1.Introdução
A pandemia da COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus SARS-Cov-2, foi declarada em março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde. Desde o início, medidas não farmacológicas foram estabelecidas para conter o contágio e o avanço da doença. Entre as medidas implementadas estão o uso de máscaras, fechamento de serviços e escolas, a definição de isolamento social e, em alguns países, o lockdown (protocolo de isolamento que impediu a livre movimentação de pessoas ou mercadorias) (Odusanya et al., 2020; Oliveira et al., 2020). Atualmente, outros métodos não farmacológicos, como controle do estresse, rotina de sono, atividade física e contato com a natureza têm sido apontados como cuidados que podem contribuir significativamente para manter a saúde durante o momento pandêmico (Zildzic et al., 2021). Caracterizada por alto grau de morbidade e mortalidade, em março de 2022, a doença já havia causado a morte de mais de 650 mil brasileiros e o número total de infetados no Brasil ultrapassou 30 milhões. Ainda não é possível mensurar o impacto desse cenário em populações específicas, como entre adolescentes. Contudo, estudos internacionais revelam quem mesmo não sofrendo com casos graves ou apresentando alto índice de mortalidade, a população adolescente sofreu diferentes impactos psicossociais e em termos de saúde mental, principalmente no que se refere às medidas de isolamento social e o fechamento das escolas (Jones et al., 2021; Oliveira et al. 2020a, 2020b). O citado efeito dessa medida é atribuído às características do momento de desenvolvimento da adolescência. Em geral, os adolescentes vivenciam maior aproximação do grupo de pares e distanciamento dos pais/responsáveis no processo de construção da identidade (Dellazzana-Zanon et al., 2021). Há também um movimento de busca por maior autonomia e experimentação de afetos fora do contexto familiar. Com a pandemia, os adolescentes foram obrigados a ficar em casa, distanciados presencialmente dos pares ou amigos. Também, houve rupturas na rotina, pois se estabeleceu impedimentos da livre circulação e cancelamento de atividades escolares, esportivas e de lazer (Jones et al., 2021; Oliveira et al. 2020a, 2020b). Diante desse cenário, a questão norteadora do estudo foi: quais comportamentos ou sentimentos foram emitidos por adolescentes brasileiros durante a retomadas das atividades escolares presenciais? Para responder a essa questão se verificou a pertinência do uso da técnica de diário na coleta de dados e o estudo empírico objetivou identificar comportamentos de autocuidado e sentimentos de adolescentes brasileiros durante um dos momentos da pandemia da COVID-19.
2.Método
Trata-se de um estudo qualitativo e que utilizou na coleta de dados a técnica de diário. Considerando o objetivo do estudo e a questão que o orienta, verifica-se que a pesquisa qualitativa era a melhor opção metodológica na medida em que esse tipo de investigação busca apreender ou interpretar a realidade cotidiana em que os sujeitos da pesquisa vivem e, inclusive, o contexto sócio-histórico-cultural em que estão inseridos (Bicudo, 2021). Por outro lado, a técnica do diário se caracteriza pela participação ativa dos informantes que registram, de forma estruturada ou semiestruturada, reflexões, comportamentos e sentimentos vivenciados em determinado momento (Pinheiro et al., 2008). O uso de diários na coleta de dados pode oferecer insights diferenciais sobre as rotinas de saúde e estratégias de padecimento ou enfrentamento de problemas cotidianos, principalmente aspectos muitas vezes ocultos da vida diária e rotina (Bartlett & Milligan, 2015; Somerville, 2021). Além disso, os relatos escritos desse tipo podem ser uma experiência catártica para alguns participantes da pesquisa. Participaram desse estudo nove adolescentes com idades entre 16 e 17 anos, sendo oito meninas e um menino. O cenário da pesquisa foi uma escola pública do Estado de São Paulo (Brasil), selecionada por conveniência. Optou-se por iniciar a investigação com os “representantes de sala/classe” por sugestão da direção/coordenação da escola. Em um primeiro momento, de forma presencial, a pesquisadora responsável apresentou a pesquisa e seus objetivos para um total de 15 alunos. Quatro alunos não se voluntariaram para participar e dois alunos desistiram durante a coleta de dados. A coleta de dados ocorreu entre os meses de novembro e dezembro de 2021, período correspondente ao retorno oficial de 100% das atividades presenciais nas escolas brasileiras. Os diários eram semiestruturados, de preenchimento individual e compostos por cinco blocos. Inicialmente os participantes incluíam um apelido pelo qual seriam reconhecidos no estudo, informações de caracterização e respondiam perguntas como: Para você o que é autocuidado? O que é estar saudável? Para você o que é saúde mental? No segundo bloco os participantes registravam suas atividades diárias (aula remotas, atividades físicas etc.). O terceiro e o quarto blocos compreenderam informações sobre autocuidado físico (rotina de sono e alimentação, por exemplo) e autocuidado psicológico ou emocional (ouvir música, emoções experimentadas, por exemplo). Por fim, o quinto bloco abria espaço para reflexões pessoais e outras manifestações. Os diários foram impressos e disponibilizados aos adolescentes que deveriam preenchê-lo por 30 dias. Durante esse período, a pesquisadora responsável (ACC) realizou atividades de monitoramento e incentivo do preenchimento via aplicativo de mensagens. Os dados foram analisados de forma descritiva e se aplicou os passos propostos pela análise temática (Clarke et al., 2019). Nesse sentido, os diários foram lidos exaustivamente (familiarização com os dados) e em seguida ocorreu um processo de codificação das informações. Os códigos foram agrupados em dois temas: Compreensão do autocuidado e saúde mental; Vivências de autocuidado. Essa etapa foi conduzida pela pesquisadora responsável (ACC) e validada de forma independente pelo outro pesquisador (WAO). O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e foram seguidas todas as recomendações da Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil). Os pais/responsáveis manifestaram consentimento para participação dos adolescentes a partir de um formulário on-line para e os estudantes também emitiram assentimento para adesão ao estudo. Para manter a confidencialidade dos participantes foram atribuídos apelidos a eles.
3.Resultados e Discussão
Os diários preenchidos pelos participantes permitiram verificar informações sobre a natureza e frequência de sentimentos, bem como a frequência dos eventos cotidianos e sua influência sobre o processo de autocuidado. Eles também forneceram informações sobre atividades e contatos sociais dos adolescentes, permitindo verificar padrões da vida cotidiana e rotina dos adolescentes. A seguir são explorados os temas que emergiram da análise dos dados.
3.1 Tema 1: Compreensão do autocuidado e saúde mental
A partir dos registros nos diários de campo se identificou que os adolescentes possuem boa compreensão sobre autocuidado. Em geral, as reflexões sobre o tema contemplaram a questão do cuidado consigo em múltiplas dimensões e também incluindo características que são importantes para a adolescência, como a autonomia e respeito à individualidade. Aplicada ao momento da pandemia da COVID-19, a compreensão dos adolescentes revela uma preocupação em seguir as orientações para evitar o contágio ou o adoecimento. Quando questionados sobre “o que é estar saudável” os adolescentes apontaram a importância de se ter uma boa qualidade de vida, mantendo mente e corpo bem alimentados, e não ter nenhuma doença. Esses aspectos assinalam a compreensão ampliada sobre o que é saúde e mesmo sobre o que é autocuidado. A lógica do autocuidado também pressupõe responsabilidades sobre a própria condição de saúde e no estudo em tela apenas um dos participantes considerou que é impossível estar 100% saudável. O modo como os adolescentes compreendem saúde e autocuidado influenciam na qualidade de vida e na adoção de medidas de prevenção que estão relacionadas à busca por “ser saudável” (Barbiani et al., 2020). Ao mesmo tempo, destaca-se que a forma como as informações entre pessoas de determinado grupo social são processadas permite que as lógicas do conhecimento científico sejam incorporadas ao cotidiano de forma autônoma e se convertam em melhores práticas de saúde (Queirós et al., 2014). Isso é coerente com as perspectivas da teoria de autocuidado. Em termos de saúde mental, destaca-se que os adolescentes mencionaram nos diários a importância de se evitar pensamentos negativos, aspecto que também é relevante durante o momento pandêmico que ampliou a divulgação de notícias sobre mortalidade e as dificuldades em se estabelecer cuidados em saúde diante de uma doença cuja dinâmica ainda é desconhecida. Observa-se que esse tipo de comportamento pode ser considerado uma medida não farmacológica de cuidado, principalmente em termos de saúde mental (Zildzic et al., 2021).
3.2 Tema 2: Vivências de autocuidado
Observou-se nos diários que os adolescentes buscaram manter o autocuidado praticando atividade física, mantendo alimentação equilibrada e saudável, assim como buscaram o apoio dos amigos ou apoio especializado sempre que necessário. Atividades básicas como tomar banho, se alimentar com regularidade e ter momentos de lazer também foram referidas. Outra forma de autocuidado praticada pelos adolescentes relacionava-se à prática de atividades que proporcionavam relaxamento. Um dos participantes referiu que, comumente, cuida mais do outro do que si. Além disso, alguns dos participantes não sabiam como cuidar da saúde mental. Não foi registrada a rotina de sono dos participantes. As experiências dos adolescentes foram marcadas também por emoções ou indicadores de saúde mental. Nesse sentido, sintomas ou referência à ansiedade provocada pela pandemia foi o problema de saúde mais referido. Emoções negativas como raiva, nervosismo, tristeza, insegurança, vazio, preocupação com o futuro e outros aspectos negativos como sensação de desgaste, confusão mental, cansaço e impaciência foram referidas. Entrementes, foram registradas também aspectos ou emoções positivas como: alegria, felicidade, gratidão, ânimo e sensação de alívio. Com a pandemia da COVID-19 houve a necessidade das pessoas se responsabilizarem pelo próprio cuidado de saúde. Entre esses cuidados estavam questões comportamentais, como o uso de máscara e a manutenção do distanciamento social, mas também se percebeu, desde o início, que a situação afetava a saúde mental. Para os adolescentes, a vivência da pandemia pode ter sido ainda mais complexa na medida em que afetou, diretamente, situações que são muito valorizadas nesse momento do desenvolvimento (Jones et al., 2021; Oliveira et al. 2020a; 2020b). Além disso, é preciso destacar que mais estresse ou ansiedade pode ser quadro associado à dificuldade para dormir ou mesmo ter um sono reparador, principalmente na adolescência (Tyack et al., 2022). Vale destacar que já está documentado que há influências do processo de socialização e construção social das identidades masculinas e femininas nas práticas de autocuidado entre adolescentes (Santos et al., 2017). Em geral, as meninas aderem melhor às ações de estímulo ao autocuidado ou atividades que aumentam a qualidade de vida. Nesse estudo, não foi possível verificar esses aspectos. Contudo, como a maioria dos participantes (oito) eram meninas, infere-se que as meninas ficaram preocupadas com a questão da pandemia e adotaram comportamentos de autocuidado, valorizando as atividades físicas, a alimentação e cuidados com saúde mental.
4.Considerações Finais
Este artigo teve como objetivo identificar comportamentos de autocuidado e sentimentos de adolescentes brasileiros durante um dos momentos da pandemia da COVID-19. Nesse sentido, verificou- se que os participantes possuíam boa compreensão sobre autocuidado e em suas rotinas incluíram ações que podem ser consideradas como medidas de prevenção ao contágio ou adoecimento pela COVID-19, mas também foram assinalados comportamentos protetivos para a saúde mental. As vivências mais comuns de autocuidado referidas foram: prática de atividade física, hábitos de alimentação saudável e cuidados com o corpo. Os adolescentes também mencionaram a busca por apoio especializado ou de amigos, bem como momentos de reflexão individual, aspectos que podem minimizar os efeitos de sentimentos ou aspectos negativos que foram registrados nas rotinas. Os dados foram coletados por meio da técnica de diário. Nesse sentido, ressalta-se que essa metodologia permitiu acessar as percepções e os comportamentos dos adolescentes durante um dos momentos da pandemia. As análises descritiva e temática revelaram que o cotidiano dos adolescentes foi afetado, mas que a boa compreensão sobre autocuidado e saúde mental favoreceu a adoção de comportamentos positivos. O uso da técnica de diário apresentou vantagens em relação ao potencial uso de entrevistas ou coleta de dados em questionários na coleta de dados, pois essas estratégias tendem a captar eventos ou momentos únicos. As descobertas apresentadas são provocativas e apontam o caminho para pesquisas futuras que busquem examinar como os adolescentes incluem em seus cotidianos comportamentos de autocuidado. Esse tipo de pesquisa poderá subsidiar ações interventivas no âmbito da atenção primária, principalmente. Embora muitos pontos positivos possam ser elencados sobre o estudo em tela, duas principais limitações devem ser observadas. Primeiramente, os resultados precisam ser interpretados a partir do contexto e do momento em que os dados foram coletados - uma escola pública durante a retomada de atividades presenciais no Brasil. Em segundo lugar, a não inclusão de adolescentes do sexo masculino impediu a verificação das vivências masculinas no que se refere ao autocuidado durante o período de coleta de dados. Outras pesquisas podem incluir os meninos para verificar como eles registram os cuidados consigo em suas rotinas, bem como ampliar o tamanho amostral para esclarecer ou ampliar as interpretações apresentadas nessa investigação.