1.Introdução
O presente texto é resultado de pesquisa desenvolvida pelo Observatório de atividades educativas para profissionais dos sistemas públicos de saúde, cujo objetivo foi investigar o perfil dos profissionais de saúde e sua relação com as atividades de educação permanente, com especial atenção para os agentes comunitários de saúde. O referido Observatório, de caráter interdisciplinar e internacional , resulta de um acordo de cooperação entre a Universidade de São Paulo (USP) e a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (SMS-SP). Em sua composição, conta com docentes e pesquisadores oriundos de diferentes áreas do conhecimento e com a participação de onze bolsistas de graduação da Universidade onde está inserido. A pergunta central de pesquisa referiu-se à indagação sobre a relação existente entre o perfil do profissional de saúde e as atividades educativas propostas pelos serviços que as ofereciam. Quais seriam esses perfis e de que modo se relacionariam às atividades propostas? Esse perfil estava sendo levando em conta pelos gestores na proposição das atividades? O que os profissionais destacaram dessas participações, quais suas visões a esse respeito? Tratou-se de levantar questões que pudessem apreender a partir da perspectiva dos profissionais de saúde, suas impressões e visões sobre a participação nas atividades de educação permanente, relacionando-as com o perfil desses participantes. A apreensão dessas questões tiveram por pressuposto a consideração de que a realidade social e os fenômenos sociais são complexos. Como destaca Martins (2004, p. 290), que reflete sobre o fazer ciência no domínio dos métodos qualitativos da sociologia, “os fenômenos são complexos, não sendo fácil separar suas causas e motivações isoladas e exclusivas”. Nossa análise contou com a interpretação das falas dos entrevistados articuladas aos dados quantitativos obtidos sobre os perfis sociais. Olhamos para os dados quantitativos dos perfis sociais dos profissionais que trabalham em Unidades Básicas de Saúde da zona Leste de São Paulo, buscando ampliar e aprofundar a compreensão sobre os mesmos nas entrevistas com os participantes sobre as experiências em atividades de Educação Permanente. O conceito Educação Permanente surgiu no Brasil, na década de 1980, justamente, em contraposição ao termo Educação Continuada. Entendia-se que a Educação Continuada correspondia a um modelo fragmentado, disciplinar, focado na transmissão de conhecimentos exclusivamente técnicos, enquanto que a Educação Permanente pressupõe o aprendizado pelo trabalho e no trabalho; um aprendizado baseado na vivência do profissional nos serviços de saúde (Mishima et.al., 2015). Assim, a Educação Permanente em Saúde (EPS) é uma proposta de gestão da educação nas práticas em saúde; uma proposta inovadora, avaliam Campos & Gigante (2016) que, como afirmam, tem como pressuposto a ideia de que as práticas educativas precisam responder às incertezas e dinamismo do contexto em que ocorrem e, para tanto, precisam contar com profissionais que possam assumir a complexidade do cuidado em saúde, agindo de modo crítico e reflexivo, pressuposto da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. A Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, implantada em 2004 em todo território brasileiro pelo Ministério da Saúde, por meio das Portarias nº 198/2004 e nº 1.996/2007, tem como finalidade principal orientar a formação, a atualização e aprimoramento dos profissionais que trabalham nos serviços públicos de saúde, com o objetivo geral de transformar as práticas e, por meio desta, o processo de trabalho em saúde. [BRASIL] (2009). No entanto, estudos mostram que por mais que haja esforços por parte de órgãos governamentais e dos profissionais para desenvolver pesquisas e implantar programas de Educação Permanente na rede de saúde, o que persiste em grande parte dos serviços, no Brasil, são atividades de Educação Permanente pontuais, caracterizadas como treinamentos, muitas vezes, exclusivamente de natureza técnica, sem objetivos claros ou com objetivo único de sanar uma urgência trazida pela população e/ou por uma demanda institucional (Barbosa et.al., 2019; Landgraf & Rosado, 2019; Silva & Peduzzi, 2009). Considera-se as ações de Educação de Permanente como práticas de saúde focadas no desenvolvimento profissional. Para tanto, essas práticas se alimentam e retroalimentam tanto de estratégias metodológicas de ensino-aprendizagem quanto de pesquisas desenvolvidas nesse campo. Entende-se como estratégias metodológicas de ensino-aprendizagem o conjunto de ferramentas, materiais e escolhas teórico-práticas de processos pedagógicos para chegar a um objetivo de ensino (Delizòicov et.al., 2018). Como destacam Pinheiro &; Pinheiro (2020), as estratégias metodológicas de ensino são um conjunto de procedimentos direcionados a melhorar o processo ensino-aprendizagem, que devem ser selecionadas com base nas características individuais de cada pessoa para permitir, por meio de aprendizagem significativa, a compreensão das mesmas sobre o que se pretende ensinar. A implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde indica em seus preceitos o uso de metodologias ativas problematizadoras e, consequentemente, o protagonismo do profissional em seu processo de aprendizagem. Nesse processo, a consideração do perfil social do profissional torna-se fundamental no sentido do estabelecimento de uma relação dialógica. Como esclarece Freire (1986), a relação dialógica no processo educacional busca o encontro entre os sujeitos para o estabelecimento do diálogo. Nesse encontro, é importante que haja o estabelecimento de uma relação simétrica entre o professor e o aprendiz. O processo de ensino-aprendizagem centrado na relação dialógica, como forma de considerar os diferentes saberes, experiências, sentidos e significados, estimula a constante reflexão crítica sobre as práticas cotidianas e de cuidado. Como descreve Freire (1986):
... dialogar não é só dizer “Bom dia, como vai?”. O diálogo pertence à natureza do ser humano, enquanto ser de comunicação. O diálogo sela o ato de aprender, que nunca é individual, embora tenha uma dimensão individual” (p. 11).
Diálogo necessário tanto no aprendizado quanto na educação permanente, que pressupõe o desenvolvimento humano em sua dimensão relacional. Embora o Paradigma do Desenvolvimento Humano, prescrito pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), na década de 1990 e a publicação do Relatório Jacques Delors Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [UNESCO] (1996), sejam mais direcionados para educação em níveis iniciais, pressupõem a importância do debate que considere a educação ao longo da vida, de onde faz parte a relação com o outro. O relatório citado mostra os quatro pilares fundamentais da educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser. Estes pilares indicam a compreensão de um processo educativo pleno que envolve a integralidade do ser humano, de maneira a permitir que o mesmo assuma a responsabilidade pelo seu projeto pessoal. Sob esta perspectiva, tanto o relatório Paradigma do Desenvolvimento Humano (1990), quanto o Relatório Jacques Delors (1996) mostram a importância de se considerar a dimensão social, da relação com o outro, no projeto educativo. Ao tomar como referência a dimensão da Educação, as ações de Educação Permanente em Saúde precisam estar comprometidas com aspectos pedagógicos que valorizem as experiências do indivíduo, seus saberes, interesses, suas representações simbólicas e suas ideologias, derivadas, justamente, de seu perfil social. Este comprometimento das ações de Educação Permanente facilita a transformação das práticas em saúde pela identificação dos profissionais com as mesmas. Assim, para além de aspectos técnicos, seria importante tomar como referência para o desenvolvimento das ações de educação permanente, o perfil social do próprio profissional de saúde. Isso poderia permitir repensar as finalidades dessas ações, bem como avaliar constantemente o que foi alcançado, de modo geral, com base nas necessidades exibidas pelas sociedades globalizadas, marcada, dentre outros aspectos, pela sedução do hiperconsumismo (Lipovetsky, 2007) e por vínculos frágeis e efêmeros (Bauman, 2002). O aprender com o outro permite trazer a revalorização dos laços sociais, colocando-os em outros termos, menos na competição e mais no compartilhamento de experiências, a partir da reflexão da própria prática que se dá numa realidade social bastante complexa. A consideração dessa realidade é bastante necessária no desenvolvimento de pesquisas. Diversos estudos com abordagem metodológica qualitativa, quantitativa ou mixta(Holanda et.al., 2019; Cioffi et.al., 2019; Mariotti et.al., 2017; Nolla-Domenjó et.al., 2015) que trabalham com a temática Educação Permanente, desenvolvidos a partir de diferentes perspectivas, mostram o perfil profissional relacionado à competência técnica como fator relevante para implementação de propostas na área da saúde e para o atendimento do mercado de trabalho. Lima et. al. (2016) afirmam que o êxito para qualquer proposta na área da saúde está pendente, fundamentalmente, do perfil social dos profissionais, uma vez que esse perfil deve convergir com as peculiaridades das atividades executadas no âmbito em saúde. Ao mesmo tempo, é importante que também sejam desenvolvidas reflexões sobre o perfil social do profissional e a importância de considerá-lo nas pesquisas, em especial, de abordagens metodológicas qualitativas, cujo desenvolvimento envolve técnicas que abarcam aspectos subjetivos dos participantes, o contexto em que está inserido e a relação pesquisador-pesquisado.
2.Método
2.1 Tipo de Estudo
Trata-se de um estudo qualitativo, que também contou com dados quantitativos na coleta de informações sobre o perfil social dos participantes, tendo em vista o número expressivo de participantes. No referente à técnica de pesquisa qualitativa, o estudo contou com entrevistas guiadas por um roteiro semi- estruturado (Queiroz, 1983; Minayo, 2017). As entrevistas semi estruturadas consistem em entrevistas guiadas por roteiro prévio de perguntas, onde o entrevistador tem a possibilidade de fazer intervenções, trazer novas questões, quando lhe parece necessário para que sejam discutidos os temas propostos. Foram entrevistados 62 profissionais de saúde de diferentes categorias: médicos, enfermeiros, assistentes sociais, agentes comunitários) As entrevistas foram realizadas pela equipe do projeto, no período de setembro a outubro de 2020. A escolha pela modalidade de entrevista semi estruturada foi escolhida por permitir uma exploração em profundidade do “objeto” em estudo (Poupart; 2018; Marconi & Lakatos, 2017). Dentre as questões norteadoras das entrevistas, podem ser destacadas a experiência profissional; as experiências e percepções dos entrevistados sobre as atividades de educação permanente; a participação nessas atividades; questões relativas ao conteúdo, tema das atividades, formas de avaliação, dinâmicas de atividades e avaliações dos entrevistados sobre as atividades no referente à revisão das práticas, além de questões referentes a dados pessoais, composição familiar e formação profissional. No referente às limitações do estudo, consideramos que estas se referiram ao não levantamento documental das atividades permanentes oferecidas aos profissionais de saúde. Esse levantamento, que está sendo realizado em estudo em andamento, permitiria maior clareza sobre as imprecisões apresentadas pelos entrevistados que afirmaram ter participado de “muitas atividades” mas não se lembraram bem dos temas. Ao mesmo tempo em que esse levantamento também traria melhor compreensão sobre a relação entre perfil social e as atividades permanentes propostas.
2.2 Local do Estudo
O estudo foi realizado em 11 Unidades Básicas de Saúde (UBS), localizadas em uma região do extremo Leste da cidade de São Paulo- Brasil. Essas unidades representam 73%, na região de estudo, das administradas por uma determinada Organização Social de Saúde; 27% das Unidades Básicas de Saúde restantes, não aderiram à participação no presente estudo. Das UBS investigadas, 01 divide o espaço físico com o serviço de Assistência Médica Ambulatorial (AMA); 08 possuem equipe de Estratégia Saúde da Família; 02 não possuem equipe de Estratégia Saúde da Família.
2.3 Amostra
Foram contatados 91 (100%) profissionais de diferentes categorias que, na ocasião, estavam ativos nas UBS em estudo. Os 100% se voluntariaram para participar da pesquisa. Deste total, 62, (68%), de fato, realizaram entrevistas, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os demais profissionais (32%) não retornaram o contato ou não acessaram as plataformas online, conforme acordado, no dia e horário pré-definidos. As entrevistas aconteceram no período de setembro a outubro de 2020, a partir de agendamento prévio. Tendo em vista a grave situação sanitária em decorrência da Covid-19, as entrevistas foram realizadas de modo virtual, por chamada de vídeo, segundo diferentes modalidades, que foram definidas de acordo com a possibilidade de participação dos entrevistados: Google Meet, Zoom e WhatsApp. As falas foram gravadas e posteriormente transcritas. O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo sob n° de parecer: 2.894.567.
2.4 Tratamento e análise de dados
Os dados resultantes das entrevistas foram armazenados em um banco no software Microsoft Office Excel, versão 2013. Bolsistas de Iniciação Científica foram previamente treinados pelos pesquisadores responsáveis pelo estudo para realizarem as entrevistas. Antes da coleta, foi feito um pré-teste com profissionais de uma Unidade Básica de Saúde, não participante do estudo, para a verificação das questões propostas, sua pertinência e compreensão pelos entrevistados. Após revisão do roteiro a partir do pré-teste, foram feitos contatos para a realização das entrevistas que ocorreram segundo a disponibilidade dos participantes. A sistematização, categorização e análise dos dados quantitativos foram realizadas com base na distribuição de frequência e percentagem correspondentes às respostas obtidas. Os dados foram tabulados com auxílio do programa Microsoft Excel 2010. Após a realização das entrevistas, foram feitas transcrições na íntegra e leitura exaustiva para organização do material coletado para análise (Minayo, 2017). A análise de todo o material foi realizada por três pesquisadores do grupo de pesquisa. Em relação ao presente texto e às questões propostas, a análise restringiu-se à participação das autoras, também pesquisadoras do grupo. A leitura sistemática das entrevistas transcritas permitiu o estudo mais cuidadoso do material, de seu conteúdo e discurso manifesto e latente, realizado na análise. A análise das entrevistas transcritas foi feita mediante sistematização dos dados que consistiu em uma espécie de síntese (Queiroz, 1983) onde foram destacados pontos considerados relevantes para a discussão, está realizada junto ao referencial teórico que buscou embasar as reflexões desenvolvidas. Os pontos destacados foram construídos como eixos analíticos, podendo ser citados: a participação e a imprecisão da experiência, está referida às atividades educativas; o agente comunitário em foco: impasses entre presenças e ausências na comunidade e no processo de educação permanente; da importância e da ausência dos perfis sociais. Esses três eixos são destacados no presente artigo, considerados a partir das falas de entrevistados e discutidas à luz de referências teóricas que sustentam a análise e que buscam avançar em relação às informações quantitativas sobre os perfis sociais.
3.Resultado e Discussão
Essa sessão busca discutir sobre aspectos importantes sobre a relação entre perfil social dos profissionais de saúde e atividades de Educação Permanente. Partimos de dados descritivos quantitativos do perfil social buscando avançar na compreensão dessa relação a partir dos dados qualitativos provenientes das falas que dão acesso à perspectiva dos profissionais investigados. Privilegiamos destacar falas de agentes comunitários que estão entre a maioria dos entrevistados. Esse caminho metodológico que também contou com dados quantitativos pareceu-nos o mais adequado para dar conta de apreender uma visão geral do perfil social de profissionais de saúde em 11 UBS de uma região de São Paulo. Deste perfil, podem ser destacados: categorias profissionais participantes: agentes comunitários de saúde, enfermeiro(a)s, gerentes, auxiliares administrativos, educadores físicos, psicólogo(a)s, nutricionistas, médico(a)s, fisioterapeutas, dentistas, auxiliares/técnico(a)s de enfermagem, fonoaudióloga(o)s, assistentes sociais, técnico(a) de farmácia, farmacêutico(a)s. Os agentes comunitários de saúde representam a categoria com maior porcentagem (46,1%) de profissionais entrevistados, em seguida, os enfermeiro(a)s, equivalente a 9,9%. Quanto às características epidemiológicas, sociais e econômicas da região onde trabalham obteve-se como resultados: 88% disseram ser uma região de grande vulnerabilidade social para drogadição, habitação, gravidez na adolescência, desemprego, pessoas em situação de rua, alcoolismo, violência. Destes, 40,8% afirmaram que as doenças mais comuns são hipertensão e diabetes; 32,2% afirmaram que a população atendida na UBS tem nível de escolaridade baixa; 15% relataram que a população se alimenta de forma precária; 12% não responderam a questão. Algumas falas reforçam esses achados:
“… De doenças mais comuns aqui, é hipertensão e diabetes. Nossa, muitos casos.” (A1) . “É uma região carente que precisa de uma atenção, principalmente dos governantes...é isso. Aqui eu vejo...que é uma região que o pessoal não leva muito a sério os estudos, as pessoas aqui muito problema de hipertensão e diabetes...eu creio que seja por conta da alimentação errada...que é uma coisa que as pessoas que tem uma baixa renda tem um hábito alimentar meio peculiar...então eu creio que devido a isso que tem muitos casos de diabetes, hipertensão, obesidade…” (A2).
Chama também atenção na fala acima o modo como a população é vista e a relação entre carência material, hipertensão e alimentação errada ou peculiar é estabelecida. Estudos mostram a existência de discursos sobre famílias pobres que a concebem como desestruturadas e fonte de problemas sociais, justificando a necessidade de intervenção (Sarti, 1999). Muitas vezes, sustentadas por essas considerações, estabelece-se uma relação entre carência material e diferentes faltas, como a relacionada aos conhecimentos corretos sobre alimentação. Diferente dessa consideração, abordagens socioantropológicas (Canesqui e Garcia: 2005) destacam a importância da consideração do contexto social e das regras ali desenvolvidas na escolha dos alimentos, as quais não se limitam ao cálculo nutricional, sendo necessário uma apreensão mais ampla da cultura que também molda a seleção de alimentos a partir de normas impostas. A consideração do contexto, no entanto, pode ser facilitada por ações de educação permanente que envolvam profissionais de saúde e a população, levando-se em conta seus diferentes saberes. Com relação ao local de nascimento, gênero e composição familiar, a maioria dos profissionais entrevistados é natural de São Paulo, do sexo feminino, casada, têm filhos (as), possui moradia própria localizada no mesmo local da UBS onde trabalha e desloca-se a pé até o trabalho. Como levantado no presente estudo, a maioria dos entrevistados é da categoria Agente Comunitário de Saúde (ACS) e um dos requisitos para ACS é justamente residir nas proximidades da UBS. Entende-se que este seja um dado relevante uma vez que mostra a possibilidade de os profissionais terem familiaridade com a população residente no entorno da UBS. Ao mesmo tempo, como discutem Nunes et. al. (2002), é preciso levar em conta a complexidade, contradições e hibridismo do ACS, no tocante à sua identidade, familiaridade com a comunidade da qual faz parte e, ao mesmo tempo, seu distanciamento pelo exercício de novos papéis. Como argumenta Oliveira (2012: 8), o exercício profissional dos ACS é complexo, uma vez que compreende fatores facilitadores, relacionados à familiaridade com a comunidade, e limitadores, relacionados aos múltiplos papéis que exercem. Outro dado a ser destacado refere-se à escolaridade. Do total dos entrevistados, 53,8% referiram não ter ensino superior, a maioria ACS, cuja exigência para exercer a profissão é apenas o ensino médio completo; 46,2% dos entrevistados possuem ensino superior completo e especialização em diferentes campos da área da saúde. A maioria é formada em instituições privadas. Em concordância com os resultados desta investigação, estudos (Barbosa et.al., 2019; Landgraf & Rosado, 2019; Santos et.al. 2019; Ferreira et.al, 2019; Martins et.al., 2018) realizados em diferentes regiões do Brasil, mostram que uma quantidade significativa de profissionais que atuam na Atenção Primária à Saúde possui nível superior de ensino e tem especialização em diferentes campos da área da saúde. Porém, de diferentes maneiras, os autores argumentam que este fato não garante prioridade no atendimento à saúde, uma vez que a qualidade da formação, a burocratização nos serviços e a precarização do processo de trabalho impedem resultados satisfatórios no atendimento à Atenção Primária à Saúde. Outros estudos (França et.al., 2017; Junior et.al., 2017; Almeida et.al., 2019; Brandt et. al, 2019) mostram que há, por parte dos profissionais de saúde, dificuldade de compreender o conceito de Educação Permanente bem como de fazer uma distinção deste com Educação Continuada, o que evidencia a importância de investigações sobre a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde nos serviços. No presente estudo, a maioria dos profissionais referiu ter participado de alguma ação em educação permanente (83,5%), isto é, cursos, capacitações ou treinamentos; 29% estiveram envolvidos na elaboração de alguma dessas ações. Além disso, constatou-se que a maioria dos profissionais participou apenas como ouvinte dessas ações e tiveram a percepção de que as mesmas proporcionaram mudanças positivas em seu comportamento no ambiente de trabalho, embora a maioria tenha referido não ter participado de método avaliativo no decorrer das ações de educação permanente. Algumas falas explicitam este fato:
“Eu já participei, mas que eu tenha feito, não. E assim, não vou saber te dizer os temas porque são muitos, muitos mesmo. A gente sempre faz, né (ações de Educação Permanente)?” (A4). “(...) “eu particularmente nunca participei de nenhuma avaliação...com referência a isso né...mas como eu te falo né...tem o dia a dia…mas não tive nenhum tipo de avaliação...a gente tenta ali seguir né...fazer ao máximo nossa parte certa né?” (A5).
Ter participado de atividades educativas e não ter sido avaliado torna impreciso seu alcance, tanto para o participante quanto para aqueles que propuseram a atividade e que a executaram. Estudo realizado por Silva et.al., (2020), destacam esse aspecto, e reforçam a importância de que nessa avaliação haja um alicerce multidisciplinar que o ampare. A falta de clareza sobre os temas, porque foram muitos, como diz um dos entrevistados, reforça a imprecisão sobre a importância dessas ações pelos participantes que embora considerem relevante, não sabem precisar-lá.
4.Conclusão
O presente estudo que teve como objetivo apreender a relação entre perfis sociais e atividades educativas para profissionais de saúde mostrou como resultado qualitativo a existência de grande imprecisão sobre a importância para a formação e revisão das práticas, na percepção dos profissionais. Ao mesmo tempo em que acreditam ser importante a existência dessas atividades e que as mesmas ocorram de maneira rotineira, não sabem precisar os temas e a relevância dessas ações. Essa imprecisão pode ser explicada, em parte, pela ausência de avaliação das atividades, como mostram os dados quantitativos. Importante também observar a existência de argumentos que relacionam pobreza com alimentação errada, hábitos peculiares e diabetes. Esse argumento acaba por desconsiderar os sentidos da escolha alimentar para a população, relacionando falta material com falta de conhecimentos nutricionais. Essa percepção reafirma a importância de atividades educativas que considerem os diferentes saberes e práticas sobre saúde; evidenciam o estabelecimento de uma relação direta entre a elaboração das atividades (temas, métodos de trabalho, público alvo) do qual deve fazer parte o conhecimento do perfil social dos profissionais, para que se possa ter acesso às experiências, saberes, trajetórias, valores, expectativas e relações dos profissionais com a população atendida. A consideração desses perfis poderá impactar em um cuidado mais qualificado da população, tendo em vista, por um lado, a possibilidade de um trabalho de desconstrução de preconceitos e, por outro, a possibilidade de revisão constante da prática profissional, a partir de experiências passadas, saberes acumulados e relativização dos conhecimentos puramente técnicos. O presente estudo, ao partir de dados quantitativos referentes a informações sobre o perfil dos participantes para aprofundá-los mediante entrevistas semi estruturadas com profissionais de diferentes categorias, evidencia, por um lado, o enriquecimento e a ampliação da compreensão sobre os primeiros, só possível a partir do encontro entre pesquisador e pesquisado, por meio da escuta do discurso latente e manifesto, onde não apenas a palavra, mas o próprio silêncio e a pausa, dão sentido à fala. Por outro, esse caminho no uso dos dados na abordagem qualitativa mostra a necessidade sempre colocada de imaginação (Mills, 1959), onde o rigor deve andar junto com a não rigidez nas formas de apreensão das questões de pesquisa e da realidade estudada. A abordagem qualitativa de estudo, por meio do recurso à entrevista semi estruturada, mostrou ser fundamental ao apontar, dentre outros aspectos, a imprecisão com relação às contribuições advindas da participação nas atividades educativas, por profissionais de saúde, bem como o distanciamento dos mesmos em relação aos diferentes sentidos da alimentação para a população atendida, para além dos parâmetros biomédicos. Os dados quantitativos, que revelam o perfil social dos profissionais, ganham maior relevância ao trazerem os depoimentos dos entrevistados, suas imprecisões e mesmo, contradições, evidenciando a existência de uma relação também imprecisa entre os perfis e as atividades a eles propostas.