1.Introdução
O letramento em saúde (LS), pode ser entendido como o nível de conhecimento que as pessoas possuem para desenvolverem habilidades de busca, compreensão e codificação de informações, as quais auxiliam na tomada de decisões cotidianas. Tais habilidades podem ser direcionadas ao cuidado, a prevenção de doenças ou promoção em saúde relacionadas as doenças crônicas com o objetivo de prevenir complicações (Oscalices et al., 2019). Portanto, quanto maior o conhecimento das pessoas e o seu nível de LS em relação à doença, maior tende a ser a confiança e segurança para realização do autogerenciamento e/ou autogestão do cuidado e, consequentemente, melhores serão os resultados quanto à sua saúde, como adesão ao tratamento, qualidade de vida e adoção de hábitos saudáveis (Castro et al., 2016). As informações adequadas são capazes de aumentar o conhecimento e as habilidades de cuidado, especialmente em situações de pós operatório, assim como, melhorar a capacidade dos pacientes na adoção de comportamentos de autocuidado, pois na maioria das vezes necessitam receber orientações sobre as dificuldades e problemas que irão enfrentar durante o processo de recuperação no domicílio, seja no cuidado com a ferida operatória ou outros problemas inerentes a condição (Magnani et al., 2018; Omari et al., 2013). O tratamento cirúrgico pode representar para as pessoas uma nova realidade, abruptamente imposta, que desestrutura seu sistema emocional, desde o pré-operatório, momento no qual obtêm conhecimento do seu diagnóstico, decisão da realização do procedimento cirúrgico, até a sua recuperação e reabilitação (Coppetti et al., 2015). A falta de controle vislumbrada na situação cirúrgica acentua a sobrecarga de sensações envolvidas, já que a pessoa fica exposta a um contexto dicotômico de vida e morte que gera um grande impacto na sua vida, assim como, da sua família, seja no aspecto físico ou psicológico (Milani et al., 2018). Nesse sentido, o LS, permite que as pessoas acessem, processem e compreendam as informações e o funcionamento dos serviços de saúde, com a finalidade de tornarem-se participantes ativos do seu cuidado (Magnani et al., 2018). Sendo assim, questiona-se qual a compreensão do conhecimento e do LS de adultos no pós-operatório tardio de revascularização do miocárdio. Para responder a tal questionamento objetiva-se com essa pesquisa descrever o conhecimento e o LS de adultos no pós-operatório tardio de revascularização do miocárdio.
2.Metodologia
Trata-se de um estudo qualitativo descritivo, com abordagem retrospectiva, parte do resultado de uma tese de doutorado intitulada “O enfermeiro e a Literacia em Saúde na autogestão do cuidado de pessoas pós-cirurgia cardíaca”, que seguiu as diretrizes do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ). Os critérios de inclusão foram: ter sido acometido por Infarto Agudo do Miocárdio (IAM) e ter sido submetido a cirurgia cardíaca; idade superior a 18 anos; e atingir a pontuação mínima no Mini-exame do Estado Mental (Mini-Mental), tendo como ponto de corte requerida de 13 para analfabetos, 18 para baixa e média escolaridade e 26 para a alta escolaridade, consideram-se como baixa escolaridade os valores de um a quatro anos de estudo; média escolaridade, de quatro a oito anos incompletos; e alta escolaridade com mais de oito anos (Bertolucci et al., 1994). Os critérios de exclusão: endereço inexistente, problemas mentais relatados pela família e recusa em participar devido a pandemia da Covid-19. A coleta dos dados ocorreu entre os meses de dezembro de 2020 a abril de 2021. Para a seleção dos participantes foram analisados todos os prontuários de pessoas submetidas a cirurgia cardíaca no último semestre de 2019, que tiveram IAM e que foram atendidas em um hospital de referência em cardiologia da Região Oeste do Paraná, Brasil. Foram selecionados 44 prontuários que correspondiam aos critérios de inclusão, após a identificação dos participantes, realizou-se contato telefônico, sendo eleitos 24 (55%) para visita domiciliar. No domicílio, explicou-se o desenvolvimento da pesquisa, e foi coletada assinatura no Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE). Em sequência aplicados os instrumentos para coleta de dados. Utilizou-se os seguintes instrumentos: questionário semiestruturado que contemplou as variáveis sociodemográficas, clínicas e os hábitos de vida dos participantes; a Eight-Health Literacy Assessment Tool (HLAT-8), com a finalidade de identificar o nível de conhecimento em saúde (letramento em saúde); e um roteiro de entrevista composto de cinco questões abertas, referentes a compreensão em relação ao pós-operatórios, as dificuldades encontradas e/ou percebidas pelos participantes antes e depois do procedimento cirúrgico. A HLAT-8 tem pontuação total que varia de zero a 32 pontos, sendo estabelecido para este estudo uma pontuação ≥19 pontos para LS satisfatória, e valores abaixo do descrito como LS insatisfatória. Para a análise utilizou-se as etapas propostas por Creswell (2014), pré-análise, codificação, tratamento dos resultados e interpretação. As entrevistas foram audiogravadas, com duração média de uma hora, após, transcritas e lidas na íntegra, bem como, pré categorizadas nas dimensões propostas pelo HLAT-8: letramento funcional, interativo e crítico. A primeira compreende competências suficientes para ler e escrever e permite um funcionamento eficiente das atividades diárias; na segunda, as competências e o letramento estão num patamar superior, pois além da realização de atividades diárias, obtêm-se informações e significados de diferentes formas de comunicação e consegue-se aplicar essas novas informações. Já, na terceira as pessoas são capazes de analisar criticamente a informação recebida e de utilizá-la para maior controle sobre a sua vida (Pedro et al., 2016). Em sequência procedeu-se a codificação e construção do corpus textual para inserção no software Interface de R Pourles Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRAMUTEQ_0.6- alpha3®), utilizou-se a análise de similitude, como base na teoria dos grafos. A similitude representa a junção entre termos do corpus textual, sendo que baseado nesta análise é possível construção de um texto correlacionado aos temas com maior significância a partir da sincronia entre as palavras. Vindo a contribuir na identificação da estrutura da base de dados (corpus), destacando os segmentos comuns e as especificidades, além de permitir verifica-las em função das variáveis descritivas existentes. A matriz de similitude, é calculada a partir de um dos escores escolhido, sendo sua análise iniciada na biblioteca Igraph R. A caracterização dos participantes foi analisada por meio de estatística descritiva com auxílio do Microsoft Excel® 2010 e os resultados apresentados em tabelas. Para análise lexical, realizou-se a leitura dos relatos dos participantes com vistas ao entendimento, para posterior fragmentação e construção do corpus textual, bem como para inserção no software de análise o IRAMUTEQ_0.6- alpha3®. A análise de conteúdo dos depoimentos foi realizada de acordo com as etapas propostas por Creswell (2014): 1) pré-análise, 2) exploração do material ou codificação e tratamento dos resultados e 3) interpretação. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa no Estado do Paraná, sendo seguida as recomendações da Resolução nº466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), com o nº do parecer 5.048.079. As informações coletadas foram mantidas em anonimato; e o nome do participante, substituído por um código identificador, com a utilização da letra EP (entrevista/participante) seguida por um número arábico em ordem crescente (EP_1, EP_2...). A pesquisa foi desenvolvida no domicílio do participante, em local reservado, sem a presença de outras pessoas, excetuando-se os casos em que houve solicitação do participante.
3.Resultados
Os participantes foram 75,0 % (n= 18) homens e 25,0% (n=6) mulheres, na faixa etária entre 44 e 68 anos; e 58,3% (n=14) com tempo de escolaridade <9 anos. Sendo que 70,8% (n=17), tinham renda média autodeclarada inferior a R$ 3.000,00. Destacou-se dentre os fatores de risco o uso do tabaco, sendo que 46% (n=11) relataram ser ex- fumantes; 21% (n=5) mantiveram o uso mesmo após a realização do procedimento cirúrgico. Dos 11 participantes 63,6% (n=7) pararam de fumar a menos de dois anos do evento cardíaco. Quanto ao LS, a pontuação mínima obtida na HLAT-8, foi de seis e a máxima de 29. Dos 24 participantes 58,3% (n=14) apresentaram LS insatisfatório. As transcrições das entrevistas possibilitaram a construção de um corpus geral constituído por 24 textos, separados em 430 segmentos de texto (ST) com aproveitamento de 86,5%. Após verificação da similitude emergiram em três categorias: “Entendimento, busca e compreensão das informações de saúde”; “Rede de apoio familiar e amigos, no cuidado após a cirurgia cardíaca” e “Momento Cirúrgico”. Na primeira categoria é possível identificar a dificuldade dos participantes em compreender as informações de saúde, assim como, em buscar conhecimentos para a melhoria dos cuidados com a sua doença:
“[...] veio várias pessoas. Que eu sabia que era o enfermeiro, o doutor e outras pessoas. Muita gente que informou (sobre os cuidados com a saúde), e eu pedia como era pra fazer” EPM_13. “É eu acho (que as informações de saúde) tem que ser no médico, no posto uma coisa assim. Às vezes, vou na farmácia [...], mas hoje a maioria no médico, no posto. No Google alguma também” EPM_22.
Os participantes não tinham o hábito de leitura, assim como percebe-se a dificuldade de compreensão das informações oferecidas pelos profissionais de saúde, o que pode vir a interferir no processo de adesão a terapêutica ou compreensão da gravidade do quadro clínico e consequentemente na recuperação. Já, em relação a “Rede de apoio familiar e amigos, no cuidado após a cirurgia cardíaca”, o depoimento de EPM_5, ressalta a importância da família na execução dos cuidados no domicílio.
“[...] a gente sentia dificuldade deles (filhos). De lidar comigo, porque tudo você tem que pegar dar banho. Você depende de tudo, [...] mas eu quero deixar um alerta, você volta a ser criança, você vê as pessoas fazendo o máximo de si para você ficar melhor, mas vai da consciência da pessoa[...]. Eu era um cara muito teimoso.” EPM_5
Já no depoimento de EPF_8, observa-se a importância do apoio da comunidade, na busca pela mudança do estilo de vida.
“[...] tenho umas amigas que caminham comigo elas me acompanham pelo fato de você passar mal e não ter ninguém por perto, então elas sempre então junto comigo. Todo dia, elas já ligam e já me chamam para a gente fazer caminhada comigo.” EPF_8
Em relação ao “Momento Cirúrgico”, observa-se nos depoimentos abaixo, primeiramente a surpresa pelo fato de terem infartado e posteriormente, o medo e angústia com o desfecho cirúrgico. Momento esse que gera diferentes emoções, frente a necessidade da realização da cirurgia cardíaca.
“Problema de coração, eu nunca achei que na minha vida eu tivesse isso. Porque, [...] praticamente eu cuidava mais a questão de câncer, essas coisas. Porque na minha família, até hoje morreram de câncer. Então isso foi para mim foi uma surpresa”. EPM_2
“Horrível, eu pensei meu Deus do céu, o que que aconteceu comigo, porque eu não tinha noção do que que ia acontecer”. EPF_20
Nota-se no depoimento de EPF_20 o medo da morte, da invalidez e do desconhecido, pois não estava preparada para o IAM, muito menos para realizar uma cirurgia cardíaca, fato que leva ao sentimento muitas vezes, de incapacidade frente a situação e a busca de apoio na religião, com vistas a compreender o motivo do adoecimento.
4.Discussão
A abordagem qualitativa, auxiliou na identificação das dificuldades encontradas durante o processo de recuperação e retorno ao domicílio após a cirurgia cardíaca, bem como no reconhecimento da importância da rede de apoio nesse processo. Portanto, torna-se fundamental para a melhoria da qualidade de vida e adesão ao tratamento, assim como nas mudanças de hábitos nocivos à saúde, as orientações contínuas e o acompanhamento dos profissionais de saúde para a realização do planejamento do cuidado (Malta & Merhy, 2010). O procedimento cirúrgico representa uma ameaça, muitas vezes repleta de sentimentos de dúvidas, medos e insegurança e para amenizar o estresse pós-operatório e evitar complicações, faz-se necessária as orientações do enfermeiro no momento da alta hospitalar, com a finalidade de auxiliar o paciente e seus familiares na prevenção de agravos, enfatizar a importância da adesão ao tratamento, a mudança no estilo de vida, esclarecer as dúvidas acerca do processo de recuperação e incentivar o autocuidado (Coppetti et al., 2015). Em estudo realizado no Tenesse (EUA), envolvendo 1.967 participantes com Síndrome Coronariana Aguda (SCA) ou Insuficiência Cardíaca Congestiva (ICC) , no período de 2011 a 2014, os autores identificaram que a baixa alfabetização e LS estavam significativamente associadas a não adesão ao tratamento e desempenhava um papel importante na agudização das condições crônicas, como Insuficiência Cardíaca (IC) e doença coronariana, resultando em aumento das readmissões hospitalares (Kripalani et al., 2015). Desse modo, quando as pessoas com IC possuem autoconhecimento, adquirem propensão ao autocontrole sobre a sua doença e a autogestão, possibilitando reconhecimento precoce de sinais e sintomas de agravamento da doença, evitando complicações clínicas que possam levá-los a readmissão hospitalar (Balsas et al., 2017). Salienta-se que o conhecimento do processo saúde/doença, LS, autoeficácia, motivação e apoio social são antecedentes para o desenvolvimento de habilidades para gerenciar a doença crônica (Matarese et al., 2018). Os resultados dos níveis de LS, na maioria dos participantes, obtiveram níveis insatisfatórios, corroborando com os achados de pesquisa transversal analítica com 100 participantes com IC, aos quais foi aplicado o Newest Vital Sign para avaliar os níveis de LS, sendo que 68% apresentaram níveis insatisfatórios (Oscalices et al., 2019). O LS tem como base, a capacidade das pessoas de fazer escolhas, tomarem decisões fundamentadas no seu cotidiano, e então assumirem corresponsabilidade, além de permitir o questionamento em relação ao seu cuidado, porém, os baixos níveis de LS não devem ser considerados como um problema individual, mas sim como um problema sistêmico, o qual é ocasionado por lacunas do acesso aos sistemas e recursos de saúde, da efetividade da comunicação entre pacientes e profissionais, e das ações de promoção de saúde (Pedro et al., 2016).
5.Consideração Finais
O método qualitativo empregado nesta pesquisa possibilitou destacar aspectos importantes relacionados ao conhecimento e ao LS de adultos no pós-operatório tardio de revascularização do miocárdio e ampliar a sua compreensão, possibilitando a determinação de lacunas no processo de recuperação pós cirurgia e retorno ao domicílio. Os resultados encontrados permitiram identificar que os participantes possuem dificuldades em compreender as informações de saúde e consequentemente em adquiri-las e implementá-las para os cuidados com a doença. Também identificou-se a importância da rede de apoio (família e comunidade) no auxílio para os cuidados em domicílio e mudanças do estilo de vida. Essa compreensão coaduna com os baixos níveis de LS e fornece diretrizes aos profissionais de saúde sobre os aspectos à serem abordados no planejamento do cuidado. A limitação encontrada refere-se ao fator tempo que pode ter interferido na lembrança dos eventos pós-operatórios.