1.Introdução
O tema do presente artigo é um registro do trabalho desenvolvido pela equipe multidisciplinar do Instituto Médico Legal de Belo Horizonte, Minas Gerais, (IML/BH/MG), da qual a autora principal faz parteatuando como médica legista, compondo a primeira equipe de legistas convocada por ocasião dorompimento da barragem B1 de rejeitos do Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais.
No dia 25 de janeiro de 2019, por volta das 12h28minh, horário de Brasília, a Barragem I da mina do Córrego do Feijão rompeu-se, liberando 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração. A capacidade da barragem era de aproximadamente 13 milhões de metros cúbicos. A força da onda de lama varreu equipamentos operacionais (como trens, veículos e máquinas de beneficiamento do minério) e o centro administrativo da Vale, soterrando escritórios, vestiário e um refeitório, matando centenas de trabalhadores e trabalhadoras que trabalhavam e almoçavamno local.
Com velocidade estimada em mais de 70 km/h, a lama seguiu seu curso vale abaixo, soterrando casas, hortas e sítios das comunidades de Córrego do Feijão e do Parque da Cachoeira. Após o rompimento e vazamento, os rejeitos passaram a deslocar-se a velocidade de 1 km/h, tapado (sic) córregos e destruindo matas e vegetações locais, chegando então ao Rio Paraopeba, afluente do Rio São Francisco (Conselho Nacional dos Direitos Humanos, 2019, p. 10).
A tragédia resultou em 270 vítimas fatais, das quais 264 corpos já foram identificados. Entre as vítimas fatais, 250 eram trabalhadores, diretos e terceirizados da empresa Vale S. A., sendo o restante composto por moradores, turistas e trabalhadores de outros setores (Vale, 2020). Grandes tragédias como esta causam impacto na equipe de trabalho por condições adversas e falta de estrutura do IML/BH/MG. O IML/BH/MG teve atuação direta na identificação das vítimas, pois devido aos traumas físicos verificados nas pessoas o reconhecimento visual ou por meio de roupas e objetos pessoais, por parte de familiares e/ou amigos, era praticamente impossível. A correta identificação das vítimas configura implicações sociais, jurídicas e humanitárias abrangentes. Pôde-se inferir a necessidade de se investigar as problemáticas tratadas o que levou à seguinte pergunta norteadora: qual impacto foi possível verificar no cotidiano dos trabalhadores do IML/BH/MG, frente à tragédia? O objetivo do estudo é verificar a percepção dos profissionais do IML/BH/MG acerca das condições de trabalho, das atividades, dos riscos presentes nos processos de identificação de cadáveres e segmentos corporais das vítimas fatais, frente ao desastre de massa, e do atendimento aos familiares decorrentes do rompimento da barragem.
2.Trabalho Pericial: uma Atividade Multidisciplinar
A Polícia Técnico-Científica abriga os serviços de perícia criminal e de medicina e odontologia legal, sendo ambos componentes importantes do suporte à ação judicial. A perícia criminal trata do exame dos locais de crimes, da coleta e análise dos “[...] vestígios deixados em infrações penais” (Rodrigues; Silva; & Truzzi, 2010, p.845). A medicina e odontologia legal, por sua vez, realizam necropsias em cadáveres, em situações de morte violenta, tais como homicídios, suicídios e acidentes, incluindo aquelas que resultam em mortes em massa (Couto, 2011). O planejamento operacional da equipe multidisciplinar da Superintendência Técnica Científica da Polícia Civil de Minas Gerais frente à tragédia em Brumadinho/MG exigiu um diagnóstico preciso do problema e variações na atuação, conforme o momento e a gravidade do fato, determinando assim prioridades. O protocolo em acidentes de massa não é algo hermético e nem estático se adequando ao planejamento operacional de diversas maneiras. A tarefa precisa ser desenvolvida por toda a equipe, cada um respondendo por sua própria atividade (Louzada, 2014). Para a identificação dos corpos e trabalho mais ágil quanto à realização das perícias foi necessário apoio tecnológico e jurídico (Linhares, 2020). O IML/BH/MG faz parte da estrutura da Polícia Civil e tem funcionamento ininterrupto, ou seja, 365 dias do ano, durante as 24 horas do dia, sendo que a jornada de trabalho dos trabalhadores do órgão se organiza de forma a garantir o funcionamento da instituição. Está instalado em um prédio de dois andares, com ambientes distintos para cada tipo de atividade. O Órgão conta, para o seu funcionamento regular, com profissionais de diferentes formações/funções, a saber: médico legista, odontolegista, perito criminal, escrivão de polícia, inspetor, investigador, assistente social, psicólogos, auxiliares de necropsia, papiloscopista, motorista do rabecão, enfermeiro, técnico em enfermagem, técnico analista, técnico administrativo, secretária, ajudante de serviços gerais e artífice (Minas Gerais, 1969). A sede encontra-se em mal estado de conservação com paredes descascadas, chão gasto, ventiladores antigos, divisórias de PVC, que refletem o descaso do Estado, com os órgãos públicos, mas mesmo com todas as dificuldades foi ali que 264 das 270 vítimas do rompimento da barragem foram identificadas e puderam ser sepultadas por seus familiares.
2.1 Sofrimento e Adoecimento dos Trabalhadoresdo IML/BH/MG frente à Tragédia
O Instituto Médico Legal executa o trabalho de investigação da causa mortis em cadáveres desconhecidos, vítimas fatais de causas externas, suspeitas e violentas. É o trabalho onde a dor e o sofrimento são evidências das causas externas e violentas que precipitaram a morte e se os meios foram insidiosos ou cruéis. A atuação técnica e multidisciplinar dos trabalhadores envolvidos deverá ser precisa em uma rotinade trabalhos diários. Tecnicamente são os últimos a falarem pelos mortos, no aspecto de investigação de polícia judiciária. Essas condições são severamente alteradas frente às situações de crise, como é a de uma catástrofe, em que tem grande volume de trabalho com exigência de eficácia e tempo reduzido, lidando com centenas de mortos, feridos, comoção e sofrimento, retratada no rompimento, da Barragem B1, da Mina do Córrego do Feijão. Pode-se dizer que esta tragédia instalou um quadro de crise no IML/BH/MG frente à grande exigência de performance, sem interrupção dos trabalhos diários e habituais do dia a dia. A concepção de trabalho possui diversos significados, mas sempre com o intuito da sobrevivência e da realização, de acordo com Heloani (2016) e Krawulski (1998). O trabalho é essencial para construção da identidade e desenvolvimento pessoal do indivíduo, mas quando o ambiente de trabalho é desfavorável, este pode contribuir para o adoecimento do trabalhador. O trabalho pode ser compreendido como um reduto de prazer e crescimento, acenando para a possibilidade de se ter uma ocupação laboral e uma ascensão social, com trocas e experiências psicossociais, mas também pode se tornar uma fonte geradora de sofrimento e de adoecimento (Simões, 2013). O local da tragédia do rompimento da Barragem B1 era especificamente o território de trabalho de cerca de 665 pessoas, diariamente (Vale, 2021). Chegar ao local para os trabalhadores e seus familiares era a incerteza de ser um local de trabalho seguro ou não. E as últimas notícias anteriores à tragédia citavam os riscos de rompimento de algumas barragens da Companhia Vale. Para esses trabalhadores da barragem B1 chegar em casa era mais um dia de vitória contra a morte. Dessa forma a necessidade do trabalho suplantava o sofrimento e o risco de morte (Quintão, 2019). Em relação ao sofrimento e adoecimento no ambiente de trabalho, Dejours (1992) destaca que estes ocorrem quando a relação do trabalhador com a organização é bloqueada e “a energia pulsional, que não acha descarga no exercício do trabalho, se acumula no aparelho psíquico, ocasionando um sentimento de desprazer e tensão” (p.29). Ainda segundo este autor, todo excesso conduz ao aparecimento da fadiga do sofrimento, podendo desencadear assim a patologia. Entretanto, apesar do sofrimento ser inerente ao processo de trabalho, é impossível de ser eliminado e, muitas vezes, não se torna patogênico (Brant & Minayo-Gomes (2004). O sofrimento pode pender para o lado da criatividade e beneficiar a identidade do indivíduo. Neste meandro, tudo vai depender da estruturação do indivíduo em sua história de vida, bem como a organização do trabalho e suas relações interpessoais na organização (Codo; Sorato; & Vasques- Menezes, 2004).
3.Metodologia
Este artigo é parte da dissertação apresentada à Faculdade de Medicina/UFMG para a obtenção do grau de mestre em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência. Trata-se de um estudo quali-quantitativo, tipo descritivo-explicativo, por meio do qual se buscou compreender os aspectos que moldaram a atuação e a percepção dos profissionais do IML/BH/MG nos trabalhos desenvolvidos por ocasião do atendimento às vítimas do rompimento da barragem de rejeitos da Mina B1 do Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais. Este estudo visou explicitar as implicações do trabalho desenvolvido pela equipe de profissionais do IML/BH/MG, trazendo a lume, especialmente, as condições técnicas e as percepções dos profissionais acerca da identificação das vítimas fatais e do atendimento às suas famílias. Os dados foram coletados no período de março a julho de 2020, no grupo de trabalhadores do IML/BH/MG que esteve envolvido na realização das perícias técnico-científicas às vítimas fatais e no atendimento aos seus familiares, composto por 42 médicos legistas, dois enfermeiros, dois psicólogos, seis psiquiatras, quatro odontologistas, oito assistentes sociais, quatorze técnicos de enfermagem, quatorze técnicos em radiologia, quatorze especialistas em antropologia e quatorze profissionais que atuaram na recepção e portaria, dentre outros, totalizando 120 trabalhadores, dentre os 215 trabalhadores do instituto. Os dados obtidos diretamente dos trabalhadores foram coletados mediante duas técnicas distintas, que se complementaram, na perspectiva de um estudo quanli-quantitativo, sendo elas: questionário estruturado, composto por 32 questões fechadas e questionário semiestruturado com 10 questões abertas, ambos acompanhados pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE):
Inicialmente, o questionário estruturado foi encaminhado para os 120 trabalhadores convidados a responder o questionário, disponibilizado no Google Forms. Trabalhadores que não conseguiram responder ao questionário pela via on-line, o receberam pessoalmente, na forma impressa, nas dependências do IML/BH/MG. Os questionários respondidos manualmente foram digitados e somados àqueles respondidos on-line, compondo arquivo único, cujas respostas foram transportadas para uma planilha do software Statistical Package for Social Sciences (SPSS), v. 20.0;
na sequência, foi encaminhado para o mesmo grupo de 120 trabalhadores, via Google Forms, questionário semi-estruturado, composto por questões abertas. Trabalhadores que não conseguiram responder ao questionário pela via on-line, o receberam pessoalmente, na forma impressa, nas dependências do órgão. Os questionários respondidos manualmente foram digitados e somados àqueles respondidos on-line, compondo arquivo único, para análise posterior.
Para ambos os instrumentos, questionário estruturado e semiestruturado, foi realizado teste piloto, sendo que os respondentes também assinaram o TCLE. Estes questionários, num total de oito, foram excluídos da análise dos resultados. Dos 120 questionários aplicados teve-se o retorno de 66. Também foi realizada análise documental visando apresentar:
descrição das vítimas fatais do desastre, segundo aspectos sociodemográficos (sexo, faixa etária, estado civil e ocupação), tempo decorrido entre o dia da tragédia e a chegada dos corpos e tempo decorrido entre a entrada e a liberação dos corpos pelo IML/BH/MG. Estas informações foram obtidas a partir de documentos produzidos pelo próprio Instituto (planilhas informatizadas da sala de Assistência Social do IML/BH/MG e pesquisa em banco de dados sobre a chegada e saída de corpos), considerando o período entre 25/01/2019 até julho/2020;
descrição e apresentação do modelo de laudo de necropsia que apresenta as variáveis descritivas (sexo, idade, escolaridade, cor e ocupação) e explicativas (cor dos olhos, vestes, sinais particulares, cabelo, barba, bigode, dentes, estatura, biótipo, genitália, lesões externas, exame interno, tempo de chegada, identificação e liberação dos corpos, identificação de elementos não humanos, papiloscopia e DNA. Por se tratar de informações sigilosas de foro investigativo policial e judiciário, os dados extraídos de necropsia e demais documentos não foram descritos e nem identificados.
Os dados qualitativos foram discutidos por meio da análise de conteúdo que, conforme proposta de Bardin (2006) adota três fases: pré-análise, em que ocorre a organização do material; a exploração do material, em que é feita a seleção das informações a serem analisadas; e o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação, em que são sintetizados os resultados obtidos e realizada a análise consoante os objetivos propostos. A escolha desta metodologia se justifica, pois segundo Minayo et al. (2002, p.21), a pesquisa qualitativa:
[...] trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com os seus semelhantes.
O cumprimento às etapas propostas por Bardin resultou nas seguintes categorias de análise: vivência com aprendizado e superação de dificuldades; vivência com aprendizado e sofrimento no trabalho; a questão não se aplica à área de atuação (trabalho).
A etapa qualitativa da pesquisa estava prevista para ser constituída por entrevistas semiestruturadas com profissionais do IML/BH que atuaram na tragédia do rompimento da barragem em Brumadinho/MG. Mas, devido à pandemia Covid-19, SARSCOV-2 e Ofício Circular PCMG/SPTC nº 48/2020 e Resolução da Chefia da PCMG nº 8.132, de 2020, e alterações, a entrevista foi encaminhada via Google Forms e, também, entregue fisicamente aos participantes. A análise qualitativa e categorização se referem às questões abertas abaixo:
Fale sobre a sua percepção acerca das condições de trabalho, dos riscos e das cargas de trabalho (satisfação, eficiência, segurança no trabalho, relação funcional entre as exigências do trabalho e as capacidades biológicas e psicológicas do trabalhador), realização das atividades de identificação de cadáveres e segmentos corporais das vítimas fatais e do atendimento aos familiares decorrentes da tragédia.
Fale sobre a sua vivência na realização das atividades de identificação de cadáveres e segmentos corporais das vítimas fatais e do atendimento aos familiares decorrentes da tragédia.
Fale sobre sua percepção acerca dos efeitos que este trabalho provocou sobre sua saúde.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP) da Universidade Federal de Minas Gerais, com o Projeto: CAAE - 02235212.2.0000.5149.
4.Resultados e discussão
A localização dos corpos ou dos segmentos corporais das vítimas (78,9%) foi realizada em até 30 dias. A partir da entrada no IML/BH/MG, o tempo utilizado na identificação dos corpos foi de até sete dias, para 82,2% dos casos, chegando a 87,3%, em 30 dias. Estes dados apontam, por um lado, para a eficiência da equipe técnica da instituição e, por outro, indicam que a identificação dos corpos vai se tornando mais difícil, à medida que o tempo vai se alongando, tornando o trabalho da perícia técnico-científica mais difícil e complexa. Todo este processo realizado sobre muita pressão da mídia, dos familiares e dos superiores ocasionou um forte impacto na vida e saúde laboral e pessoal dos funcionários. As ilustrações fotográficas (figuras 1,2,3 e 4) apresentadas a seguir mostram os espaços físicos da unidade de uma forma geral, corpos e segmentos corporais das vítimas fatais periciadas pela equipe multidisciplinar do IML/BH/MG.
4.1 Análise Qualitativa
Com relação à questão 1, dos 66 respondentes, 60,60% mostrou satisfação e tecnicamente capaz para realização das atividades laborais, mesmo diante de uma tragédia única e inusitada o que corrobora os relatos da ILO (1986): “fatores psicossociais no trabalho referem-se a interações entre ambiente de trabalho, conteúdo do trabalho, condições organizacionais e capacidades dos trabalhadores [...], influenciar a saúde, desempenho no trabalho e satisfação”. O grupo multidisciplinar conseguiu, diante do inesperado, superar as dificuldades e deficiências dos setores específicos. A atuação positiva do IML/BH/MG pode ser verificada pelo relato a seguir de um dos respondentes:
Foi sem dúvida a experiência de trabalho mais desafiadora de minha vida profissional, e, ao mesmo tempo, extremamente gratificante.
Já um percentual de 39,40% dos respondentes mostrou insatisfação e a percepção do desgaste físico e emocional diante da tragédia no que se refere aos mortos e principalmente no contato com os familiares das vítimas fatais, o que corrobora os achados de Leka e Jain (2010). Com relação à questão 2, a maioria dos respondentes (54,50%) fez afirmações de vivência com ganho e aprendizado, conforme relatou um respondente:
Foi uma experiência única apesar de extremamente difícil, do ponto de vista técnico e enriquecedora.
Cerca de 20,90% das pessoas fizeram afirmações de vivência com perda e sofrimento conforme relatado por um dos respondentes: “Complicada. O reconhecimento foi um dos momentos que mais me marcou; explicar para o familiar ‘responsável’ que não estávamos entregando um corpo íntegro foi bem difícil” o está de acordo com Barros e Silva, (2004). Com relação à questão 3, os respondentes (33,40%) relataram que, mesmo diante da tragédia conseguiram transpor as dificuldades e essas não refletiram ou trouxeram consequências à sua saúde física e mental o que reforça as teorias de Marx (1996) e Pina; Stotz (2014).
Não percebi efeitos deletérios do trabalho sobre minha saúde. Muito pelo contrário, me senti pertencente ainda mais ao IMLAR/PCMG. Fiquei grata por ter trazido certa paz em meio ao caos para alguns familiares ao participar, mesmo que passivamente, da identificação das vítimas.
Os demais 66,60% dos respondentes perceberam efeitos em sua saúde física e mental, o que impactou em suas atividades laborais diárias, conforme relatado por um dos respondentes e corroborado por Facchini (1993):
Na verdade, acho que durante a fase de trabalhos mais árduos muitas alterações ocorreram na minha na saúde emocional como insônia, agitação, ansiedade, etc. [...] Ainda fica a ansiedade e expectativa de conseguirmos identificar as vítimas ainda desaparecidas.
Pode-se inferir que a vivência da equipe multidisciplinar do IML/BH frente ao trabalho, à perícia técnico- científica e ao acolhimento aos familiares das vítimas apresentou profissionalismo, superação, sofrimento e aprendizado, seja do ponto de vista técnico, emocional e social. Os dados apresentados demonstram experiência de aprendizado técnico e humanitário pela vivência da equipe multidisciplinar do IML/BH/MG em relação às atividades de identificação dos corpos e segmentos corporais das vítimas fatais, como também o atendimento e acolhimento aos familiares das vítimas. Outros experimentaram uma vivência relacionada ao sofrimento, mas não deixaram de executar o trabalho. Dessa forma, o trabalho deve ser entendido como:
[...] mediador de integração social, seja por seu valor econômico (subsistência), seja pelo aspecto cultural (simbólico), tendo, assim, importância fundamental na constituição da subjetividade, no modo de vida e, portanto, na saúde física e mental das pessoas (Brasil, 2001, p. 161).
Segundo relatório da Vale do Rio Doce em 29/12/2021 houve um total de 665 pessoas envolvidas no acidente. Destas 395 foram localizadas, sendo 225 da própria Vale e 170 de terceiros ou comunidade. Seis pessoas continuam sem contato, quatro da Vale e dois de terceiros ou comunidade. O IML/BH identificou 264 corpos, óbitos confirmados pela Defesa Civil, sendo 127 da Vale e 137 de terceiros ou comunidade (Vale, 2021).
5.Considerações Finais
Um acidente em massa nunca é desejável, mas é possível. Para investigar a percepção dos profissionais do IML/BH/MG acerca das condições de trabalho, das atividades, dos riscos presentes nos processos de identificação de cadáveres e segmentos corporais e, das possíveis repercussões sobre a saúde, a metodologia utilizada mostrou-se adequada, pois possibilitou maior aproximação do objeto em análise. A pesquisa demonstrou que discutir a atuação multidisciplinar dos profissionais do IML/BH/MG frente à maior tragédia em número de vítimas decorrente do rompimento da Barragem B1 colocou à prova trabalhadores que enfrentaram dificuldades, desafios e se superaram técnica e profissionalmente. Porém, a extensão da tragédia e a violência da lama sobre os corpos das vítimas foi um dos maiores desafios para a identificação das vítimas. A união dos funcionários em suas várias especialidades levou ao êxito da missão. É relevante e fundamental registrar que mesmo na atuação exemplar e enriquecedora, este trabalho específico e único, referente à tragédia, trouxe sofrimento e adoecimento num percentual importante aos profissionais que atuaram diretamente com os corpos e segmentos. Evidenciou-se que foram necessárias mudanças no processo e na organização do trabalho, para o atendimento às vítimas fatais e seus familiares que implicaram em aumento do número de pessoal incluindo profissionais aposentados, de outros estados e estrangeiros, adaptações na estrutura física, insumos e equipamentos. O Instituto Médico Legal e seus funcionários já eram adaptados a uma rotina diária. A tragédia com o rompimento da barragem evidenciou, tanto para a estrutura física como os recursos humanos, a necessidade de transformações tanto no aparato técnico quanto do processo de trabalho humano diante de uma realidade inusitada, de grande monta, devastadora e de sofrimento. A percepção dos profissionais do IML/BH/MG acerca da tragédia e o desenvolvimento das suas funções e atividades envolveu riscos advindos dos desafios frente à identificação de cadáveres e segmentos corporais das vítimas fatais. Foram transformados historicamente e não há como retroceder. Há que se pensar em melhores condições nos processos de trabalho e, sem dúvida, promover ações de escuta e qualidade para a saúde da equipe de trabalho no seu cotidiano. Tratou-se de um contexto desafiador para a equipe multidisciplinar o que trouxe sofrimento e adoecimento, mas que foi superado pela dedicação dos profissionais envolvidos. Através dos estudos da pesquisa embasados na ciência buscou-se decodificar a vida e o ambiente onde a vida existe, em sua plena expressão, na simbiose do coletivo que deveria ser complemento contínuo do bem-estar. A tragédia resultou em 270 vítimas fatais, das quais 264 corpos já foram identificados. Entre as vítimas fatais, 250 eram trabalhadoras e trabalhadores, diretos e terceirizados da Empresa Vale S.A e as demais vítimas moradoras e moradores, turistas e trabalhadores de setores variados. Participar do outro lado da tragédia dando nome, identificando as vítimas era o mínimo de trabalho humanitário que restava à equipe, pois a mídia e alguns familiares já se deslocavam para ao IML/BH inconscientes do difícil trabalho que se tinha pela frente. A extensão da tragédia e do grande número de mortos provocou uma das maiores atuações da equipe multidisciplinar do IML/BH/MG envolvendo até os que estavam em setores administrativos ou mesmo aposentados, mesmo aqueles que não lidaram diretamente com os corpos das vítimas e seus familiares foram atingidos pela força da tragédia. O ruído dos caminhões frigoríficos e o odor dos corpos envolto em lama foi um aspecto impactante no sofrimento dos profissionais envolvidos. Tratou-se de receber mortos, identifica-los, dignifica-los e pela última vez devolvê-los ao seio familiar, para seus sepultamentos. Este estudo não exauriu o assunto e abre perspectivas futuras para novas pesquisas. Fomos voz daqueles que não podiam mais falar...