1.Introdução
A população em situação de rua (PSR) é considerada um fenômeno de extrema abrangência. Estima-se que, no mundo, 00 milhões de pessoas encontram-se nesta situação (Schenck et al., 2017). A partir da década de 90, houve um aumento significativo da População em Situação de Rua (PSR) nos centros das grandes cidades brasileiras (Barata et al., 2015). Essa população é composta por uma diversidade de pessoas, a exemplo citam-se os migrantes, pessoa trans, usuários de substâncias psicoativas, gestantes, crianças, adolescentes e idosos. Essa coletividade está diariamente exposta a diversas formas de violência, são privados de direitos fundamentais, não possuem privacidade, tem condições precárias de sono, alimentação e higiene. Devido a essa situação, sua autoestima se torna baixa, perdem as esperanças, vínculos sociais são rompidos ou fragilizados, o que dificulta o acesso aos serviços de saúde e o seguimento de eventuais projetos terapêuticos (Serafino & Luz, 2015). Verifica-se que essa população merece uma abordagem focada nas suas necessidades de saúde, uma vez que cotidianamente são expostas a riscos em relação à integridade física e mental. Aponta-se que a cobertura limitada das equipes de saúde e a baixa adesão ao tratamento e acompanhamento são fatores que impedem um cuidado integral dessas pessoas (Coelho et al., 2020). A PSR é definida como grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, a inexistência de moradia convencional regular e, consequentemente, a utilização de logradouros públicos e áreas degradadas como espaço de moradia e sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória (Cunha & Rodrigues, 2009). O morar nas ruas está diretamente correlacionado às vulnerabilidades em saúde, sociais e legais. A privação de acesso aos serviços de promoção à saúde potencializam os riscos de múltiplas comorbidades clínicas. A PSR, no seu processo de exclusão, sofre rupturas familiares, sociais e afetivas, tendo que imperiosamente vivenciar novas formas de se relacionar em contextos sociais marcados pela desumanização, caracterizados por estigmas, violência e segregação (Coelho et al., 2020). A PSR apresenta algumas características específicas: cerca de 11,1% desse contingente tem idade de 60 anos ou mais; 85,5% são do sexo masculino; 14,3% apontaram como motivo de estar em situação de rua a dependência ao álcool; 56,1% usam bebidas alcoólicas e, desses, 36,6% declararam fazer uso diariamente (Natalino, 2016). A condição do idoso em situação de rua é de extrema vulnerabilidade e riscos, visto a intensa segregação social, primeiramente por serem moradores em situação de rua e por estarem idosos - este último revela a dificuldade para a realização de trabalhos monetizados. Nesse cenário, o processo de envelhecer nas ruas pode ter como consequências sentimentos de tristeza, depressão e dificuldades para o autocuidado (Qualitest, 2019). Estudo realizado em Porto Alegre a partir de entrevistas com 19 idosos em situação de rua mostrou que a maioria tem idade entre 60 e 69 anos, são negros ou pardos, estão situação de rua de um a cinco anos, devido a desentendimentos familiares e condições financeiras difíceis, além de não contarem com ajuda governamental. Esses idosos expressaram condições de vida precárias desde o nascimento em decorrência da falta de acesso a boas condições de vida (trabalho, educação, saúde e habitação) (Cunha & Rodrigues, 2009). Acrescenta-se que morar nas ruas é uma situação de extrema complexidade, pois com frequência envolve problemas sérios de doença mental, a maioria deles em decorrência do uso excessivo de álcool e drogas ilícitas (Bedimar et al.,2022). Assim, considera-se relevante compreender com mais profundidade as realidades dessa população, com vistas a identificar estratégias que possam subsidiar as equipes na abordagem específica, mediante ao trabalho multiprofissional realizado junto à população em situação de rua, partindo do seguinte questionamento: Quais são as vivências que as PSR tiveram ao longo da vida?
2.Objetivo
Compreender as vivências dos idosos que vivem em situação de rua acerca dos principais fatos que marcaram sua vida.
3.Método
Trata-se de um estudo qualitativo na modalidade de história de vida, realizado a partir do relato de idosos que vivem em situação de rua em um município de médio porte do interior paulista. A pesquisa qualitativa utiliza a coleta de dados sem preocupação com a medição numérica, e pode ou não provar hipóteses em seu processo de interpretação. Seu propósito é de mostrar a realidade da forma como é percebida pelos integrantes do sistema social predefinido; no geral, considera o todo, sem fragmentar ou reduzir às partes (Sampieri, Collado & Lucio, 2006). O estudo qualitativo se destaca por possibilitar a compreensão dos entendimentos e vivências dos participantes perante suas vidas (Creswell, 2021). A história de vida é uma ferramenta utilizada para descoberta, exploração e análise da compreensão que as pessoas têm do seu passado, como vinculam sua vivência a seu contexto social, definem-na e dão-lhes sentido, a partir do presente (Meihy & Holanda, 2007). Ademais, o relato de história de vida tem como proposta dar voz e visibilidade às pessoas socialmente marginalizadas na construção da sociedade, por meio da representação das vivências, opiniões e percepções do depoente em relação à sua história e sobre como a realidade se apresenta para ele (Spindola & Santos, 2003). Na história de vida, o depoente deve ser incentivado a falar sobre usos, costumes, experiências, afetos e sentimentos. Para colher a história de vida, a entrevista precisa ser preparada com a formulação do roteiro, o qual servirá de auxílio para a elaboração das perguntas e ainda propiciará o relato espontâneo, tendo como foco o ponto de vista do participante. É recomendada a realização de entrevistas individuais e que os equipamentos utilizados sejam testados anteriormente. O entrevistador deve-se mostrar neutro durante todo o relato, colocando-se na posição de saber ouvir o que o participante tem a dizer sobre sua vida da forma como ele percebe e não deve completar frases, deixando o entrevistado formular as próprias sentenças (Spindola & Santos, 2003). Ressalta-se, assim, que a história de vida busca apreender os elementos que ela contém e as formas como o depoente se insere e atua no mundo, compreendendo que, por mais particular que seja o relato, é sempre um relato de práticas sociais (Lemley & Mitchell, 2012). Para tanto, é preciso dar liberdade ao sujeito para falar livremente sobre sua experiência pessoal em face ao objeto de estudo, o que também implica em valorizar o discurso pessoal do sujeito, a estrutura e a forma de organizar a sua história de acordo com sua racionalidade (Spindola & Santos, 2003; Lemley & Mitchell, 2012). O estudo foi realizado com a população idosa, com vivências de situação de rua de no mínimo um ano e que é acompanhada pela equipe do Consultório na Rua (CnR). Foram realizadas oito entrevistas não diretivas, possibilitando ao participante discorrer livremente sobre o assunto. As entrevistas ocorreram em dias, horários e local previamente pactuados de acordo com a disponibilidade dos participantes, buscando-se um local livre de ruídos e de interferências de outras pessoas. A construção da amostra foi intencional, a partir da indicação dos profissionais que atuam no programa CnR. Teve como critério de inclusão ter 60 anos ou mais, estar em situação de rua ou ter saído da situação de rua há menos de seis meses. Foram excluídos aqueles que apresentavam condições cognitivas que os impossibilitavam de fornecer as informações necessárias. As entrevistas foram realizadas no período de outubro/2021 a janeiro/2022, por uma das pesquisadoras devidamente capacitada para a técnica, partindo da seguinte frase norteadora: Fale como foi sua vida desde a infância, os fatos marcantes e como chegou à condição de morador de rua. Foi realizada apenas uma entrevista por idoso, a qual teve duração média de uma hora. Além disso, foram coletados dados de identificação como sexo, idade, tempo que se encontra em situação de rua, recebimento de benefício, uso de álcool ou outras drogas ilícitas e problemas de saúde referidos. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Marília, com o CAAE 51191321.0.0000.5413. As entrevistas foram realizadas por duas das pesquisadoras, sendo uma mestranda e uma graduanda, após receberem o devido treinamento e terem realizado uma entrevista-piloto, visando a adequação do roteiro e forma de abordagem do idoso em situação de rua. As entrevistas que foram audiogravadas também foram transcritas na íntegra pelos pesquisadores, visando ampliar a aproximação com o meterial obtido. A análise dos dados foi realizada por meio da técnica de análise de conteúdo modalidade temática, objetivando uma interpretação mais profunda do contexto das falas. Assim, inicialmente, foi realizada a leitura de cada entrevista objetivando a organização do material a ser analisado e reconhecimento das ideias iniciais do texto. Após esta etapa, o material foi submetido a um estudo mais detalhado, visando o recorte de cada entrevista em unidades de registro, ou seja, a codificação, que permite a classificação e a agregação dos dados para elaboração dos núcleos de sentido. Por fim, foram estabelecidas as relações e deduções subsidiadas pela reflexão e fundamentação teórica (Minayo, 2016). O processo de categorização dos dados foi feito inicialmente por duas pesquisadoras, posteriormente o material produzido foi analisado pelas demais pesquisadoras e, na sequência, realizou-se um encontro entre todas as pesquisadoras para consenso e validação das categorias de análise.
4.Resultados
4.1 Caracterização dos idosos em situação de rua
Foram entrevistados oito idosos, sendo sete do sexo masculino e uma do sexo feminino. Identificou-se em relação à faixa etária que todos os idosos entrevistados eram sexagenários, sendo um de 62 anos de idade, dois de 64 anos de idade, dois de 65 anos, um de 67 anos de idade e dois de 68 anos de idade. Quanto à escolaridade, aponta-se que cinco possuem o ensino fundamental; um interrompeu os estudos no ensino médio; um concluiu o ensino superior e um não possui nenhum grau de escolaridade. Quanto à fonte de renda, observa-se que um é beneficiário do Bolsa Família; dois são contemplados pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC); um deles possui aposentadoria e quatro não possuem renda fixa. No que concerne ao uso de substâncias lícitas ou ilícitas, apenas um declarou não fazer uso, sendo que a maioria utiliza drogas lícitas como o tabaco (sete) e álcool (seis) e ilícitas como maconha (dois) e crack (um). Revela-se que quatro deles associam diferentes substâncias. Seis idosos vivem em situação de rua há mais de cinco anos; um por mais de 10 anos e um deles por mais de 20 anos.
4.2 Principais aspectos que marcaram a trajetória de vida e as memórias dos idosos em situação de rua
A partir das narrativas dos idosos em situação de rua, foi possível observar uma trajetória de intenso sofrimento em todas as fases da vida. No Quadro 1, encontram-se em destaque os principais aspectos que marcaram a vida dos entrevistados.
A partir dos aspectos que se destacam na vida dos idosos em situação de rua, foram elaboradas sete categorias temáticas. Para cada categoria, foram escolhidos dois excertos de fala para exemplificar os temas evidenciados nas entrevistas.
Infância/adolescência marcada por condições de vida precárias: E5 “Quando eu era mais novo, criança eu trabalhava, eu fui muito judiado. Eu trabalhava, né! [...] Mais aí, eu apanhava de borracha do meu pai.” E7 “Foi sofrido, né, eu não tive condição... porque a minha família era pobre”
Presença de transtornos mentais: E4 “aí eu sinto muita tontura [...], aquela crise assim bem, que é ruim quando a gente tem assim na rua e os carros passam por cima da gente.” E3 “outra coisa, eu recebi um prêmio Nobel de artes plásticas, mas não recebi nada até agora”
Uso abusivo de álcool e drogas ilícitas: E8 “ficava muito louco de pinga, quando não tinha maconha, ficava zoado de pinga.” E6 “pedra, farinha, maconha, de tudo um pouco, eu acho que eu ainda fui teimoso e ainda sou teimoso.”
Vida permeada por perdas: E.2 “[...] sempre foi sofrimento, entende, tive família simples demais, perdi pai, perdi irmão, perdi mulher, perdi filha, minha vida é embaçada[...]” E4 “um eu já dei para minha mãe, que era o primeiro, de sete meses, depois o outro eu dei para uma mulher que ela pediu para mim, que a mulher pegou ela falou para mim que não podia ter mais filho.”
Hospitalizações, encarceramento e conflitos nas relações: E6 “[...] não, a primeira eu fui quando minha mãe era viva, fui amarrado numa maca, peguei e fiquei três dias na unidade de intoxicação lá do HEM.” E8 “Já fui preso, fui preso, mas não por causa de droga.”
Sentimentos e sensações de sofrimento: E1 “[...] não sou um grão de areia, eu tenho sentimento, eu tenho um coração, eu queria saber alguma coisa para mim poder me livrar desse sofrimento...” E2. “Eu escrevo, eu escrevo tudo o que me aconteceu na vida, que a pessoa não sabe o que é uma noite de frio, a pessoa não sabe o que é uma noite de frio no meio do perigo, a pessoa não sabe o que é o rato...”
Negligência em relação ao cuidado em saúde: E4 “Bom, eu tava tomando aquele remédio, depois aí eu parei de beber também.” E5 “Ai, eu parei de fumar, mas comecei a emagrecer, fui emagrecendo, emagrecendo… aí voltei a fumar, aí o peso voltou...”
5.Discussão
Durante a coleta de dados, perpassando pelas orientações de ser feita uma escuta, sem interferir no relato dos participantes, conforme proposta do método de história oral, constata-se que não foi possível manter um padrão das narrativas. Sendo assim, alguns focaram mais na infância, outros a partir da adolescência, porém com uma tendência de foco no momento atual de vida. Destaca-se também que a maioria das histórias foram contadas entre misticismos, crenças, confusões, repetições de dados, respostas evasivas e emoções, não existindo, portanto, qualquer linearidade entre as mesmas. De qualquer forma, foi possível captar essencialmente que suas histórias foram marcadas por sofrimento, perdas, rejeição e maus-tratos, ausência de vínculos afetivos, falta de apoio familiar, além de permeadas pelo uso de drogas ilícitas, uso abusivo de álcool, encarceramento, internação em hospital psiquiátrico e trabalho informal. Mémorias que permanecem vivas e que auxiliam numa compreensão mais ampliada de cada história de vida, de suas singularidades, bem como de aspectos similares que demonstram as vulnerabilidades presentes e que necessitam de um olhar mais atento para cuidados em saúde mais efetivos. Nesta perspetiva, há de se considerar que o fato de a vida social estar fragilizada, assim como a fragilidade dos laços afetivos e os sofrimentos em função da desvalorização da pessoa, da solidão e do isolamento, são condições psicossociais que geram ao idoso uma desmotivação em relação à própria vida. Tais dificuldades, inerentes ao contexto de vida do idoso em situação de rua, podem desencadear em depressão (Cavalcante et al., 2015). Em um estudo qualitativo realizado com 23 pessoas, em um município de Minas Gerais, identificou-se que desesperança, tristeza, fragilidade nos vínculos familiares e sociais, isolamento, estigmas, preconceito são aspectos que contribuem ao desencadeamento da depressão, podendo ser um fator disparador à tentativa de suicídio (Castro et al., 2019). Sabe-se que o envelhecimento está relacionado a diversos estereótipos, entre eles destaca-se o isolamento social. Nesse sentido, muitas vezes, os vínculos familiares são fragilizados ou, ainda, muitos abusos existentes são produzidos pelo próprio entorno familiar. Essa condição, associada a uma série de fatores de extrema vulnerabilidade quando se trata de idosos em situação de rua, pode se tornar ainda mais grave (Manso, Comosako & Lopes, 2018). Em estudo com pessoas em situação de rua, pode-se observar que a ruptura das relações familiares é um dos principais fatores que justifica a condição de viver nas ruas. Acredita-se que esses conflitos fragilizam e até mesmo rompem os vínculos afetivos com a família (Bezerra et al., 2015). Inúmeras são as vulnerabilidades e riscos inerentes à condição de rua, entre eles destaca-se a violência, bem como as sensações de insegurança e incertezas que permeiam o cotidiano dessa população. Nesse sentido, o idoso em situação de rua enfrenta maiores dificuldades por sua condição de fragilidade (Andrade, Costa & Marcheti, 2014; Nobre et al., 2018). Nos discursos dos idosos entrevistados, pudemos identificar, entre as vulnerabilidades, a dificuldade e até mesmo a falta de acesso aos benefícios da Previdência Social. Visualiza-se que o fato de terem trabalhado no mercado informal prejudicou o acesso à Previdência. Essa condição é também apontada em um estudo no qual evidencia-se que a idade mínima para aposentadoria não condiz com a realidade das pessoas em situação de rua, que têm expectativa de vida menor do que a população de uma maneira geral; as pessoas em situação de rua que contribuem para a Previdência Social têm dificuldades de acessar alguns de seus benefícios já que, para isso, dependem de laudos médicos e exames, aos quais não tem acesso garantido (Machado, 2020). Aponta-se que, entre as pessoas idosas em situação de rua, a realidade de envelhecer e de perceber o processo de envelhecimento se dá por meio do comprometimento das capacidades funcionais. A exposição a condições de vida não saudáveis, tais como alimentação inadequada, sedentarismo e estresse, são fatores que geram algumas doenças comuns na terceira idade, tais como a hipertensão, a diabetes, a osteoporose, entre outras. Verifica-se que as condições de saúde afetadas por doenças como hipertensão arterial, diabetes, como também outros acometimentos, são fatores que aumentam a vulnerabilidade e geram impacto no trabalho e nas formas de garantir recursos financeiros, o que acaba dificultando o processo de sair das ruas, bem como a subsistência nas ruas. Acrescenta-se, ainda, a dificuldade do uso regular de medicamentos, que se faz primordial para o controle das doenças crônicas não transmissíveis apresentadas por eles, ocasionando maior risco de hospitalizações e até mesmo óbito (Mattos et al., 2021). Ao pensar em perspectiva futuras, os idosos do presente estudo trazem um desejo comum, sendo este lograr uma casa para morar. Almejam pagar um aluguel ou uma pensão e viver com mais qualidade de vida. Há, ainda, a expectativa de resgatar os vínculos familiares quando puderem garantir seu próprio sustento. Nesse sentido, aponta-se realidades em que parte dos idosos sentem-se desesperançosos, pois se dão conta de que a renda mensal advinda do benefício social não é suficiente para garantir suas necessidades e saída da condição de rua (Mattos et al., 2021). Associa-se também à PSR o encarceramento, que pode ocorrer por algum delito cometido na condição de morador de rua ou por não encontrar apoio após passar longos anos encarcerados. Soma-se a abordagem à situação das pessoas privadas de liberdade, pois esses são considerados como cruéis, perigosos e não merecedores de benefícios, portanto, existe um total desinteresse por estas pessoas (Lima, 2019). Salienta-se que o processo de envelhecimento das pessoas em situação de rua acontece de forma precoce, devido às condições precárias de vida. Ademais, esses idosos possuem maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho, seja ele formal ou informal, desencadeando prejuízos psicossociais (Sicari & Zanella, 2018). Haja vista o fato de a totalidade dos idosos entrevistados estar na faixa dos 60 a 68 anos de idade, mesmo frente a um contexto de transição demográfica em que as pessoas estão vivendo mais. O uso abusivo de álcool e outras drogas é evidenciado diante das várias vulnerabilidades das pessoas em situação de rua. Apresenta-se alta prevalência de transtornos mentais associados à condição de estar na rua e, também, em decorrência do uso abusivo de substâncias. (Maremmani et al., 2015; Cheung et al., 2015). Vale ressaltar os relatos de históricos familiares de abuso de substâncias (Luthar & Cicchetti, 2000) e históricos de muitas internações, na maioria dos casos, em comunidades terapêuticas. Outros estudos associam que o uso de drogas pela população em situação de rua agrava complicações decorrentes de outras doenças, como AIDS (Kennedy, 2016) e tuberculose (Ranzani, 2016). Vale destacar, no âmbito das políticas públicas direcionadas ao álcool e outras drogas, alguns modelos vigentes que refletem o cuidado que a PSR recebe a nível estatal. Prepondera-se os paradigmas de proibicionismo e antiproibicionismo nos setores da segurança pública e justiça. Já em áreas da assistência social e da saúde, constata-se os paradigmas psicossociais, os asilares e o de redução de danos. Ademais, visualiza-se que as políticas públicas voltadas a essa questão têm se apresentado pouco efetivas e com fragilidades de acesso, o que potencializa as desigualdades daqueles que estão em alta vulnerabilidade social (Teixeira et al., 2017) e que fazem uso abusivo de substâncias, assim como as pessoas em situação de rua. Evidencia-se como fator disparador à condição de rua, ou como consequência dela, o uso de substâncias. Aponta-se, em decorrência disso, os vínculos familiares enfraquecidos e os vínculos de trabalho anteriores à situação de rua. No entanto, visualiza-se que o uso de substâncias, principalmente o álcool, se dá pelo fato de minimizar os impactos ocasionados pelas adversidades do cotidiano na rua, como, por exemplo, o frio (Escorel, 2009). Essa relação de abuso ou dependência de álcool e outras drogas corrobora com alguns estudos que afirmam que essa população mantém esse padrão de uso abusivo para diminuir os sofrimentos físicos e psicológicos e lidar com as condições sociais desfavoráveis (Sicari & Zanella, 2018). Denota-se que existe significativa diferença entre as realidades vivenciadas, as causalidades de viver em situação de rua, bem como a permanência nessa condição (Corrigan & Rao, 2012). Revelando que, à medida que o tempo na rua se prolonga, maior a complexidade de fatores geradores para permanência nessa condição, e que, associada ao uso de álcool e outras drogas, essa complexidade se potencializa. Assim, é possível refletir sobre a capacidade de resiliência atingida, ao longo da vida, por esses idosos em situação de rua. O fato de estarem vivos representa para eles um sucesso pessoal, político e social. O que expressa o ato de resistir a um Estado que se constitui por uma sociedade que os invisibiliza por meio de olhares carregados de estigmas e estereótipos e da negligência a direitos humanos fundamentais, aumentando ainda mais essa complexidade difícil de ser ressignificada.
6.Considerações Finais
Verificou-se, nesse estudo, vivências e memórias, desde a infância até a vida adulta, de fragilidades nas relações interpessoais dos participantes, que referiram seus ciclos de vida marcados por diversos fatores disruptivos às relações, que, somados ao longo do tempo, sucedem-se em um efeito cumulativo, que irrompe na situação de rua pelo processo de desfiliação social. Reforça-se o desafio de superar a noção acerca da situação de rua como ligação direta à falta de renda e moradia. A partir da análise das trajetórias e histórias de vida reproduzidas, denota-se as complexidades, bem como constata-se a existência de inúmeros fatores, tanto estruturais como biográficos, que, associados, culminaram na direção à situação de rua. O processo de envelhecimento das pessoas em situação de rua é um tema que nunca se esgota. Depreende-se a necessidade de amplos debates na direção de estratégias e ações específicas para as pessoas idosas em situação de rua. Faz-se necessário diminuir as vulnerabilidades a que estão expostas, bem como garantir-lhes uma vida digna com expectativas futuras por meio de programas e políticas públicas intersetoriais na área da saúde, assistência social, habitação, trabalho e educação, a fim de combater os processos de exclusão e atender às reais necessidades dessa população. Frente ao exposto, considera-se que a pesquisa qualitativa explicitou informações que contribuem para reflexões acerca do complexo fenômeno que envolve as condições de vida e saúde da PSR, mesmo que sem a intenção de generalização dos dados.