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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.13  Oliveira de Azeméis set. 2022  Epub 08-Set-2022

https://doi.org/10.36367/ntqr.13.2022.e653 

Artigo original

A vivência das medidas de prevenção da recidiva da úlcera venosa: Um estudo qualitativo

The experience of venous ulcer recurrence prevention measures: A qualitative study

1ARS Centro - ACES Cova da Beira, Portugal

2Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico da Guarda, Portugal

3Escola Superior de Saúde da Universidade de Aveiro, Portugal

4IBimed - Instituto de Biomedicina. Universidade de Aveiro,Portugal


Resumo:

As úlceras de perna de origem venosa constituem a forma de ulceração mais comum nos membros inferiores, representando até 85% de todas as úlceras de perna, com elevado impacto económico e na qualidade de vida. Introdução: A recidiva da úlcera venosa atinge os 70% aos 12 meses após cicatrização, estando-lhe associada uma baixa adesão às suas medidas de prevenção, fortemente influenciada por uma compreensão deficitária da etiologia da lesão e da importância dessas medidas de prevenção. Objetivos: Compreender a vivência das pessoas com úlceras venosas na adesão às medidas de prevenção da sua recidiva. Métodos: Estudo qualitativo, exploratório e fenomenológico descritivo, realizado numa amostra não probabilística e selecionada por conveniência de uma população de utentes de um Agrupamento de Centros de Saúde da Administração Regional de Saúde do Centro - Portugal. Realizadas entrevistas semiestruturadas a 14 participantes, procedendo- se à análise de conteúdo com recurso ao software WebQda®. Resultados: Através da agregação dos achados em categorias e subcategorias, emergiram dois temas relacionados com o Conhecimento sobre a origem da ferida e sobre Como previno o reaparecimento da minha ferida, correspondendo às principais intervenções para a prevenção da recidiva da úlcera venosa. Conclusões: O conhecimento sobre a origem da lesão é decisivo para a compreensão da recidiva da úlcera venosa, particularmente sobre as suas medidas de prevenção. As medidas de prevenção contemplam as meias de compressão, os exercícios de retorno venoso, a elevação dos membros em repouso e a limpeza e hidratação da pele, estando-lhes associadas a vivência de diferentes benefícios e dificuldades/limitações.

Palavras-chave: Úlcera venosa; Recidiva; Prevenção; Experiência de Vida; Estudo Qualitativo.

Abstract:

Venous leg ulcers are the most common form of ulceration in the lower limbs, representing up to 85% of all leg ulcers, with a high economic impact and quality of life Introduction: Recurrence of venous ulcers reaches 70% at 12 months after healing, which is associated with low adherence to prevention measures, strongly influenced by a poor understanding of the etiology of the lesion and the importance of these prevention measures; Goals: To understand the experience of people with venous ulcers in adhering to measures to prevent their recurrence. Methods Qualitative, exploratory, and descriptive phenomenological study, carried out in a non-probabilistic sample selected by convenience from a population of users of a Group of Health Centers of the Regional Health Administration of Central Portugal. Semi-structured interviews were carried out with 14 participants, proceeding to content analysis using the WebQda® software. Results Through the aggregation of the findings in categories and subcategories, two themes emerged related to Knowledge about the origin of the wound and about How I prevent the reappearance of my wound, corresponding to the main interventions for the prevention of recurrence of venous ulcers. Conclusions. Knowledge about the origin of the lesion is crucial for understanding the recurrence of venous ulcers, namely about its prevention measures. Prevention measures include compression stockings, venous return exercises, lifting the limbs at rest and cleaning and moisturizing the skin, which are associated with the experience of different benefits and difficulties/limitations.

Keywords: Venous ulcer; Recurrence; Prevention; Life experience; Qualitative study.

1.Introdução

As úlceras venosas são as lesões mais prevalentes dos membros inferiores, representando cerca de 70% da totalidade (Finlayson et al., 2018), com implicações económicas consideráveis para os serviços de saúde e com uma diminuição da qualidade de vida das pessoas portadoras (Finlayson et al., 2018; Probst et al., 2019). A recidiva destas úlceras é altamente significativa, podendo ocorrer até em 70% dos casos (Finlayson et al., 2018; Franks et al., 2016; Moscicka et al., 2019; Probst et al., 2019, 2020). A prevenção da recidiva é, por conseguinte, absolutamente essencial, incluindo para além da utilização das meias de compressão, a elevação dos membros, os cuidados à pele, com a sua hidratação e limpeza, o exercício físico regular ou os exercícios de retorno venoso (Brown, 2018; Finlayson et al., 2015, 2018; Probst et al., 2019; Wounds UK, 2016). Tendo por base as elevadas taxas de incidência de recidiva das úlceras venosas, identificadas em utentes inscritos num Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) da Administração Regional de Saúde do Centro (ARSC) - Portugal, desenvolveu-se um estudo com o objetivo de conhecer os fatores que contribuem para adesão às medidas de prevenção da recidiva da úlcera de perna de origem venosa. Este artigo, elaborado com base no mencionado estudo, procura divulgar a vivência das pessoas com úlcera venosa na adesão às medidas de prevenção da recidiva, ou seja, o modo como os diferentes benefícios e dificuldades/limitações de cada uma dessas medidas são experienciados, e como o conhecimento sobre a etiologia das lesões influencia a própria implementação dessas medidas de prevenção.

2.Enquadramento Teórico

A etiologia venosa representa cerca de 70% da totalidade das úlceras de perna (Finlayson et al., 2018), afetando entre 0,8 a 2,2/1000 pessoas por ano (Probst et al., 2020). Estas lesões representam uma diminuição da qualidade de vida para as pessoas portadoras (Finlayson et al., 2018; Probst et al., 2019) e um considerável peso económico para os serviços de saúde, estimando-se que, anualmente, no Reino Unido, 2,2 milhões de pessoas com úlceras venosas impactem em £6 biliões os serviços de saúde (Probst et al., 2019). A agravar este contexto, encontram-se as elevadas taxas de recidiva destas lesões, ocorrendo até em 70% dos casos (Finlayson et al., 2018; Moscicka et al., 2019; Probst et al., 2019, 2020), maioritariamente 3 meses após o encerramento da lesão (Finlayson et al., 2018; Probst et al., 2019). Neste contexto, a prevenção da recidiva da úlcera venosa reveste-se de especial importância. Tradicionalmente, encerra-se na utilização da compressão, nomeadamente através de meia, a prevenção da recidiva da úlcera venosa. No entanto, esta prevenção compreende um conjunto maior de intervenções, pois para além da utilização de um sistema de compressão, em que quase sempre a opção recai na meia de compressão (Moscicka et al., 2019; Wounds UK, 2016), contempla-se ainda a importância do exercício físico regular e de exercícios de retorno venoso, a elevação dos membros em repouso e os cuidados à pele, não descurando, ainda que de um modo menos direto, uma intervenção nos fatores de risco e nas comorbilidades potenciadores (Brown, 2018; Finlayson et al., 2018; Probst et al., 2019). Também são desejáveis algumas modificações do estilo de vida, como são o caso de alterações na alimentação, a cessação tabágica, a redução do peso, a malnutrição, a manutenção de uma função cardíaca saudável ou um suporte psicossocial, as quais também influenciam a prevenção da recidiva da úlcera venosa (Probst et al., 2019). Mas, para que as pessoas portadoras de úlceras venosas possam compreender os diferentes fatores e intervenções inerentes à prevenção da recidiva, o conhecimento sobre a origem da lesão surge como algo absolutamente indispensável. De facto, uma baixa adesão às medidas terapêuticas para a prevenção da recidiva, está inequivocamente associada a uma falta de conhecimento (Probst et al., 2019, 2020), particularmente sobre a etiologia da úlcera venosa e sobre os benefícios e efetividade das atividades de prevenção da recidiva (Bobbink et al., 2020; Brown, 2018; Moscicka et al., 2019). Mas, a complexidade do fenómeno é de tal ordem que, embora a dimensão e implicações da recidiva da úlcera venosa sejam as já descritas, menos de 16% das pessoas mantêm as atividades de autocuidado que visam a prevenção da recidiva (Moscicka et al., 2019). Pelo que, para que seja possível a compreensão do fenómeno, impõe-se considerar a pessoa na sua globalidade, assumindo que apesar da sua individualidade, são seres que são influenciados e influenciam o mundo que os rodeia (Orem, 2001). De facto, apenas com uma visão holística da pessoa com úlcera venosa e compreensão da sua autodeterminação e de todos os fatores relacionais existentes que podem influenciar a sua adesão ao processo de autocuidado, se pode ambicionar uma efetiva prevenção da recidiva da úlcera venosa (Brown, 2017; Jones, 2017; Wilson, 2016). Partindo deste pressuposto, antevê-se a dificuldade de intervir no próprio fenómeno, sendo necessário compreender o espaço existente entre as medidas de prevenção e a pessoa com úlcera venosa e, sobretudo, o modo como esta se relaciona com essas medidas e com os fatores que podem facilitar ou comprometer essa relação. Compreender a vivência que estas pessoas possuem sobre as medidas de prevenção permitirá perceber uma importante parte da complexidade deste fenómeno.

3.Métodos

A questão de investigação quais os fatores que contribuem para a adesão às medidas de prevenção da recidiva da úlcera de perna de origem venosa, por parte das pessoas portadoras desse diagnóstico? foi o mote para o desenvolvimento do estudo denominado Prevenção da recidiva da úlcera de perna de origem venosa: O significado atribuído pela pessoa portadora às medidas preventivas, cujo objetivo principal prendia-se com conhecer os fatores que contribuem para a adesão às medidas de prevenção da recidiva da úlcera de perna de origem venosa, na perspetiva das pessoas portadoras desse diagnóstico. A investigação abordada neste artigo é parte integrante desse estudo, procurando, neste caso, compreender a vivência das pessoas com úlcera venosa na adesão às medidas de prevenção da sua recidiva. Para responder à questão de investigação e respetivo objetivo foi desenvolvido um estudo qualitativo, de carácter exploratório e fenomenológico descritivo. Partindo da experiência vivida que o indivíduo possuía sobre o fenómeno em estudo nas suas diferentes dimensões, inserido no seu próprio contexto, livres de pressupostos iniciais (Bogdan & Biklen, 2013; Streubert & Carpenter, 2013), existiu a pretensão de compreender a visão das pessoas acerca das medidas de prevenção da recidiva da sua úlcera venosa, sem mensuração da informação recolhida, mas com descrição da experiência individual de cada pessoa, valorizando por isso a sua participação. A população deste estudo é composta pelos utentes inscritos num ACES da ARSC- Portugal, tendo-se optado, para a constituição da amostra, por uma técnica não probabilística por conveniência, através da colaboração dos enfermeiros que exerciam funções nas unidades funcionais desse ACES, para que identificassem e referenciassem participantes que cumprissem os critérios de inclusão. Para esse efeito foram considerados os seguintes critérios de inclusão: idade superior a 18 anos; utente inscrito numa das unidades funcionais do ACES selecionado; história anterior de úlceras venosas; história anterior ou atual de recidiva de úlceras venosas e aceitasse participar voluntariamente no estudo, autorizando a gravação áudio da entrevista. A referenciação dos participantes foi sendo realizada gradualmente até ter ocorrido a saturação da informação. A amostra resultante dessa referenciação inclui 14 participantes, maioritariamente femininos e com uma média de idades de 65,29 anos. Em relação às suas habilitações literárias, estas variam entre o analfabetismo e o 12º ano, sendo o mais prevalente o 4º ano de escolaridade. Em conformidade com a média de idades, a maioria dos participantes estão aposentados. Já no que concerne à média de idades com que tiveram a primeira úlcera, foi de 53,07 anos, sendo que o número de recidivas variou entre 1 e 12 vezes. Para a recolha de informação, recorreu-se a uma entrevista semiestruturada, com utilização de guião. Este era constituído por um cabeçalho, onde constava a identificação numérica da entrevista, a data de realização da mesma, assim como alguns dados sociodemográficos do participante, a sua história de úlcera venosa e de recidiva da mesma. Continha ainda uma primeira parte introdutória, com informação acerca da investigação, do seu objetivo, garantia de confidencialidade e pedido de assinatura do consentimento informado. Na segunda parte, foram realizadas de um modo não restritivo, mas orientador, as seguintes questões: Na sua opinião, porque é que surgem as úlceras (“feridas”) de perna? Quer-me falar sobre os cuidados que tem habitualmente com a sua úlcera (“feridas”) de perna para esta não recidivar (“volta a aparecer”)? Conhece outros?; Alguém lhe falou sobre os cuidados específicos para minimizar a possibilidade da sua úlcera (“feridas”) de perna poder recidivar (“volta a aparecer”)? Quem? Como?; Possui alguém que o auxilie nos cuidados a prestar à sua úlcera (“feridas”) de perna?; Na sua perspetiva, qual a importância dessa pessoa para minimizar a possível ocorrência de recidiva (“volta a aparecer”) da sua úlcera (“feridas”) de perna?; No seu entender, como é os Enfermeiros do seu Centro de Saúde poderiam promover a prevenção da recidiva (“volta a aparecer”) da sua úlcera (“feridas”) de perna?. Por fim, ainda continha uma última parte onde se procurava finalizar a entrevista, através do agradecimento pela participação e disponibilidade para se conceder o acesso à entrevista transcrita e aos resultados do estudo. O processo iniciou-se em maio de 2019, tendo sido realizadas 14 entrevistas durante o mês de julho de 2019. Previamente, ainda foram efetuadas 2 entrevistas, para aferir se o guião permitia aceder a informação que possibilitasse responder ao objetivo do estudo, qual o tempo estimado para a entrevista ou se as questões seriam bem compreendidas, sem suscitarem dúvidas ou ambiguidades. As entrevistas foram gravadas com recurso a um gravador áudio, após o consentimento informado e esclarecido dos participantes, sendo-lhes garantida a confidencialidade e anonimato da informação. Todos os restantes pressupostos éticos inerentes a uma investigação foram garantidos, nomeadamente em relação à sua autodeterminação, intimidade, anonimato e confidencialidade, proteção contra o desconforto e prejuízo e tratamento justo e equitativo. Ainda se obteve a aprovação prévia das diferentes instituições envolvidas e das respetivas comissões de ética, nomeadamente pelo Conselho Técnico e Científico da Escola de Enfermagem onde foi realizado o trabalho académico no âmbito do qual surgiu este trabalho de investigação; pelo Diretor Executivo e Concelho Clínico e de Saúde do ACES onde foi desenvolvido o estudo e pela Comissão de Ética para a Saúde da ARSC. A totalidade das 14 entrevistas realizadas foram submetidas a uma análise de conteúdo, que se iniciou com a definição do corpus documental (Amado, 2013), que neste caso foi composto pela transcrição das entrevistas aos participantes. A sua constituição respeitou a regra da exaustividade e representatividade (a totalidade das entrevistas foi submetida à análise e os participantes que constituíam a amostra encontravam-se dentro dos critérios de inclusão) e a homogeneidade e adequação (todas as entrevistas foram obtidas segundo o mesmo método e realizadas pelo mesmo investigador) (Amado, 2013). A cada uma das entrevistas transcritas foi atribuída uma codificação de acordo com a ordem com que foram sendo efetuadas. Essa codificação consistiu no “E” de entrevista, seguido do número que corresponde à ordem com que foram sendo realizadas, ou seja, “E1, E2, ... E14”. Após a transcrição das entrevistas, foram conservadas as suas gravações originais, sendo que essa transcrição foi efetuada pelo investigador principal. Através da perceção obtida aquando da realização das entrevistas, do primeiro contacto com os dados obtidos pela audição integral das descrições verbais dos participantes, da transcrição das entrevistas e com as primeiras leituras flutuantes dessas transcrições, o investigador começou a imbuir-se nas experiências e respetiva significação atribuída por parte dos participantes em relação ao fenómeno em estudo (Amado, 2013; Bogdan & Biklen, 2013). Desta forma foi possível começar a extrair declarações significativas, emergindo os primeiros agrupamentos de dados semelhantes, segundo áreas temáticas, com uma categorização em diferentes níveis, com códigos principais mais gerais e abrangentes (categorias) e os subcódigos (subcategorias) (Bogdan & Biklen, 2013). Nesta categorização, naturalmente que foram tidas em conta algumas regras para a sua constituição, nomeadamente: a homogeneidade (as categorias são coerentes, sem se misturarem), exaustivas (compreendem a totalidade da mensagem do texto), exclusivas (um mesmo elemento não pode aleatoriamente caber em duas categorias), objetivas (diferentes codificadores deverão atingir resultados semelhantes) e pertinentes (adaptadas ao conteúdo e aos objetivos) (Amado, 2013). O processo de codificação e toda a informação gerada foi sendo submetida a um processo de validação e auditoria por pares, tendo este processo envolvido um total de quatro investigadores, assegurando a própria credibilidade do estudo. Após este processo, foi possível elaborar um mapa concetual e esboçar a primeira matriz, definindo e hierarquizando (em árvore) os temas, as categorias e subcategorias que emergiram dos respetivos conteúdos (Amado, 2013). Nesta fase de análise de conteúdo recorreu-se ao software WebQda®, que permitiu a agregação de achados de significado atribuído em subcategorias e categorias, resultando, deste modo, num modelo interpretativo do fenómeno em estudo.

4.Resultados e Discussão

Decorrente do processo de análise de conteúdo emergiram os temas: Como surge a minha ferida e Como previno o reaparecimento da minha ferida (Figura 1), que permitiram a reflexão sobre o fenómeno da prevenção da recidiva, nomeadamente de que modo são vivenciadas as diferentes medidas de prevenção.

Figura 1: Temas Como surge a minha ferida e Como previno o reaparecimento da minha ferida. 

A apresentação destes dois temas remete-nos de imediato para a importância que o conhecimento sobre a etiologia da lesão possui para o processo de prevenção da recidiva da úlcera venosa. De facto, o tema Como surge a minha ferida constitui-se como o primeiro tema a emergir da análise às entrevistas realizadas, advindo da perceção dos participantes sobre a origem da ferida. Para existir uma efetiva prevenção da recidiva, é essencial que a pessoa portadora de úlcera venosa conheça a origem da sua lesão, compreendendo a importância e repercussão do seu comportamento no processo de prevenção (Probst et al., 2019, 2020). Pelas categorias que derivam desse tema (Figura 1), correspondentes a uma grande amplitude de respostas, fica patente que o conhecimento que os participantes possuem relativo à etiologia da sua lesão é bastante ambíguo e disperso. Neste sentido, surgem respostas relacionadas com a patologia vascular, organizadas em diferentes subcategorias: Problemas circulatórios (“…acho é que é devido à má circulação (…) penso que esteja relacionado com a circulação e neste caso com a má circulação.” E6), o Calor (“…nesta altura do calor é sempre pior, tem mais tendência para aparecer nesta altura as feridas.” E1) e o Edema (“…agora ando sempre com as pernas muito inchadas (…) ao longo dos anos tenho notado que me vão inchando mais e isso é capaz de estar também relacionado com as feridas…” E4). Ainda se realça, a associação da origem da lesão com o facto de possuírem outras patologias (As minhas doenças: “...ela não curava, eu acho que foi por causa dos diabetes, penso eu, não sei. Eu penso que esteja relacionada com os diabetes...” E10), por uma questão hereditária (O legado da minha família: “Olhe no meu caso também já é uma questão de família.” E2) ou ainda, sobretudo, pela ocorrência de alguns traumatismos (Os meus traumatismos: “...eu ia a descer uma escadaria e rocei assim com o pé e nem sei bem como fiz… daí agravou-se e pronto tive de andar cá a curá-la...” E10). Embora seja um facto que nos primeiros casos existe uma influência para a génese da doença venosa crónica, ou no caso dos traumatismos poderem ser o fator desencadeador, os participantes revelam não compreender todos estes aspetos, enquanto fatores predisponentes, de um modo integrado, não isolado, ignorando, que as repercussões não seriam as mesmas se não existissem outras patologias associadas, nomeadamente a vascular. Este desconhecimento revelado pelos participantes acerca da origem da sua úlcera, vai ao encontro do mencionado por Brown (2018), nomeadamente que as pessoas ao não assimilarem a causa da lesão, também não compreendem a necessidade de serem implementadas as medidas de prevenção. Os participantes também se manifestaram em relação a algumas intervenções de autocuidado que visam a prevenção da recidiva da úlcera venosa, produzindo um conjunto de achados que foram agregados no tema Como previno a minha ferida, contribuindo para a compreensão da vivência deste fenómeno. Deste tema, derivam um conjunto de categorias correspondentes às principais medidas de prevenção da recidiva, das quais, de acordo com o modo como esse fenómeno é vivenciado, ainda surgem algumas subcategorias (Figura 1). Logo à partida, sobressai o facto de a generalidade dos participantes não se referirem à totalidade das medidas de prevenção, pelo que se deduz que não percecionam a prevenção como algo global que integra um conjunto de diversas intervenções, em que a ação de algumas potencia o efeito de outras. Na categoria O uso da meia de compressão, de acordo com o tipo de vivência que os participantes manifestam com a utilização da meia de compressão, achados como “Eu com elas calçadas não noto as pernas tão cansadas, a perna parece mais leve e ajuda no inchaço, faz bem ao inchaço.” E4, foram agregados na subcategoria Benefícios vivenciados, sendo claro que existem inúmeros ganhos que os participantes referem vivenciar com a utilização da meia de compressão. Neste âmbito, destaca-se a sensação de perna mais leve, menor cansaço nas pernas e uma sensação inespecífica de bem-estar. Por outro lado, também existem muitos participantes que referem Desconfortos/Limitações vivenciados, constituindo-se outra subcategoria, como sejam “…o aperto que me causa e às vezes faz-me nervos isto, por que chego ao fim do dia com este aperto e trago a perna ali com o mau estar, nem é bem a perna toda, como lhe estava a dizer é ali a curva do pé, causa-me mau estar a meia.” E1 ou “… o problema é de eu a calçar, mais o calçar que o descalçar, porque descalçar tira-se e sai, é muito mais fácil, mas calçar é que é um problema.” E4. De facto, Brown (2018), Lurie et al. (2019) e Wilson (2016) adiantam que uma das barreiras mais comuns à utilização da meia de compressão é a dificuldade que as pessoas podem apresentar no calçar e descalçar da meia, particularmente quando existem dificuldades de mobilização. Também se afigura relevante que estes achados digam respeito a participantes dos quais também emergiram outros achados que foram agregados nos Benefícios vivenciados, o que significa que à utilização das meias de compressão tanto lhe estão associados benefícios como alguns desconfortos ou limitações. Wittens et al. (2015) também referem como potenciais desconfortos na utilização das meias de compressão, a sensação de calor e prurido, acrescentando ainda um possível eczema venoso ou danos na pele originados pelo calçar e descalçar da meia, o que vai ao encontro do que os participantes vivenciam, como é o caso de “...torna-se um bocadinho desconfortável, porque é muito densa e ao longo do dia dá- me muita comichão, aquece muito, dá-me muita comichão e faz-me calor, sinto esse desconforto pela comichão e pelo calor (...)” E9. Brown (2018; 2017) também menciona a dor como outro possível desconforto, sobreponível com os participantes entrevistados: “…às vezes dói-me aqui na curva do pé, mais no calor e isso faz-me aleijar. Tenho mesmo dores, pronto não é uma dor que não aguente, mas aperta-me e faz pressão na perna e faz-me impressão…” E1. Embora Brown (2018; 2017) também alerte que essas sensações dolorosas apesar de serem frequentes no início, diminuem caso se preserve a compressão. A literatura também refere outros potenciais problemas, como preocupações com a própria higiene ou alguns aspetos relacionados com o estilo de vida (Brown, 2018; Lurie et al., 2019; Wilson, 2016), como é o caso de “...a meia prende-me a minha atividade, eu não sei como explicar isso (...). Eu coloco a meia e não sei, sinto-me presa, sinto-me diferente...” E13. Também é extremamente relevante que as meias de compressão representem um elevado peso económico para os seus utilizadores, sendo nesse sentido que um participante afirma que “… eu tinha de comprar outras, mas não há dinheiro (…), elas são caras (..) Aquela que tenho já está rota e é só uma (..) quando aquela está a lavar não tenho nenhuma para lhe pôr.” E3, estando claramente patente que o seu custo económico constitui um impedimento à sua utilização. Esta limitação também é corroborada por Franks et al. (2016), sendo que esse custo tem de ser suportado pela pessoa portadora de doença venosa crónica e de úlcera venosa, constituindo por isso um dos fatores dissuasores na adesão à compressão. Na verdade, estes diferentes achados representativos da subcategoria Desconfortos / Limitações, ajudam a explicar a baixa adesão na utilização da compressão, apesar do seu papel decisivo na prevenção da recidiva. Ainda assim, na subcategoria Adesão podemos encontrar desde relatos relativos a uma fraca adesão até a outros participantes que têm uma utilização das meias de compressão de um modo constante e efetivo. A elevação das minhas pernas, que constituiu outra categoria, continua a ser recomendada por muitos autores (Brown, 2018; Franks et al., 2016; Probst et al., 2019; Wounds UK, 2015, 2016), advogando que a elevação dos membros favorece o retorno venoso, facilitando por isso a redução do edema. Também foram agregadas subcategorias, de acordo com o tipo de vivência, como é o caso dos Benefícios vivenciados (“...quando me sentava em casa elevava as pernas e sentia logo um alívio e achei por bem elevar o colchão da cama, para poder ter as pernas mais altas, como forma de aliviar a dor, porque às vezes é como se tivéssemos uns pesos aqui nas pernas.” E9), dos Desconfortos/Limitações experienciados (“… houve um tempo em que punha a perna ao alto (…) mas não me sentia nem melhor nem pior, não via diferença…” E5) e da Adesão. Nestes achados, denota-se, para alguns participantes, o alívio da dor e a diminuição da sensação de peso, mas outros referem não vivenciar qualquer benefício com a elevação dos membros. Brown (2018) ainda alerta que a evidência sobre a elevação recorrente dos membros enquanto medida de prevenção é inconclusiva, embora pareça ser mais pertinente quando não é utilizado qualquer sistema de compressão. As categorias A hidratação das minhas pernas e A higiene das minhas pernas, enquanto medidas de prevenção, encontram-se intimamente interligadas. Os cuidados diretos à pele, nomeadamente através da sua limpeza e hidratação, são essenciais, pelo que deverão ocorrer com uma frequência diária (Franks et al., 2016; Wounds UK, 2016). Nesta categoria apenas se denotam achados que expressam Benefícios vivenciados ao hidratarem os membros, nomeadamente “A pele fica muito mais macia e a pele não racha com tanta facilidade, eu acho que é isso. (...) a pele fica muito mais (...)” E12. Neste caso, há uma clara referência à sensação de que a pele fica mais macia, chegando mesmo a percecionar que desse modo as lesões também não tendem a surgir com tanta facilidade. Quanto à sua Adesão, é possível constatar uma discrepância muito grande na sua implementação, desde uma frequência diária, como seja “... ponho sempre creme no corpo e ponho nas pernas como ponho no corpo, normalmente. Não tenho assim a preocupação específica das pernas, ponho como ponho no corpo todo, (...) é só para não ficar com a pele tão seca.” E9, até a outros participantes que confessam pouco rigor na sua implementação, confessando que “… por creme, que também nem sempre coloco, sabe às vezes dá-me a preguiça.” E3. Parece evidente que, muitos dos participantes não encaram esta intervenção como uma medida de prevenção da recidiva, mas antes apenas como algo rotineiro, não consciente ou relacionado com as outras intervenções de prevenção da recidiva. Na Higiene dos membros observam-se achados que expressam uma vivência semelhante, onde está patente que não existe uma intencionalidade da higiene dos membros enquanto medida de prevenção, como é caso de “Bem é assim, eu tiro as meias quando vou para a cama, vou tomar um duche logicamente...” E9. Por último na categoria O exercício às minhas pernas, está patente que a generalidade dos participantes não reconhece a existência de exercícios específicos que favoreçam o retorno venoso. Apenas se referem globalmente à importância do exercício físico, como é o caso de “Às vezes ouço falar que andar, fazer caminhadas com a meia calçada faz bem à circulação ...” E1. Outros participantes, assumem desconhecer completamente este tipo de exercícios, como é o caso de “...mas isso também não faço, porque se calhar também nunca ninguém me disse para fazer...” E7. De facto, demonstram um desconhecimento sobre a importância de exercícios musculares que promovam a função das bombas musculares, como seriam os exercícios de elevação do calcanhar em escadas, movimentos em cacho dos dedos para apanhar uma toalha, extensões dos dedos dos pés, alongamentos em pé ou rotação do tornozelo, melhorando dessa forma a função do músculo gemelar (Brown, 2018). A análise a estes temas demonstra que a generalidade dos participantes não conhece, na sua globalidade e de um modo integrado, as principais medidas de prevenção da recidiva da úlcera venosa. Também aparentam não distinguir a importância e o funcionamento de cada uma das medidas, percecionando, por isso, um conjunto de benefícios e desconfortos/limitações que condicionam uma adesão que é manifestamente baixa.

5.Considerações Finais

A gestão de uma úlcera venosa está longe de terminar após a conclusão do seu processo de cicatrização, pois a cronicidade da doença venosa implica, para além de uma vigilância contínua, a implementação de um conjunto de medidas de autocuidado que visem a prevenção da sua recidiva. A prevenção da recidiva da úlcera venosa inicia-se com o conhecimento que o seu portador possui sobre a etiologia dessa úlcera, pois permitirá compreender a necessidade de alterações comportamentais ou a utilização das diferentes medidas de prevenção. Após o conhecimento sobre a etiologia da lesão, a utilização de compressão é uma componente essencial em todo o processo de prevenção da recidiva, incluindo-se ainda os exercícios de retorno venoso, a elevação dos membros em repouso e os cuidados de limpeza e hidratação da pele. Apesar de estarem identificadas estas medidas de prevenção, relatam-se taxas de recidiva demasiado elevadas e que, potencialmente poderiam ser evitáveis. Associadas à utilização das medidas de prevenção, os portadores da úlcera venosa vivenciam alguns benefícios, mas também alguns desconfortos/limitações que ao longo do tempo prevalecem e que permitem justificar as elevadas taxas de recidiva. Este será o contexto preferencial de atuação dos enfermeiros, pela sua proximidade às pessoas, a estes fenómenos e às intervenções de autocuidado. A compreensão deste fenómeno de prevenção da recidiva, por via da fenomenologia, poderá permitir o desenvolvimento de diferentes intervenções que permitam capacitar a pessoa portadora da úlcera venosa para a compreensão e implementação das diferentes medidas de prevenção da recidiva, procurando limitar as dificuldades/limitações e potenciando os benefícios. Esta possibilidade de intervir neste fenómeno de elevada complexidade, aberta pela fenomenologia, revela ainda a importância e utilidade desta metodologia qualitativa.

6.Referências

Amado, J. (2013). Manual de investigação qualitativa em educação. Imprensa da Universidade de Coimbra. [ Links ]

Bobbink, P., Larkin, P. J., & Probst, S. (2020). Experiences of Venous Leg Ulcer persons following an individualised nurse-led education: Protocol for a qualitative study using a constructivist grounded theory approach. BMJ Open, 10(11). https://doi.org/10.1136/bmjopen-2020-042605 [ Links ]

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Recebido: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2022

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