1.Introdução
A doença hepática em idade pediátrica, de origem congénita ou biológica, é uma doença crónica que afeta uma pequena percentagem de crianças. O transplante de fígado é tido como uma opção terapêutica para melhorar a qualidade de vida de indivíduos de qualquer idade (Negreiros et al., 2017) e nas crianças está indicado na atresia biliar em cerca de 43%, nas doenças metabólicas em cerca de 13% e na insuficiência hepática em cerca de 11% (Puri & Hollavart, 2019). Segundo Akbulut et al. (2020), com o evoluir das técnicas cirúrgicas, com uma profilaxia antimicrobiana eficaz, aliadas à melhoria da terapêutica imunossupressora, a taxa de sobrevivência é de 1 e 10 anos após o transplante hepático em 95% e 80% dos casos, respetivamente. A doença hepática acompanha a criança durante “um longo período de tempo, comprometendo a sua condição física, emocional ou mental e que, muitas vezes, impede a criança de frequentar a escola regularmente e/ou desenvolver as atividades rotineiras da infância” (Xavier et al., 2020, p. 2). Na família, quer o confronto com o diagnóstico quer o processo de doença, também causam um grande impacto emocional, físico e financeiro. Passam a conviver com a incerteza, insegurança, desordem e contínua necessidade de reorganização (Xavier et al., 2020). Um estudo de Akbulut et al. (2020) revelou que os pais de crianças submetidas a transplante hepático, além das necessidades psicossociais apresentaram sintomas de trauma. O processo de hospitalização é classificado como um evento que altera a rotina, a dinâmica da criança e da sua família, e acarreta medos e incertezas para ambos. Quanto maior a frequência e duração dos internamentos, maiores são as complicações ao nível do desenvolvimento cognitivo, físico e dificuldades na interação social (Araújo et al., 2020). Nesse sentido, é importante o papel desempenhado pelos enfermeiros (Xavier et al., 2020). A sua intervenção no relacionamento colaborativo com todos os prestadores de cuidados de saúde surge como uma componente-chave dos cuidados centrados na família, pois o papel da família é fundamental para promover resultados de sucesso e adaptação à doença crónica (Akbulut et al., 2020). Araújo et al. (2020) acrescentam que a oportunidade de assistir a criança e suas famílias durante o internamento hospitalar, traz para a enfermagem a responsabilidade de pautar o cuidado direcionado às necessidades do indivíduo e da família, a partir de ferramentas que facilitem esse processo, contribuindo, assim, diretamente para a gestão adequada da doença e a redução do tempo de hospitalização. Loureiro et al. (2021) referem que os cuidados de enfermagem são assentes em conceções teóricas que permitem uma abordagem organizada e sustentada com base científica. Entre outros aspetos importantes das conceções teóricas de enfermagem atuais, destaca-se o cuidado centrado na família. Consiste numa perspetiva de cuidados que vê a criança integrada na família, motivo pelo qual a hospitalização não deve interromper essa ligação (Loureiro et al., 2021). Embora sendo esta a conceção teórica mais utilizada, a mesma está interligada com o modelo de parceria de cuidados de Anne Casey. Este é definido como “um modelo da enfermagem pediátrica em que os pais são envolvidos ativamente pelos profissionais de saúde responsáveis pelos cuidados à criança. Os cuidados são planeados em função das capacidades e desejo de envolvimento dos pais. Profissionais de saúde e pais estão em igualdade, ambos negoceiam e partilham cuidados e tomam decisões em conjunto” (Ramos & Barbieri-Figueiredo, 2020, p. 33). Os padrões de qualidade dos cuidados de enfermagem, definidos pela Ordem dos Enfermeiros (2017), recomendam a utilização de metodologias de organização dos cuidados de enfermagem promotoras da qualidade, atendendo à satisfação da criança/jovem e família, promoção da saúde, a prevenção de complicações, o bem-estar e o autocuidado, a adaptação às condições de saúde e a máxima eficácia na organização dos cuidados. Atendendo a estes padrões de qualidade definidos pela Ordem dos Enfermeiros, surge como método de organização dos cuidados o enfermeiro de referência. Este método teve início na década dos anos 60 nos Estados Unidos da América, ganhando destaque na Grã-Bretanha em 1980 (Pontin, 1999). O Primary Nursing, entre nós conhecido por Enfermeira de Referência é uma modalidade de organizar a prestação de cuidados que eleva a qualidade de assistência prestada pelo enfermeiro e a sua implementação conduz à competência profissional (Rego & Coelho, 2016). Consiste num sistema organizacional de cuidados em que é atribuído ao enfermeiro responsável a tomada de decisão sobre os cuidados ao doente na sua integralidade (Rego & Coelho, 2016). O enfermeiro desenvolve uma relação terapêutica e um plano de cuidados individualizado com o utente e família, sendo responsável pela sistematização e organização dos cuidados de enfermagem desde a admissão até à alta, incluindo a apreciação inicial, o diagnóstico e planeamento, a prescrição e implementação das intervenções e avaliação dos cuidados, assegurando a sua continuidade (Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra [CHUC], 2016). O modelo do enfermeiro de referência é o método de organização de cuidados que melhor suporta a prática profissional dos enfermeiros (Wessel & Manthey, 2015 como citado em CHUC, 2016) e, aplicado aos cuidados de enfermagem pediátrica, atende a criança e a família como alvo de cuidados, adotando os cuidados centrados na família e a parceria de cuidados. À família e à criança é reconhecido o direito de participação nas decisões que venham a ser tomadas pela equipa sobre os cuidados a serem prestados, sendo dado previamente a informação que lhes confira o empoderamento e o suporte necessário à tomada de decisão. O envolvimento dos pais nos cuidados ao filho submetido a transplante hepático é, pois, uma mais-valia da organização dos cuidados de enfermagem suportados no modelo de enfermeiro de referência. Assim, este estudo surge para dar resposta à seguinte questão de investigação: Qual a perceção dos pais sobre o papel do enfermeiro de referência no internamento e nos cuidados à criança submetida a transplante hepático? O nosso objetivo consiste em: Descrever a perceção dos pais sobre o papel do enfermeiro de referência no internamento e nos cuidados à criança submetida a transplante hepático. Estamos convictos de que a partir do que as pessoas interpretam e dão sentido às experiências que vivem (Resende, 2016), podemos recolher informação que permita contribuir para a melhoria deste modelo, com consequente melhoria dos cuidados prestados à criança/família e maior satisfação dos mesmos.
2.Metodologia
Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório-descritivo, de cariz fenomenológico, Nível I, com recurso à entrevista semiestruturada, com abordagem dedutiva. Através de um guião de perguntas, que não obedeceram a uma ordem específica, o entrevistador deixou a conversa fluir, mantendo sempre o foco no fenómeno em estudo, colocando as questões no momento mais apropriado e de forma tão natural quanto possível. As entrevistas foram presenciais ou por videoconferência via Zoom Colibri. A população definida foram os pais que acompanharam o filho submetido a transplante hepático na Unidade Pediátrica de Transplantes Hepáticos do Hospital Pediátrico de Coimbra, CHUC. A amostra foi constituída por 5 pais, pois com este número de entrevistados verificou-se a saturação de dados. A técnica de amostragem utilizada foi não probabilística, por redes, sendo esta também denominada de “bola de neve”. Após ter sido exposto o projeto de investigação à Administradora da página das redes sociais da HEPATURIX (Associação Nacional das Crianças e Jovens Transplantados ou com Doenças Hepáticas), foi aprovado colocar uma nota informativa a solicitar a colaboração dos seus associados na realização da entrevista ou para a indicação de contactos de pais que também tiveram filhos submetidos a transplante hepático naquela unidade. Como critérios de inclusão considerou-se ser pai ou mãe que acompanharam o filho submetido a transplante hepático durante o internamento, na Unidade Pediátrica de Transplantes Hepáticos, no período de janeiro de 2013 a janeiro de 2021. O estudo obteve parecer favorável da Comissão Ética do Instituto Politécnico de Viseu (Parecer nº 36SUB2021). As entrevistas foram realizadas por uma das investigadoras num local à escolha dos pais e em ambiente privado, livre de perturbação, com uma duração média de 20 minutos. Antes de cada entrevista os pais foram informados dos objetivos, benefícios e natureza da investigação, sendo assegurado a autonomia e anonimização dos participantes. Obtivemos o consentimento informado por escrito de cada participante no estudo. Foi igualmente dada a informação que poderiam retirar o seu consentimento em qualquer altura, sem qualquer penalização. Utilizamos o gravador áudio e as entrevistas foram transcritas. Foi elaborada uma grelha de codificação para cada entrevista, com o número da entrevista, hora e duração. Para sustentar a compreensão e significado dos dados, efetuámos análise de conteúdo tendo por base Bardin (2016). Assim, foi efetuada uma leitura cuidadosa de cada entrevista, seguida de uma releitura na tentativa de se eliminar informação irrelevante para o estudo e de se entender melhor o material analisado para se construírem as categorias, subcategorias e indicadores de análise a que se acrescentaram as unidades de enumeração. A cada entrevista foi atribuído um código (E1 a E5). Para confirmar e validar este processo, poderia ser necessário contactar novamente os pais e solicitar que efetuassem a leitura das entrevistas, mas porque realizamos a transcrição integral das entrevistas e respeitamos totalmente o que os pais disseram e exprimiram, não voltamos a envolver os pais nesta etapa. Dois dos investigadores envolvidos asseguraram a validação da codificação e o rigor da sistematização dos dados.
3.Resultados
Os 5 pais participantes (mãe ou pai), possuem idades compreendidas entre os 31 e 51 anos e nível de escolaridade entre o 2º ciclo e doutoramento, com residência fora no distrito de Coimbra. Verificamos que as crianças vivem com os pais e irmãos (quando aplicável), têm idades compreendidas entre os 10 meses e os 14 anos, sendo que, uma das crianças havia falecido antes do presente estudo, mostrando os pais, vontade de participar no mesmo. Pela análise de conteúdo das entrevistas, emergiram quatro categorias, subcategorias e respetivos indicadores. Consideramos coerente mencionarmos as unidades de enumeração reforçando o sentido ou significado das falas dos participantes. Na tabela 1 observamos a categorização dos dados e seguidamente iremos descrever per se, recorrendo a alguns excertos das falas dos participantes.
3.1 Existência de enfermeiro de referência
Quando questionados se foram informados sobre a existência do enfermeiro de referência para a prestação e continuidade de cuidados durante o internamento ao seu filho, a maioria dos pais (4) reconhecem a sua existência e reportam da seguinte forma “Eu acho que a nossa enfermeira de referência era a enfermeira X, porque ela estava sempre connosco…” (E2, E4), contudo, mesmo referindo não ter conhecimento identificam como uma enfermeira mais próxima “pois eu não sabia que eles tinham uma…, a enfermeira X, pois estava sempre próxima… sim, sim…” (E3). Relativamente à forma como obtiveram esse conhecimento houve relatos de qua a informação foi feita pelo próprio enfermeiro, “sim, sim, foi a primeira…” (E2),” acho que foi a própria enfermeira…” (E5), por outro profissional “por outra enfermeira…” (E4), sendo que um outro, decorrente de todo o processo de hospitalização, não se recorda com exatidão, embora refira que “… julgo que a enfermeira X veio com a médica…” (E1). Foi possível identificar que os próprios pais procuraram informação sobre o enfermeiro de referência “…eu sou muito cusca… eu fui sempre à procura de querer saber…” (E1), “Sim, sim, perguntamos ao certo onde podíamos pedir ajuda e, por exemplo, se precisássemos de alguma coisa ou assim, perguntávamos se era com ela que podíamos falar desse assunto…” (E5), ou através da obtenção da informação em contexto de conversa com outro profissional “…basicamente o que me explicaram é que existia essa enfermeira, uma enfermeira especialista na área, que já trabalhava cá há muitos anos com estes meninos, e que teria mais experiência…” (E3, E4).
3.2 Competências do enfermeiro de referência durante o internamento
Esta categoria emerge pelo reconhecimento dos pais relativamente às competências do enfermeiro de referência nos cuidados prestados durante o internamento dos filhos. Identificam competências técnico/científicos e relacionais que elevam o desempenho nos cuidados e competência profissional do enfermeiro. No que se refere às capacidades técnico/científicas observamos os seguintes relatos: “Foi importante os seus cuidados e continua a ser…” (E1), “Foi importante…” (E3, E5), “…é importante… ele vai conhecendo a criança e sabe quais os cuidados…” (E2). Também relevam a sua experiência “…é assim, há grande diferença e realmente eu acho que tem muita experiência…” (E1), “tem bom olho para o que faz…” (E4), “… mandava chamar a enfermeira X, porque ela faz à primeira…” (E2). Nas capacidades relacionais relevam a sua envolvência com a criança e família “…uma grande envolvência e acho que a pessoa que está realmente envolvida no projeto, tem muito mais vivência…” (E2). Igualmente é reconhecido maior conhecimento sobre a criança “…independentemente de haver métodos para os tratamentos, mas uma criança é uma criança… uma gosta mais de comer assim ou tem dificuldade em tomar…” (E2, E5). Foi ainda dada ênfase à capacidade de comunicar e saber lidar com a criança que podemos constatar nos seguintes excertos: “…às vezes pode haver diferenças, mas a maioria não. Para já, são coisas mais da maneira como as pessoas trabalham ou lidam, com os meninos…” (E3). “Por exemplo, a … (filha) já dava o braço para tirar a tensão arterial, porque… tanto que a ela custava-lhe imenso e a enfermeira X ofereceu-me uma braçadeira do aparelho da tensão para ela brincar… eles brincam com coisas que não são brinquedos… E a minha adorava uma braçadeira vermelha…” (E2). Emergiu ainda a empatia como vemos nas seguintes expressões: “… por exemplo, eu às vezes ia comer, quando voltava a minha filha não estava na sala… quando eu ia ver, ela estava na sala dos enfermeiros… com ela ao colo e eu achava aquilo uma delícia …” (E2); “… na parte de tudo o que a gente precise… se for essa pessoa, sabemos que fica logo tratado…” (E5). Também o apoio e escuta ativa foi uma caraterística enfatizada “… sabia que qualquer coisa que eu estivesse mais insegura, que ela perdia 5 minutos a falar comigo e a acalmar-me …” (E4); “…é muito importante essa referência, mas até para os pais… pois transmitem alguma confiança…” (E2); “…e mesmo para os pais, dão estabilidade… acabam por ser também um grande apoio…” (E5) ou ainda, “…mesmo quando começa com as medicações, que normalmente são muitas, ainda nos dão uns pequenos truques para nos ensinarem a ajudarmos a ele…” (E5). Houve ainda um pai que referiu a disponibilidade no esclarecimento de dúvidas “…de repente nós nem nos lembramos das dúvidas todas e a enfermeira vem a seguir e consegue esclarecer tudo…” (E4).
3.3 Experiências dos pais com o internamento e cuidados ao seu filho
Relativamente às experiências dos pais com o internamento e cuidados ao seu filho, emergiram as subcategorias experiências positivas e experiências negativas. Dos discursos dos pais, como experiências negativas, emergiu o indicador assistir a procedimentos invasivos em que as suas expressões foram: “…assistir a tirar o sangue…” (E5), “…obrigarem-me a ficar e assistir a cuidados ao meu filho que eu não queria ver… dizendo que a mãe tem de ficar porque ele acalma- se…” (E4). Pelo discurso deste pai, embora tenha referido este episódio como negativo, reconheceu que teve uma repercussão positiva, tal como podemos constatar na seguinte afirmação: “…por outro lado fez- me crescer e eu agora já vejo sangue, já vejo tudo…e faço tudo…” (E4). Foram também apontadas como experiências negativas o medo da doença/internamento. Esta subcategoria revela que o confronto com a doença e a incerteza da evolução da doença, podem traduzir-se em experiências negativas. Exemplos das falas dos pais “…toda a situação me deixava preocupada” (E3), “…a angústia e incerteza pelo tipo de doença…” (E2). Um outo indicador foi a sensação de estarem sozinhos/isolados, não só pela deslocação da área de residência, mas também pelas restrições de visitas em virtude da pandemia do Covid-19: “negativo para mim, foi ter ido para uma cidade onde eu não conhecia ninguém, depois o vosso hospital é no meio do nada…” (E2). No que diz respeito às experiências positivas, as mães/pais, referem a satisfação com o acompanhamento solícito que usufruíram por parte dos enfermeiros e de toda a equipa “…estou satisfeita com todo o acompanhamento, tanto dos enfermeiros, como da equipa médica, isso é o mais positivo sim, estão bastante presentes…” (E3), “…eu tive sempre experiências positivas… costumo dizer que quando vou ao Pediátrico o meu coração… vem assim muito levezinho. Sinto-me sempre muito bem e acho que o acompanhamento é sempre muito bom… fazem um acompanhamento quase que familiar… e nós sentimos que há alguém para além de nós, que tem grande carinho pelos nossos filhos…” (E1). A presença assídua dos mesmos profissionais também foi referida e constatamos pela expressão: “…acho ótimo termos sempre as mesmas pessoas, aquelas 4 ou 5 pessoas que são sempre as mesmas e que estão habituadas a lidar com este tipo de meninos e os cuidados que eles precisam…” (E5).
3.4 Sugestões de melhoria
Foi ainda possível identificar a categoria sugestões de melhoria e as subcategorias: com os cuidados e rede de apoio. Quanto à melhoria dos cuidados um dos pais relata que deve existir uma maior humanização dos cuidados “…lembrem-se que somos pessoas e que às vezes precisamos de uma palavra amiga, precisamos de um bocadinho de carinho…” (E4), bem como a otimização da integração no processo de hospitalização, em especial na integração na unidade e no ensino e empoderamento nos cuidados “…o enfermeiro também pode explicar os processos, o que poderá acontecer… ser uma iniciativa do enfermeiro e não uma iniciativa dos pais a perguntarem… melhorarem o tentar ajudar-nos na integração dos cuidados, que seja mais calma a informação que prestam…” (E2). No que diz respeito à rede de apoio, dois dos pais sugerem uma maior facilidade no acesso à rede de cuidados “…por exemplo, mais rapidez a nível de apoios, pois nós depois entramos na Acreditar (Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro), mas demorou muito tempo… deveria ser mais rápido esse processo” (E2). Sugeriram também a criação de grupos de apoio, com história partilhada em que se disponibilizasse informação e histórias de vida que constituíssem um elo de ligação e ajuda aos pais “…haver alguns pais que façam testemunhos, que contem um bocadinho da experiência deles…” (E2).
4.Discussão dos resultados
Constatamos que os pais conhecem a existência do enfermeiro de referência nos cuidados à criança submetida a transplante hepático e que a maioria das vezes foram os próprios enfermeiros que se apresentaram. Lernevall et al. (2021) referem que a apresentação pelo próprio profissional, confere nos pais uma sensação de estarem a ser cuidados, reconhecidos como equipa, considerando posteriormente os profissionais como pessoas confiáveis, prestativos, habilidosos, calmos, atenciosos, confiando neles o cuidado do seu filho. Contudo, dado os constrangimentos provocados pela notícia do diagnóstico da doença e pelo processo de hospitalização, o conhecimento sobre este modelo de cuidados do enfermeiro de referência não foi imediato e surgiu posteriormente com a permanência no serviço. A maioria dos pais confere atributos ao papel do enfermeiro de referência que o diferencia positivamente, considerando-o mais experiente e reconhecendo-lhe competências técnico/científicas e relacionais. Como referem Negreiros et al. (2017, p. 262), reforçando a importância da experiência, o enfermeiro “precisa ter conhecimentos abrangentes para gerenciar as complexas situações que envolvam o cuidado ao paciente nas diferentes fases do transplante e para desenvolver habilidades de avaliação clínica (…), despiste de complicações associadas aos transplantes, interações medicamentosas, de comunicação com pacientes, familiares (…) de ensino-aprendizagem”. Surge também a ênfase no conhecimento sobre a criança apontando para a importância do cuidado individualizado, integrado, centrado na criança e na família. Tal como referem Akbulut et al. (2020) a doença hepática continua a crescer, sendo que os pais sentem responsabilidade em garantir que os seus filhos tenham uma vida feliz, precisando assim, de um relacionamento de colaboração com os prestadores de cuidados de saúde, tendo como componente principal o cuidado centrado na família. A envolvência com a criança e família e esclarecimento de dúvidas por parte do enfermeiro de referência é fundamental na promoção de resultados de sucesso e adaptação à doença crónica e adesão à terapêutica. Neste contexto, os resultados realçam que esta doença carece de apoio multidisciplinar, em que o enfermeiro pela maior proximidade e continuidade de cuidados e pela individualização de cuidados que promove, contribui para as experiências positivas e satisfação dos pais. Contudo, e de acordo com Araújo et al. (2020, p. 1) “os profissionais envolvidos precisam considerar o nível de compreensão da criança, do adolescente e de sua família”, estabelecendo uma comunicação adequada, garantindo a sua compreensão em todo o processo de educação e empoderamento para os cuidados. Outras das competências atribuídas são a empatia, a escuta ativa e apoio. A prestabilidade, num estudo sobre as experiências e necessidades dos pais, realizado por Lernevall et al. (2021) pode ser descrita até como o simples ficar com a criança enquanto os pais vão almoçar ou proceder aos cuidados de higiene. A autora acrescenta ainda, que os mesmos se sentem tocados, acarinhados, tratados com dignidade. No mesmo estudo, os pais salientam igualmente o apoio recebido pelos profissionais, apelidando os mesmos de anjos, pela presença contínua, pelo tempo despendido ao responder a questões, não considerando a criança e a família como “uma linha de produção”. Na generalidade dos discursos dos pais, o desempenho dos profissionais tem repercussões em experiências positivas. As experiências positivas relatadas tais como o acompanhamento solícito e a presença assídua dos profissionais, traduzem as caraterísticas deste modelo de enfermeiro de referência (CHUC, 2016) que assenta na relação enfermeiro/doente, facilita a participação e o envolvimento da família nos cuidados, potenciando os seus resultados. Nesta análise sobressai também a sua satisfação com os cuidados prestados pelo enfermeiro de referência. Já em 2003, segundo um estudo de Sellick et al. (2003) em que eram retratados e avaliados dois modelos de prestação de cuidados, os utentes relatavam um maior grau de satisfação com os cuidados quando se tratava do modelo de enfermeiro de referência. As experiências negativas durante o internamento, são atribuídas às situações que decorrem da própria doença (diagnóstico, necessidade de hospitalização), bem como a todos os procedimentos realizados, nomeadamente os invasivos. Segundo o estudo de Sener e Karaca (2017) sobre as expetativas das mães de crianças hospitalizadas, as mesmas descrevem sentimentos de desespero, angústia, medo e ansiedade, aquando da necessidade de hospitalização do filho e associam um procedimento invasivo a uma experiência negativa, porque não suportam ouvir o filho chorar com dor. Como sugestões de melhoria um dos pais identifica a necessidade de maior humanização dos cuidados, especialmente para com a família e maior partilha de informação facilitando a integração dos pais nos cuidados. Lernevall et al. (2021) afirmam que os pais descrevem a hospitalização como uma tarefa árdua, sentindo-se isolados. Assim, é importante continuar a garantir a humanização dos cuidados, uma vez que num estudo apresentado por Sener e Karaca (2017), apesar da satisfação das mães com os cuidados físicos prestados pelos enfermeiros, as mesmas retratam falta dos cuidados emocionais, de uma abordagem amigável, aberta à exposição de dúvidas e preocupações. No que diz respeito à rede de apoio, é abordado o acesso à rede de cuidados, que na opinião dos mesmos devia ser mais rápido e acessível, até porque a maioria dos pais entrevistados, não residem na proximidade geográfica do hospital. Por último, sugerem ainda a criação de um grupo de apoio de pais, com o objetivo da partilha de informação sobre a doença, sobre o internamento, e de clarificar e desmistificar alguns conceitos, bem como também para os preparar para a nova experiência e o futuro que se segue. Esta ideia é retratada igualmente por Lernevall et al. (2021), em que não estando preparados para compartilhar os seus sentimentos, nem mesmo com os elementos da família, a conversa com os outros pais do mesmo departamento, ajudou-os imenso. Entender o que está a acontecer e o que poderá esperar posteriormente, torna os pais mais seguros e resilientes.
5.Considerações Finais
Neste estudo procurámos descrever a perceção dos pais da criança submetida a transplante hepático, com enfoque sobre o papel do enfermeiro de referência durante o internamento e na prestação de cuidados. Os pais reconhecem a existência do enfermeiro de referência como um profissional experiente e competente sob o ponto de vista técnico/científico e humano. Compartilham a importância do cuidado individualizado, integrado, centrado na criança e incluindo a família. Suscitam a contribuição do enfermeiro e equipa multidisciplinar nas experiências positivas com os cuidados e internamento, em que expressaram a necessidade de apoio para lidar com sentimentos e receios. Realçam também a importância de informações para obter algum controle sobre a situação e tratamento do seu filho e de apoios para a adaptação à doença crónica. Como sugestões apontam para melhorias na humanização de cuidados e rede de apoios. No nosso estudo constatamos que é essencial a modalidade de organizar a prestação de cuidados pelo modelo de enfermeiro de referência, o qual eleva a qualidade da assistência prestada e competência profissional do enfermeiro, e a sua implementação conduz à satisfação da família (pais). Como limitações consideramos que os resultados reportam-se à experiência específica dos entrevistados, não podendo ser generalizados. As entrevistas aos pais e recolha de dados foram em parte realizadas on- line em virtude da pandemia de Covid-19 e das restrições em termos de segurança e distanciamento social, pelo que poderá ter inibido a comunicação e transmissão das ideias de forma mais espontânea. A metodologia qualitativa de todo este percurso investigativo permitiu uma abordagem com maior profundidade, sustentada em princípios teóricos e em atitudes éticas, que teve como objetivo obter junto dos pais a informação e a compreensão do seu modo de pensar e das suas experiências, sobre o fenómeno em estudo. Consideramos importante a realização deste estudo, cuja finalidade visa contribuir para a melhoria das práticas através da adoção e otimização da utilização do modelo de enfermeiro de referência a outros serviços, e também como o incentivo à resolução de alguns problemas existentes nesse contexto.