1.Introdução
A pesquisa qualitativa em saúde tem sido a área de pesquisa que recolhe informações de cunho social e cultural frente às questões da saúde. O campo da pesquisa qualitativa em saúde é também uma reafirmação da ciência não-hegemônica, ou seja, de amplo questionamento acerca da produção do conhecimento realizada pela ciência de caráter positivista e exata como forma hegemônica de produção de conhecimento a ser seguida (Nakamura, 2011; Langdon, 2014). O conhecimento antropológico tem sido frequentemente requistado pelo campo de pesquisa qualitativa em saúde. Não obstante, esta interface tem confluído de maneira potente na conformação do que se denomina a área da ‘antropologia da saúde’. Esta área tem realizado pesquisas utilizando métodos originalmente das ciências sociais e aplicados à área da saúde. O objetivo desta área é o de ampliar a compreensão das questões que emergem da população e das práticas profissionais na área da saúde, considerando a questão social e cultural como fatores que permitem (ou não) melhores condições de vida ao indivíduos e coletividades. A partir dos temas explorados pelos estudos, estes tornam-se recursos e ferramenta para a atuação profissional em saúde por meio de políticas sociais e abrem-se para aprofundamento enquanto campo de estudo e de produção de conhecimento. Dentre os métodos utilizados, uma das opções tem sido o uso da ‘etnografia’ como método de recolhimento de informações e aproximação do diferente, uma vez que a etnografia se centra no “etno”, ou seja, no estudo do sociocultural da diversidade existente. Assim o pesquisador, ao ir a campo, precisa se inserir socioculturalmente nele e, por isso, finda por experimentar aquele modo de vida em alguma medida (Nakamura, 2011; Langdon, 2014). Como integrante da etnografia, a ‘autoetnografia’ surge como possibilidade de descrever, sistematizar e analisar experiências pessoais (auto) para entender a experiência cultural (grafia) e a experiência em comunidade (etno). Trata-se de um método que inclui os aspectos da subjetividade, a troca afetiva do pesquisador em questão com determinada população e a atribuição de significado (a do pesquisador e das demais participantes da pesquisa pela leitura do pesquisador) e lança luz a isso, em vez de esforçar- se em busca de assegurar uma suposta neutralidade inexistente. A autoetnografia traz consigo o conceito de reflexividade, o qual busca olhar e refletir a partir daquilo que o pesquisador vive, a partir das relações que são estabelecidas entre ‘pesquisador’ e ‘campo’ e o que possa a emergir pelo caminhar da pesquisa (Bochnet et al., 2011). Em uma perspectiva histórica, a autoetnografia partiu do campo das ciências sociais, especificamente do campo da Antropologia Social. Este último desenvolveu pesquisas com o método da etnografia para entender aspectos culturais e de atribuição do significado à diferentes sociedades. A partir do uso da antropologia e do uso da etnografia, entendeu-se que estas poderiam aplicar-se a outras áreas, pois trata- se de um campo transversal a todos os outros e portanto, passaram-se a ser exploradas por pesquisas de caráter antropológico no campo da saúde. A autoetnografia encontra-se como uma das possibilidades de coleta de dados dentre outras que a etnografia nos apresenta e, que, neste estudo a exploraremos (Caprara & Landim, 2008; Langdon, 2014). A autoetnografia é um método que vem sendo utilizado nos últimos 20 anos em pesquisas em diferentes países do mundo, sobretudo nos países do norte global (Estados Unidos e Europa). A nível mundial, a autoetnografia tem ganhado maiores proporções e com isso, tem sido mais utilizada para diferentes tipos de estudo e também bastante discutida em estudos que analisam a questão do método, os quais também a tem trazido como uma opção aos pesquisadores do campo da pesquisa qualitativa (4; Bochner et al., 2011; Bochner, Adams, & Ellis, 2011; Atay & Chawla, 2018). No Brasil, a autoetnografia vem sendo explorada enquanto método há menos tempo, onde ainda encontra grande resistência na sua utilização. Tampouco a autoetnografia vem sendo validada pelos periódicos científicos da área da saúde. Ao contrário, percebe-se que a maior parte da produção científica faz uso da etnografia compreendida enquanto ‘etnografia clássica’. Há grande produção a partir do campo das ciências sociais e em processo de ampliação para o campo da antropologia em saúde, contudo a autoentnografia ainda encontra-se com pouca penetrabilidade na saúde. Para complexificar este cenário, quando pensamos em uma perspectiva crítica, para além da descrição e análise do empírico em tela, a autoentografia tem padecido de elementos que reforcem o caráter crítico de sua reflexividade. Sendo considerada um bom método para capturar a imediatez dos fatos, esta sua caraterística pode ser potencializada com uma visão crítica que ultrapasse a imediaticidade do mundo empírico e faça o sujeito (auto) refletir criticamente sobre o cenário de múltiplas sensações que o atravessa. É neste sentido que a perspectiva marxista tem sido convocada a fundir-se na experiência autoentográfica como forma de repensar o mundo empírico imediato com uso desta lente. Contudo, ainda assim, pouco se sabe como esta fusão entre autoetnografia e a perspectiva marxista tem sido proporcionadas nas investigações com este método. Diante desta lacuna, é que este trabalho justifica-se pela necessidade de ampliação dos estudos no Brasil acerca da autoetnografia enquanto uma opção metodológica, bem como discutir de que maneira se tornaria possível a aproximação da autoetnografia enquanto método de pesquisa com a teoria marxista (Santos, 2017). Assim, o objetivo deste estudo é revisar a produção científica internacional sobre a autoetnografia enquanto método de pesquisa e seu potencial diálogo com a perspectiva marxista.
2.Metodologia
Este estudo será uma revisão sistemática crítica da literatura cuja pergunta de pesquisa será: “o que a literatura internacional apresenta sobre autoetnografia em diálogo com a perspectiva marxista? Esta revisão busca conhecer a literatura em periódicos internacionais com foco metodológico, uma vez que não existem periódicos nacionais que discutem diretamente este método e que são abertas à teoria marxista e marxiana. Nesta perspectiva, entende-se ser fundamental compreender o que há de produções e o que essas produções discutem sobre autoetnografia e marxismo. Inicialmente, foi realizada uma busca exploratória nos principais periódicos internacionais que discutem questões metodológicas e se demonstram abertos à teoria marxista e marxiana. Dentre estes, verificou- se alguns periódicos que publicam estudos com foco metodológico, uma vez que corresponde aos objetivos deste estudo. A partir da seleção de periódicos pelos critérios citados anteriormente, chegou- se ao número de 21 periódicos internacionais diferentes, sendo majoritariamente periódicos europeus e norte americanos. São eles: 1) Qualitative Research; 2) Journal Of Contemporary Ethnography; 3) Historical Social Research; 4) Forum: Social Qualitative Research; 5) International Journal Of Qualitative Methods; 6) Cultural Studies ↔ Critical Methodologies; 7) New Proposals: Journal of Marxism and Interdisciplinary Inquiry; 8) Qualitative Health Research; 9) American Anthropologist; 10) Critical Sociology; 11) European Journal of Sociology; 12) Economics and Philosophy; 13) International Labor and Working Class History; 14) Journal of Classical Sociology; 15) Monthly Review; 16) Millenium; 17) Österreichische Zeitschrift für Soziologie; 18) Review of International Studies; 19) Journal of Women in Culture & Society; 20) Theory & Psychology; 21) Sociology. Para esta revisão, foram utilizados termos livres como os buscadores. Foram eles: “autoethnography”; “autoethnography AND Marx”; e “critical autoethnography”. A partir dos resultados destes três descritores, percebeu-se que a associação de descritores “Autoethnography” AND “Marx” corresponderia melhor aos objetivos da pesquisa, descartando-se os demais. Ao realizar a busca “autoethnography” AND “marx” nos periódicos escolhidos, foram encontrados 132 artigos disponíveis, onde, posteriormente 4 foram excluídos por repetição e 2 estavam classificados como “volume inteiro” - totalizando 126 artigos elegíveis para próxima etapa da pesquisa (quadro 1).
Fonte: Elaboração própria.
Para avançar, foi realizada a leitura dos títulos destes 126 artigos e por meio desta leitura, foi realizada nova seleção de artigos, tendo como critério para seleção aqueles que possuíam “autoetnografia” e/ou “metodologia” no título e como critério de exclusão aqueles que não tinham estes termos. Assim, foram excluídos 101 artigos e permaneceram 21 artigos para que se realizasse a próxima etapa. Na próxima etapa foi realizada a leitura dos resumos destes 21 artigos, com o objetivo de selecionar apenas os artigos que corresponderiam aos critérios de inclusão e exclusão deste trabalho, ou seja, artigos que abordassem a autoetnografia enquanto possibilidade metodológica e sua possível relação com a teoria marxista, marxiana. A partir da leitura dos resumos dos 21 artigos, permaneceram 12 artigos, considerados incluídos na presente revisão, para leitura na íntegra, listados a seguir:
“A Millennial Methodology? Autoethnographic Research in Do-It-Yourself (DIY) Punk and Activist Communities”;
“The Encounters and Challenges of Ethnography as a Methodology in Health Research”;
“Imagination as Method”;
“The Waitress: On Affect, Method, and (Re)presentation”;
“Top Ten + List: (Re)Thinking Ontology in (Post)Qualitative Research”;
“Special Issue: From One to An-other: Auto-ethnographic Explorations in Southern Africa”;
“The Advantages and Disadvantages of Mixing Methods: An Analysis of Combining Traditional and Autoethnographic Approaches”;
“The ethics of autoethnography”;
“Autoethnography - making human connections”;
“The ‘I’ in IR: an autoethnographic account”;
“Transcending objectivism, subjectivism, and the knowledge in-between: the subject
in/of ‘strong reflexivity’”;
“A Methodology for the Marginalised: Surviving Oppression and Traumatic Fieldwork in the Neoliberal Academy”.
Para a análise dos 12 artigos incluídos será utilizada a perspectiva da Análise de Conteúdo Crítica, que é fundamentada pelo materialismo histórico-dialético. Os aspectos teóricos-metodológico dessa análise se relaciona à visão dialética da teoria social crítica. Ela permite a apreensão da totalidade, assegurando o conhecimento da relação entre a autoetnografia enquanto método de pesquisa e o marxismo, como o objeto da presente revisão. Ao se apoiar nas reflexões sobre o método em Marx, Netto (2011, p.21) esclarece que para esse autor, “a teoria se constitui no movimento real do objeto transposto para o cérebro do pesquisador - é o real reproduzido e interpretado no plano ideal”. Desse modo, Marx não se reduz à empiria, à sua aparência. Para ele, o conhecimento parte da aparência - da realidade, em que se inicia o conhecimento -, porém não se resume a ela. Marx (apud Netto, 2011) argumenta que se a aparência revelasse a essência, bastaria repousar o olhar sobre ela e, logo, o entendimento do mundo seria facilmente revelado; não haveria essência do objeto, dito de outro modo, não se conheceria a sua estrutura e sua dinâmica - elementos constitutivos da essência. Assim, o conhecimento do homem deve negar a aparência, a empiria, mas não cancelá-la. A aparência torna-se importante porque a descrição dos fatos (do movimento do capital) é fundamental para o conhecimento, mas não se esgota aí. Nesse sentido, a aparência para Marx constitui-se expressão de processos. Marx sinaliza que todo objeto revela-se por meio de expressões empíricas “coaguladas de processos”. Tal expressão é emprestada da análise de Netto (2011) e que segundo esse autor, para Marx:
“[...] o papel do sujeito é essencialmente ativo: precisamente para apreender não a aparência ou a forma dada ao objeto, mas a sua essência, a sua estrutura e a sua dinâmica (mais exatamente: para apreendê-lo como um processo) [...]” (Netto, 2011, p. 25).
Ao se valorizar o método de Marx, a Análise de Conteúdo Crítica será o centro de nossa opção metodológica na revisão que se pretende realizar. Neste sentido, a análise dos artigos incluídos na revisão será flexível para a compreensão dos conceitos e categorias utilizadas, buscando desconstruí-los (Utt & Short, 2018). Para tanto, segundo esses autores a Análise de Conteúdo Crítica deve se guiar pelas seguintes etapas: i) decisão acerca de uma proposta de pesquisa e perguntas; ii) seleção e leitura do texto para análise; iii) aprofundamento em um quadro teórico crítico e seleção de princípios importantes; iv) abordagem do contexto sócio-histórico do texto; v) leitura de estudos de pesquisa associados à temática; vi) consideração da posição do sujeito implicado ao objetivo e ao texto da pesquisa, vii) exame das questões relacionadas ao poder no contexto temático; viii) determinação da unidade de análise e organização da análise de dados; ix) leitura atenta dos textos usando as ferramentas analíticas e os princípios teóricos; x) reexame da teoria e dos textos. Espera-se que a partir deste trabalho, possa se reconhecer as conexões possíveis entre autoetnografia e o marxismo, entendendo a autoetnografia como possível metodologia a ser utilizada para a apreensão da inserção cultural, social, econômica e política da classe trabalhadora em uma perspectiva crítica. Este trabalho baseia-se de acordo com a Resolução n. 510/2016, a qual apresenta em seu corpo os aspectos éticos para pesquisas da área de Ciências Humanas e Sociais, onde ressalta que estudos que não envolvem seres humanos direta ou indiretamente não necessitam de submissão e aprovação em Comitê de Ética de Pesquisa.
3.Considerações Finais
Este processo de exploração da literatura, ainda em um primeiro momento de construção da estratégia de busca da revisão sistemática crítica demonstrou que este diálogo entre autoetnografia e marxismo mais parece um desencontro do que um encontro propriamente dito. Contudo, a remanescência de 12 estudos que aproximam o método da autoetnografia com a perspectiva da teoria social de Marx parece ser um achado importante de justifica a insistência neste caminho. Ou seja, por mais escasso que seja, existem estudos que realizam este encontro. Espera-se que este caminho delianeado até o momento possa servir de guia para outros pesquisadores realizarem este mesmo empreendimento em outros grupos de revistas de foco metodológico (ou não), a depender da situação. É possível que, em outras áreas como no âmbito do marxismo estrito senso, ou da antropologia em geral possa haver estudos que porventura realizem análises com foco nesta interface.