural da sociedade brasileira, a história, e influência na cultura local e no processo saúde- doença (Conceição et al., 2018).
4.4 Competência cultural
As competências culturais orientadas para a família e a comunidade são consideradas atributos derivados que qualificam as ações por garantirem um alto nível de alcance das qualidades exclusivas e fundamentais da atenção primária (Damasceno & Silva, 2018; Gouveia et al., 2019). Competência cultural pode ser definida como a “capacidade de realizar um cuidado efetivo, compreensivo e respeitoso, de maneira compatível com as crenças e práticas culturais de saúde do usuário, e no idioma de sua preferência”, sendo esse termo criado no cenário americano e o mais utilizado na literatura, no contexto da saúde, para se referir à relação intercultural médico-pessoa (Anand, 2010). De acordo com a Office of Minority Health do governo dos Estados Unidos, a competência cultural e linguística implica uma capacidade dos fornecedores e das organizações de cuidados em saúde de compreender e responder efetivamente às necessidades culturais e linguísticas, trazidas pelos pacientes às situações de cuidados de saúde (Helman, 1994). Essa competência pode ser identificada no PPC analisado:
Construir seus próprios parâmetros, a partir da percepção de que a nossa cultura é apenas uma das formas possíveis de perceber e interpretar o mundo e que todas as culturas são igualmente válidas e fazem sentido para seus participantes. (UNIT, 2015, p. 298)
Os enfermeiros explicam a competência cultural como a possibilidade de entender as diferenças culturais, com a finalidade de realizar cuidados de qualidade às pessoas. Culturalmente os enfermeiros mais sensíveis às questões inerentes com etnia, raça, cultura, gênero e orientação sexual, são os enfermeiros mais competentes. Além disso, os enfermeiros que possuem competência cultural aperfeiçoam com eficiência a capacidade de comunicação, perspectivas culturais e capacidade de conhecimentos ligados com as práticas de saúde de dessemelhantes culturas (Vilelas & Janeiro, 2012). O PPC em pauta prevê essa dimensão da competência cultural:
Identificar os fatores culturais, sociais e comportamentais na determinação das doenças e de seu enfrentamento, potencializando intervenções culturalmente sensíveis. (UNIT, 2015, p. 278)
É preciso repensar enfermagem e saúde em uma perspectiva complexa, tendo o cuidado sistêmico e a reflexão crítica como foco aplicável ao currículo inovador, já que a reflexividade permite, tanto quanto possível, a inteligibilidade da variedade dos temas trabalhados simultaneamente na vida ou na prática profissional (Netto et al., 2018). Essa orientação é prevista no PPC estudado:
Construir seus próprios parâmetros, a partir da percepção de que a nossa cultura é apenas uma das formas possíveis de perceber e interpretar o mundo e que todas as culturas são igualmente válidas e fazem sentido para seus participantes. (UNIT, 2015, p. 298)
Inovações curriculares são marcadas por efetiva integração ensino-serviço-gestão-comunidade, favorecendo a inserção do estudante no mundo do trabalho, com aprendizagem contextualizada de competências culturais, de modo a superar o paradigma conteudista, biologicista e preventivista (Santos & Hammerschimidt, 2012; Velloso et al., 2016). No entanto, novos estudos para verificação da eficácia com caráter intervencionista e definição consensual sobre os componentes fundamentais da educação de competências culturais são necessários. Estudo de revisão realizado por Horvat et al. (2014) mostraram algum apoio ao ensino de competências culturais para os profissionais de saúde, porém com baixa qualidade de evidências. Jowsey (2019) sugere investigar e ensinar sobre as zonas mais profundas da competência cultural para promover mudanças culturais sistêmicas eficazes na prestação de cuidados de saúde.
5.Considerações finais
A pesquisa não visualizou abordagem abrangente e transversal de conteúdos, vivências e reflexões sistematizadas acerca dos direitos humanos inclusive das relações étnico-raciais e história da cultura afro-brasileira e indígena. A pesquisa identificou silenciamento no PPC sobre a realidade da diversidade cultural na atenção primária, embora haja referências pontuais sobre relações étnicas, populações em situações de vulnerabilidades específicas, Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. O uso do Iramuteq permitiu observar que a instituição apresenta elementos de inserção das relações multiculturais, porém de forma vertical, com um padrão de orientação de gestão da política para a formação que não escapa ao modelo biomédico tradicional. A organização curricular apresenta viés tecnicista na descrição das habilidades e competências esperadas para o futuro enfermeiro. A análise por leitura direta revela insuficiência e distanciamento das competências transculturais. Há a necessidade do desenvolvimento de políticas institucionais para a humanização da formação e das relações nos distintos cenários de ensino-aprendizagem. Os métodos mostram-se complementares na análise documental de PPC, os resultados podendo auxiliar nas mudanças institucionais com mais clareza de propósitos, seja na orientação política como também nos aspectos técnicos relacionados ao currículo. A análise isolada, por leitura direta ou instrumentalizada por software, pode não ser suficiente para tamanho propósito, o de propor mudanças, para uma nova ética, possível de ultrapassar as barreiras do paternalismo, e configurar destinos profissionais participativos, cooperativos, solidários, inclusivos. Os métodos utilizados, isolados ou associados são limitados e expõem uma imagem institucional parcial e estática, sendo necessárias novas pesquisas com desenho metodológico participativo e intervencionista para diagnóstico e impulsionamento de mudanças efetivas para uma formação que amplie a eficácia dos cuidados a toda a população.