1.Introdução
A segurança do paciente (SP) destaca-se como uma temática atual e que está em amplo processo de difusão, visto que se relaciona de maneira direta com a qualidade da assistência à saúde, bem como pode apontar características das dinâmicas organizacionais e/ou estruturais dos ambientes hospitalares (Carrera & Aguiar, 2014). Nesse contexto, em busca da consolidação da SP, surge a cultura de segurança como base primordial para a promoção da qualidadedo cuidado seguro em saúde (Wegner et al., 2016). Pois objetiva promover a segurança de maneira disseminada em toda a organização, ao encorajar recompensar, identificar, notificar e resolver problemas ligados a assistência, e que a partir da ocorrência de incidentes busca proporcionar o aprendizado organizacional em toda a instituição (Brasil, 2013). Entretanto, há vários aspectos que geram entraves para o estabelecimento da cultura de segurança, dentre eles, a cultura punitiva enraizada nas instituições de saúde, o mau dimensionamento de pessoal, as más condições de trabalho no que se refere a estrutura física, materiais básicos e equipamentos, a falta de capacitação dos profissionais e o pouco conhecimento sobre SP entre os trabalhadores e os gestores (Paese & Sasso, 2013). Com relação ao ambiente hospitalar, a estrutura organizacional sofre modificações de acordo com as demandas inerentes de cada setor, uma vez que,possuem exigências específicas que variam com as necessidades dos pacientes internados. Nesse sentido, ao considerar as particularidades, cabe destaque aos setores de urgência e emergência, por priorizar o atendimento à pacientes com enfermidades agudas e com maior risco à vida, em que se faz necessário a atuação de uma equipe especializada para a promoção do atendimento rápido, eficiente e seguro (Dantas et al., 2015). Destarte, entre os vários integrantes da equipe de saúde nesses setores, tornam-se relevantes os técnicos de enfermagem, visto que são o maior quantitativo de profissionais de saúde em uma equipe multidisciplinar, e nos setores de urgência e emergência se sobressaem por serem os profissionais que assistem de forma direta ao paciente, responsáveis pela execução de diversos procedimentos, como a administração de fármacos, realização de curativos, mobilização do paciente (Cofen, 2015). Portanto, os técnicos de enfermagem são os profissionais que dedicam a maior parte de sua carga horária laboral à cuidados diretos ao paciente, fato esse que contribui para uma maior probabilidade de se envolver em incidentes, por outro lado, são eles que devido ao tempo dedicado ao exercício de sua função, possuem uma maior vivência no setor, o que corrobora para torná-los aptos a compreender a sua rotina, de maneira que suas percepções podem vir a corresponder de maneira fidedigna na realidade a qual estão inseridos. Diante o exposto, surge a seguinte questão norteadora: Qual a percepção de técnicos de enfermagem sobre a cultura de segurança em um setor de urgência e emergência? E objetivou-se analisar a percepção dos técnicos de enfermagem sobre cultura de segurança na urgência e emergência.
2.Métodos
Trata-se de um estudo transversal de abordagem qualitativa (Polit & Beck, 2018), uma vez que se busca analisar as percepções de diferentes indivíduos, mas que compartilham do mesmo fator de investigação, a cultura de segurança do paciente. Ademais, por ser uma temática subjetiva, a caracterização qualitativa desta pesquisa contribui significativamente na compreensão dos achados mediante as diversas correlações possiveis de serem efetuadas. Foi realizado com técnicos de enfermagem atuantes no setor de urgência e emergência de um hospital estadual de grande porte do nordeste brasileiro, o quel é referência na região para esse perfil de atendimento, uma vez que apresenta uma média de atendimento de 25.000 pacientes/mês, oriundos da capital e de outras regiões. Em sua estrutura, esses setores dispõem de ambientes de recepção, classificação de risco, consultórios de atendimento, salas para exames, de reanimação, hemodiálise, gerência de enfermagem, banco de sangue, laboratório, farmácia, unidades de terapia intensiva e setor de urgência e emergência. Vale ressaltar que a instituição apresenta um Núcleo de Segurança do Paciente (NSP) que desenvolve atividades acerca da temática em evidência para os profissionais. Dentre as várias áreas de atendimento, se encontram distribuídos 245 profissionais da equipe de enfermagem, dos quais 25 são enfermeiros e 220 técnicos de enfermagem que exercem suas funções nos três turnos. No entanto, entre os 220 técnicos de enfermagem atuantes neste setor, 88 (40%) atenderam aos critérios de inclusão e compuseram a amostra desse estudo. A amostra se deu por conveniência, de forma a incluir no estudo os profissionais que atuavam no setor, trabalhavam há no mínimo três meses no local pesquisado, com carga horária de pelo menos 30 horas semanais e que aceitaram participar da pesquisa. Foram excluídos, os trabalhadores afastados por licença, de férias e/ou qualquer outro motivo, além de bolsistas e estagiários. A coleta dos dados foi realizada em janeiro e fevereiro de 2019, com o auxílio de uma equipe previamente treinada e equipada para a abordagem, na qual aplicou-se uma pergunta aberta em que os participantes eram solicitados de modo individual a descrever suas percepções sobre a cultura de segurança do paciente no setor investigado. Realizou-se esclarecimento sobre a investigação, além de entrega do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e do instrumento de pesquisa aos técnicos de enfermagem selecionados. Em caso de dúvidas, esclarecimentos eram fornecidos por um dos membros da equipe que permanecia presente no ambiente até a devolução do questionamento pelo participante. Para a análise dos dados obteve-se o apoio das ferramentas denominadas Classificação Hierárquica Descendente (CHD) que visa categorizar e organizar os fragmentos de texto em função de seu respectivo vocabulário e a análise de similitude, a qual permite identificar segmentos frequentes e conectividade entre as palavras, ambas presentes no software Interface de R pour lês Analyses Multidimensionneles de textes et Questionnaires (IRAMUTEQ), difundido e amplamente utilizado em pesquisas qualitatitvas em razão de contribuir na organização e compreensão dos achados, além de ser gratuito e estar disponivel em diversos idiomas (Camargo & Justo, 2016). Esta pesquisa teve início após ser aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) mediante parecer consubstanciado de nº 1.847.136, sob certificado de apresentação para apreciação ética nº 61201316.3.0000.5537.
3.Resultados
A partir do processamento no software IRAMUTEQ, houve uma retenção textual de 119 segmentos de textos mediante as respostas dos participantes entrevistados e um aproveitamento de 75,15% do corpus. Assim, emergiram quatro classes da CHD, conforme apresentado no Quadro 1.
Na primeira classe denominada “Gestão organizacional e de pessoas”, os trabalhadores indicam a inexistência de condições que possam contribuir para a inserção de uma cultura de segurança de forma ampliada, como por exemplo, a insuficiência de recursos materiais e humanos, conforme as falas:
“As condições de trabalho são precárias por falta de materiais, insumos e profissionais. Não há profissionais suficientes para completar as escalas e demandas e isso sobrecarrega os profissionais.” (TE34) “Devido às condições precárias de trabalho, tende-se a não prestar uma assistência satisfatória aos pacientes. As macas estão enferrujadas, colchões rasgados com espuma desgastada, não tem suporte de suficiente muitas vezes improvisamos com clips (...).” (TE78)
No que tange à Classe II “Perspectivas para promover a cultura de segurança” denota-se as preocupações dos TE sobre a necessidade do desenvolvimento e inserção de estratégias que propiciem a segurança no setor de trabalho e ofereçam uma assistência de enfermagem de qualidade, mediante os princípios do acolhimento, atendimento as demandas, escuta qualificada, orientação de fluxo e redes de cuidado, segundo o exposto nas declarações a seguir:
“Em primeiro lugar, para o paciente sentir-se seguro tem que haver um bom acolhimento e muitas vezes isso não acontece.” (TE16) “A segurança do paciente deve implementar um plano de cuidado para que evite riscos de danos aos pacientes, considerando medidas básicas, como a instabilidade do paciente. (...).” (TE45)
Sobre a terceira classe, “Obstáculos processuais na cultura de segurança”, os TE elucidam sobre as dificuldades encontradas na dinâmica do sistema laboral, como a alta demanda de pacientes e a deficiência de uma comunicação efetiva. Tais fatores estão expressos nos seguintes trechos:
“Eu acredito que e muito importante voltar o olhar para a problemática recente do paciente por aprimorar e tornar possível uma comunicação multiprofissional e intersetorial.” (TE60) “A segurança do paciente no setor onde trabalhamos muitas vezes se torna inviável devido ao grande número de paciente internados, infelizmente existem falhas cometidas por nós relacionadas diretamente com o acúmulo e a sobrecarga de trabalho(...).” (TE81)
Na Classe IV intitulada “Ações necessárias para fomento da cultura de segurança”, percebe-se a descrição de medidas existentes e/ou observadas pelos TE no setor de trabalho investigado em prol do desenvolvimento da cultura de segurança do paciente, como é o caso das notificações e das atividades educativas, como relatado por TE73 e TE21:
“Durante o meu tempo de serviço, observei alguns acontecimentos de danos relacionados a medicação e a dieta enteral, onde são notificados e justificados pelo trabalho exaustivo dos profissionais que estão em plantão noturno e diurno por muitos dias seguidos.” (TE73) “Neste hospital primamos pela segurança do paciente, sabemos que quando se trata de segurança é preciso aprimorar a cada dia (...). Mas, nesse hospital sempre são desenvolvidas ações para melhoria dos cuidados através de atividades educativa.” (TE21)
Mediante a análise de similitude (Figura 1), observa-se de forma gráfica que os participantes do estudo percebem o paciente como o fator principal do seu processo de cuidado, e que para isso, torna-se pertinente promover a segurança do paciente no hospital (local investigado) independentemente das condições de trabalho e da falta de materiais.
4.Discussão
A partir das repartições emergidas na CHD, de forma geral, percebeu-se que os TE da instituição investigada compreendem a relevância da cultura de segurança do paciente no PS, mediante as declarações acerca de aspectos processuais, organizacionais e materiais presentes e/ou ausentes, os quais podem contribuir significativamente para o fortalecimento ou não dessa cultura. Na Classe I, Gestão organizacional e de pessoas, destacou-se a insuficiência de recursos materiais como macas e colchões. Tal achado corrobora com o exposto por Bugs et al. (2017), que apontam a escassez de monitores para sinais vitais, respiradores, camas e macas, como obstáculos enfrentados pelo enfermeiro para o gerenciamento da unidade de PS, e, por conseguinte, inviabiliza a assistência prestada ao paciente. Realça-se, ainda, que os insumos são essenciais para a execução do cuidado direto ao paciente e, faz parte das atribuições do enfermeiro o seu gerenciamento. Dentre eles, estão os medicamentos, materiais para curativo, cateteres, drenos, soluções para higiene do paciente, dentre outros (Novaretti et al., 2014). Contudo, percebe-se que os problemas supracitados fazem parte da realidade de vários serviços de saúde e afetam negativamente a adesão a algumas medidas de segurança (Silva et al., 2016). Ademais, como descrito por Souza et al (2015), torna-se evidente e indispensável ao cuidado seguro a provisão de materiais, equipamentos e demais recursos. Outrossim, assim como os recursos materiais, a escassez de profissionais também é apontada nas falas dos participantes como um entrave à SP e, consequentemente, à cultura de segurança. Fato que corrobora com Rochefort, Buckeridge & Abrahamowicz (2015), que descrevem o dimensionamento inadequado de profissionais no serviço como aspecto negativo à SP, uma vez que a carência de pessoal na assistência de enfermagem reflete na sobrecarga de trabalho, estresse e cansaço. Ademais, Bugs et al (2017) e o Ministério da Saúde do Brasil (2014a) indicam que tais obstáculos geram diminuição da satisfação do trabalhador de forma a implicar na excelência e resultado do cuidado por incompatibilidade do número de profissionais com o depacientes internados. Em consonância a essa explanação, a Classe II destaca como meios de promover a cultura de segurança o investimento em capacitações para os profissionais, elaboração de protocolos de cuidado que guiem suas ações e um ambiente acolhedor para todos os atores envolvidos no processo de cuidar (pacientes, familiares, profissionais e gestores). Dessa forma, nota-se a necessidade do desenvolvimento e da inserção de estratégias que propiciem uma assistência de enfermagem de qualidade, com atendimento às demandas e escuta qualificada como foi constatado por Carvalho et al (2015), e reforça ser imprescindível a existência deuma equipe coordenada, comunicativa e colaborativa para a efetivação do cuidado humanizado e seguro. Tais ações vão ao encontro do proposto pelos defensores da cultura organizacional, a qual é descrita como componente essencial para a satisfação dos profissionais e dos pacientes, pois é compreendida por um processo de construção e partilha da realidade da instituição, além de configurar-se em uma identidade coletiva entre os membros da equipe de saúde (Anjos & Oliveira, 2016; Rocha et al., 2014). A respeito das perspectivas para promover a cultura de segurança, os profissionais devem buscar um cuidado de excelência a partir do desenvolvimento de um plano centrado no paciente com ações eficazes, como a comunicação entre os membros da equipe para minimizar incidentes e/ou quando esses ocorrerem devem ser usados para o aprendizado coletivo (Cavalcante et al., 2015). Sobre a abertura para o processo comunicativo, ressalta-se ser necessária uma boa comunicação entre os diferentes níveis hierárquicos para contribuir com a diminuição das falhas e aperfeiçoar a troca de informações no serviço (Minuzzi et al., 2016; Okuyama, Wagner & Bijnen, 2014). Entretanto, de acordo com as percepções presentes na Classe III, percebeu-se que os TE entrevistados consideram a superlotação do serviço como uma barreira para a efetivação da cultura de segurança, assim, a escassez de recursos materiais, profissional e condições de trabalho inadequadas abordadas nas Classes I e II contribuem para a sobrecarga laboral e, por conseguinte, para a má qualidade do cuidado. Oliveira & Guimarães (2013) destacaram que essa problemática é um dos entraves para o desenvolvimento de uma assistência qualificada e segura, tanto para o paciente quanto para o profissional que o assiste e, sugerem que a superação dos problemas de superlotação está atrelada ao maior comprometimento dos gestores em saúde, à um sistema público mais organizado e à uma rede assistencial que garanta a continuidade do atendimento em outros serviços de saúde. Esse aumento na demanda nos serviços de saúde constitui um grande desafio para os profissionais de enfermagem, sobretudo, quando se refere aos serviços de urgência e emergência que deve prezar pela organização do ambiente de acordo com suas necessidades, a fim de melhor articular a assistência prestada ao paciente e minimizar a ocorrência de EA (Ministério da Saúde, 2014b). No entanto, mediante as falas retidas na Classe IV, notou-se que os participantes do estudo reconhecem a relevância da SP para a execução dos procedimentos de forma adequada. Observa-se que os TE demonstram preocupação em promover um cuidado seguro, e sugerem melhorias tanto na estrutura física e nos recursos humanos, quanto no trabalho em equipe, na utilização de protocolos e na adesão à cultura de segurança. Esse engajamento por parte dos profissionais é ressaltado por Silva et al. (2017) e colocado como essencial para a cultura de segurança. A partir do envolvimento da equipe em todos os níveis e situações da prática, representado pelo comprometimento coletivo, melhores resultados no cuidado podem ser alcançados, como atividades assistenciais baseadas em evidencias cientificas, atendimento de acordo com as necessidades de cada indivíduo de forma adequada e aprimoramento das ações para a SP e, consequentemente, a cultura de segurança (Tomazoni et al., 2015). A cultura de segurança, por sua vez, destaca-se por ser um conjunto de valores, atitudes e comportamentos que determinam o compromisso para a saúde, e substituir a culpa e a punição pela oportunidade de ampliar o conhecimentoparaum cuidado de qualidade e seguro (Garcia et al., 2016; Macedo et al., 2016). Destarte, observa-se que os TE entendem a importância da SP no setor de trabalho e compreendem o paciente comoo fator principal do processo de cuidare procuram implementar a cultura de segurança independente das condições presentes no hospital. Ademais, é essencial que os serviços de saúde, entre eles os de urgência e emergência, avaliem a cultura de segurança de sua organização para que as práticas profissionais sejam analisadas e redirecionadas ao se identificar fragilidades que possam interferir na SP. É importante reforçar a relevância do trabalho em equipe para o fortalecimento de ações na prevenção dos EA, em especial dos TE, uma vez que eles são responsáveis pela maior carga de cuidados e procedimentos diretos ao paciente (Minuzzi et al., 2016; Novaretti et al., 2014). As limitações encontradas neste estudo se devem pelo fato da pesquisa ter sido realizada apenas com os técnicos de enfermagem em um setor de urgência e emergência de um hospital estadual, uma vez que a cultura de segurança do paciente deve ser implementada em todos os setores e serviços de saúde e com todos profissionais da equipe. Contudo, apesar de o estudo ter propiciado um diagnostico situacional local, trata-se de um reflexo de muitas outras realidades e, dessa forma, contribui na discussão de como e quais estratégias podem ser desenvolvidas/utilizadas para fomentar a cultura de segurança do paciente nos serviços de urgência e emergência. Ademais, a análise dessas informações mediante uma abordagem qualitativa, facilita a compreensão de diferentes opiniões, experiencias, perspectivas e contextos sob um mesmo fator contemplado, de modo a auxiliar na identificação do grau de maturidade da cultura de segurança do paciente presente no setor e de que maneira há interferência direta e/ou indireta na qualidade do cuidado prestado aos pacientes.
5.Conclusões
Inferiu-se que os técnicos de enfermagem compreendem a relevância da cultura de segurança no seu ambiente de trabalho e, para contribuir na implementação dessa, precisam adotar ações seguras e contínuas de forma individual e coletiva, além de propiciar um ambiente livre de culpa e desenvolver uma colaboração mútua, de confiança, respeito e contínua. Dentre os principais obstáculos para a efetivação da cultura de segurança, destacou-se a deficiência de uma comunicação aberta e objetiva; ausência de trabalho em equipe; gestão organizacional incipiente; ações educativas diminutas e falta de notificação dos eventos ocorridos. Logo, sugere-se o desenvolvimento de estudos que abarquem a realidade de outros ambientes de trabalho e envolvam os demais trabalhadores da saúde, em razão de fomentar a qualidade e a segurança do cuidado prestado.