1.Introdução
A transferência de informação entre equipas de enfermagem no fim do turno é uma prática diária dos enfermeiros. Visa assegurar a continuidade de cuidados e promover a segurança dos mesmos (Direção Geral da Saúde, 2017), representado, por isso, um momento relevante da prática profissional, mas simultaneamente complexo, que acarreta em si um potencial contributo para a ocorrência de erros na tomada de decisão, resultantes de omissões ou deturpação da informação (Desmedt et al., 2021; Methangkool et al., 2019). A Organização Mundial da Saúde tem vindo a sensibilizar as instituições de saúde para a importância de implementar diretrizes promotoras da segurança dos contextos de prática clínica. No entanto, e apesar desse esforço, as diferentes vertentes da segurança dos contextos assistenciais continua a configurar-se como um desafio e uma aposta, patentes no Plano de Ação Mundial para a Segurança do Doente 2021- 2030 (OMS, 2021), que tem como missão impulsionar políticas, estratégias e ações baseadas na evidência científica e na experiência do doente, com o objetivo de eliminar todas as fontes de risco evitáveis e passíveis de dano para o doente e para os profissionais de saúde. No domínio da segurança dos cuidados, a comunicação eficaz assume um papel preponderante na complexidade da prestação de cuidados, devendo ser entendida como um dos pontos principais de investimento por parte das instituições de saúde. A nível internacional, as falhas de comunicação são a principal causa de eventos adversos na saúde. Cerca de 70% desses eventos ocorrem devido a falhas na transmissão de informação relevante entre profissionais de saúde no momento da transição de cuidados (Ordem dos Enfermeiros, 2017). Bukoh e Siah (2020) esclarecem que para se proporcionar cuidados seguros e eficazes a boa comunicação dentro da equipa de enfermagem é um requisito essencial. Centrando esta problemática na dinâmica do serviço de urgência, o objetivo de assegurar um adequado fluxo de informação configura-se como um desafio maior, decorrente do elevado número de doentes, da afluência dos mesmos que não é constante, assim como das intervenções de enfermagem associadas à instabilidade clínica do doente, constituindo, por isso, um risco elevado de partilha inadequada de informação entre profissionais de saúde (Sanjuan-Quiles et al., 2019). Esta ideia é também partilhada por Heilman et al. (2016) e Tortosa-Alted et al. (2021), quando afirmam que a transição de cuidados num serviço de urgência/emergência configura um cenário de alto risco, sendo mesmo considerado por parte dos profissionais de saúde e organizações internacionais um problema preocupante para a segurança do doente. Em torno desta problemática abre-se também o debate acerca da valorização das intervenções autónomas dos enfermeiros. Apesar do esforço desenvolvido pela Ordem dos Enfermeiros no sentido da valorização da autonomia, com recurso ao quadro de referência orientador do exercício profissional dos enfermeiros, a prática evidencia um distanciamento entre os modelos decorrentes das teorias de enfermagem e os modelos adotados na prática clínica (Ribeiro et al., 2018). O modelo biomédico, com uma perspetiva fragmentada da pessoa, e uma atividade por parte dos enfermeiros de proximidade e colaboração com a medicina, continua a ser dominante, existindo dificuldade em introduzir aspetos característicos dos modelos de enfermagem (Ribeiro et al., 2019). A pesquisa que nos propomos realizar surge no âmbito do aprofundamento deste fenómeno, procurando dar resposta à questão de investigação “Qual a perceção dos enfermeiros acerca da transição de cuidados num serviço de urgência, tendo em conta a continuidade de cuidados?”. Pretendemos compreender a perceção dos enfermeiros acerca da transição de cuidados de saúde, num serviço de urgência, tendo em conta a continuidade de cuidados de saúde.
2.Metodologia
Tendo por base a questão de investigação norteadora do estudo, em que se pretendeu compreender em profundidade a perceção dos participantes acerca de um determinado fenómeno, explorando deste modo o universo de significados, e sendo o conceito de perceção revestido de subjetividade, indissociável da individualidade de cada um dos sujeitos, optou-se por uma abordagem metodológica qualitativa, sustentada no paradigma naturalista ou interpretativo, o qual encerra a crença de que existem várias realidades, baseada nas perceções dos indivíduos (Fortin, 2009). A investigação qualitativa tende a ressaltar o sentido ou significado que o fenómeno estudado reveste para os indivíduos. Os acontecimentos são únicos e o pensamento está orientado para a compreensão total do fenómeno em estudo (Fortin, 2009). Estando em causa uma problemática ou tema pouco estudado em contexto de serviço de urgência, optámos por realizar um estudo exploratório, com o propósito de estudar o fenómeno procurando interpretar as suas implicações na perspetiva dos participantes (Fortin, 2009). O estudo desenvolveu-se num serviço de urgência médico-cirúrgica de uma instituição hospitalar do norte de Portugal, com uma área de influência de aproximadamente 520.000 habitantes, com uma média diária de 279 episódios de urgência, referentes a 2020 (Administração Central do Sistema de Saúde, 2021). A escolha desta instituição de saúde teve subjacente um critério de conveniência, pela facilidade de acesso aos participantes, decorrente da prática profissional do investigador principal se desenvolver na mesma instituição. A participação no estudo obedeceu aos seguintes critérios de inclusão: i) enfermeiros a exercer funções no serviço de urgência, em todas as áreas de prestação de cuidados, no período compreendido entre abril e junho de 2021; e ii) tempo mínimo de exercício profissional no serviço de urgência igual ou superior a 1 ano. Pese embora a adoção de uma amostragem por conveniência, pela razão já descrita, importa, não obstante, destacar dois conceitos centrais que foram atendidos no processo de amostragem: a diversidade, onde procurámos a heterogeneidade dos sujeitos em estudo; e a saturação dos dados, a qual cumpre a função essencial de indicar o momento em que o investigador deve parar a recolha de dados, evitando o desperdício inútil de provas (Guerra, 2006). A saturação dos dados foi alcançada à décima entrevista; entre os participantes estiveram representados enfermeiros com maior e menor experiência profissional no serviço de urgência, assim como enfermeiros generalistas e enfermeiros especialistas. Quanto ao dimensionamento da amostra, o número de participantes não foi previamente definido, mas determinado pela saturação dos dados. Realça-se que em investigação qualitativa as amostras tendem a ser pequenas devido ao volume de dados que geram, sendo a adequação dos dados mais importante que a sua expressividade (Fortin, 2009). A seleção dos participantes foi efetuada através de convite pessoal formulado pelo investigador principal. Todos os enfermeiros convidados aceitaram participar no estudo e não se verificaram desistências no estudo. Como técnica de recolha dos dados, optámos por uma entrevista semiestruturada. Esta opção revelou-se uma mais-valia, porque permitiu aos participantes responderem de acordo com a suas perspetivas e, ao mesmo tempo, possibilitou ao investigador orientar a entrevista em função do objetivo pretendido, sem comprometer a liberdade ao entrevistado. Esta técnica de recolha de dados permitiu, ainda, a exploração do discurso, compreendendo o fenómeno em plenitude. As entrevistas foram realizadas com recurso a um guião alicerçado no conhecimento teórico e empírico acerca da problemática, contemplando as seguintes perguntas: Como considera a transição de cuidados, normalmente entendida como a transmissão de informação e de responsabilidade sobre a continuidade de cuidados, em relação à segurança do doente? Na sua opinião, a forma como essa transição de cuidados é efetuada pode, ou não, privilegiar a continuidade dos cuidados de saúde prestados pelos enfermeiros? Na informação partilhada na transição de cuidados, existe uma valorização das intervenções autónomas dos enfermeiros? A recolha de dados decorreu de abril a junho de 2021, tendo as entrevistas uma duração média de 35 minutos e sido realizadas na sala de reuniões do serviço de urgência, sempre fora do horário de trabalho, ou seja, após o final do turno, ou com a deslocação ao serviço de urgência por parte do participante e do investigador, num ambiente de total privacidade, sem interrupções e sem a necessidade de repetição. Previamente à sua realização, como forma de garantir que o guião de entrevista ia ao encontro do objetivo formulado, foi realizado um pré-teste, em março de 2021, no qual foram efetuadas duas entrevistas, ajustando a construção das questões formuladas, tornando-as mais claras. Todas as entrevistas foram gravadas com recurso a um gravador de áudio. O processo de tratamento e análise de dados teve início após realizarmos as primeiras entrevistas, optando-se por uma análise de conteúdo temática ou categorial, cumprindo os pressupostos de Bardin. Numa primeira fase, de pré-análise, procedemos a diversas leituras do material transcrito, organizando- o, de modo a torná-lo operacional, permitindo sistematizar ideias. Esta é uma etapa fundamental, que permite definir um esquema adequado para o desenvolvimento das etapas seguintes. Na fase seguinte, de exploração do material/codificação, procuramos a transformação sistemática dos dados brutos e agregação em unidades que permitem a descrição das características pertinentes ao conteúdo do texto (Bardin, 2014). É nesta etapa que se definem as categorias e sua codificação, e se procede à efetivação das decisões tomadas na pré-análise. Na terceira e última fase da análise de conteúdo, referente ao tratamento dos resultados, inferência e interpretação, procurámos dar relevo às informações obtidas através da análise e da sua relação com a fundamentação teórica, permitindo dar sentido à interpretação. Tendo em conta o objeto e objetivo do estudo, o critério de codificação foi semântico, originando categorias temáticas. O tema, enquanto unidade de registo, é considerado indispensável em estudos sobre representações, opiniões, expectativas, valores, conceitos, atitudes e crenças, correspondendo a uma regra de recorte do sentido e não da forma (Bardin, 2014). Apesar de, decorrente do referencial teórico, terem sido definidas algumas categorias a priori, estivemos abertos a outras que tomaram forma no curso da própria análise, através de uma abordagem indutiva. Assim, adotámos uma abordagem com caráter misto, que alicerça a sua análise em categorias pré- estabelecidas, mas também explora os conteúdos por forma a aprofundar a problemática. Procurámos respeitar os critérios que as categorias devem cumprir para terem qualidade (Bardin, 2014): exclusão mútua, ou seja, cada elemento só pôde existir numa única categoria; homogeneidade, assegurando um único princípio de classificação orientador da organização das categorias; pertinência, comprovando a sua adaptação ao material de análise escolhido, de acordo com o quadro teórico definido; objetividade e fidelidade, evidenciando que as diversas partes do mesmo material, mesmo quando submetidas a várias análises fossem codificadas da mesma maneira; e produtividade, garantindo categorias com resultados férteis em inferências e dados relevantes para a prática profissional dos enfermeiros em contexto de urgência. No sentido de facilitar o procedimento de análise e tratamento dos dados, recorreu-se ao software MAXQDA 2020 Analytics Pro, que se revelou fundamental para reduzir o esforço e o tempo despendido ao longo de todo o processo e auxiliar a representação visual dos conceitos e categorias. Salientamos também a preocupação com o rigor científico da investigação, norteado pelo critério da confirmabilidade, entendido como a possibilidade de os resultados poderem ser confirmados ou corroborados por outros. Neste domínio, configura-se imprescindível a neutralidade do pesquisador para a confirmabilidade dos dados e das interpretações por ele apresentadas, evitando, deste modo, o viés ou as suas suposições (Coutinho, 2019). Este critério foi acautelado com recurso à verificação exaustiva dos resultados, da sua interpretação e confrontação com o conhecimento atual da temática, bem como das conclusões do estudo. Existiu a preocupação em garantir a fiabilidade da análise efetuada, procurando, em momentos diferentes, a fiabilidade intracodificador ou consistência, como nos refere Coutinho (2019) quando afirma que se trata de um processo em que o mesmo codificador procura perceber o grau de invariabilidade de um processo de codificação. O rigor do sistema de categorias criado foi assegurado pela revisão por pares efetuada por dois investigadores independentes. Também os participantes integraram este processo, tendo, para além de validado a qualidade do texto transcrito das entrevistas, avaliado, na fase final do estudo, a autenticidade da análise/interpretação efetuada. Com vista a cumprir a boa prática no domínio ético, foi obtido parecer positivo da Comissão de Ética da Unidade Hospitalar onde se desenvolveu a investigação. A participação no estudo foi voluntária e apenas teve início após a obtenção, por escrito, do consentimento informado, livre e esclarecido, em concordância com os princípios estabelecidos na Declaração de Helsínquia (2008) e Convenção de Oviedo (2001). Os potenciais participantes foram informados do objeto e objetivo do estudo, dos procedimentos de recolha e de análise dos dados, e de que, em qualquer momento, podiam decidir não prosseguir com a sua participação, ou mesmo desistir, sem que daí resultasse qualquer prejuízo, tendo livremente decidido acerca da sua participação. O anonimato e a confidencialidade de toda a informação recolhida foram assegurados através da codificação das entrevistas com a letra “E”, seguida de um número ordinal. A informação recolhida foi apenas do conhecimento do investigador principal e foi utilizada única e estritamente para os fins definidos no estudo em causa. Após a transcrição do material gravado em suporte áudio, este foi destruído.
3.Resultados e discussão
Neste estudo participaram 14 enfermeiros, 6 do sexo feminino e 8 do masculino, com idades compreendidas entre os 27 e os 38 anos. Do total de participantes, 9 são enfermeiros generalistas e 5 enfermeiros especialistas, com tempo de exercício profissional no serviço de urgência entre 2 anos e 15 anos. “Importância da transição dos cuidados para os enfermeiros de um serviço de urgência” é o tema que resulta da análise de conteúdo efetuada às entrevistas. Integra, como referido anteriormente, categorias definidas a priori - “segurança da transição de cuidados”, “continuidade dos cuidados de saúde” e “valorização da autonomia” - e categorias que emergiram dos dados - “papel formativo da transição de cuidados” e “confidencialidade da informação clínica”. A categoria “segurança da transição de cuidados” evidencia a perceção acerca da relevância que a transição de cuidados pode ter para a segurança dos mesmos. Os participantes refletem acerca das condicionantes que a afluência de doentes pode colocar à seleção da informação partilhada, assim como as implicações para a compreensão da evolução clínica do doente e para a definição de prioridades na gestão dos cuidados. A reflexão em torno da metodologia de trabalho adotada no serviço, merece também destaque, na medida em que dificulta o processo de transferência de informação clínica. Parece ser consensual, na opinião dos enfermeiros, haver discrepância na qualidade da informação partilhada da noite para o dia, comparativamente à transição do fim do dia para a noite, resultante do número de doentes nas áreas de trabalho: “em termos de qualidade e conteúdo da informação, a transição da noite para o dia é melhor porque durante o dia temos mais doentes, existindo maior sobrecarga de trabalho, o que faz com que no fim do dia a passagem de turno seja mais pobre do ponto de vista de informação.” (E5). A transição de cuidados acaba por ser encarada como um momento sempre crítico num serviço de urgência, decorrente diretamente da afluência de doentes ao serviço, e fica também claro que a atual realidade dificulta a compreensão da evolução clínica do doente: “É muito difícil perceber a evolução clínica do doente. Algumas vezes sim, mas a maior parte das vezes não… depende muito da quantidade de doentes que tem uma certa área.” (E6). Por outro lado, existem participantes que atribuem as diferenças também ao emissor, ao colega que partilha a informação, afirmando que os enfermeiros com menos experiência acabam por ser mais completos na informação, enquanto que os colegas mais experientes filtram mais a informação: “os colegas mais novos por vezes passam turnos mais completos porque tomam notas, porque pesquisam mais. Os colegas mais antigos têm outro treino e acabam por ter um olhar mais resumido.” (E11). Para Lavoie et al. (2021) a experiência profissional tem um impacto positivo na capacidade de síntese da informação, mas, em contrapartida, os enfermeiros com menos tempo de exercício profissional são mais minuciosos, transmitindo informação mais completa e bem organizada. Os achados do presente estudo também vão ao encontro dos resultados obtidos por Thomson et al. (2018), quando procuraram compreender os fatores que interferiam com a qualidade da transição de cuidados num departamento de emergência, constatando que um baixo fluxo de doentes influenciava positivamente a qualidade da transferência de turno entre enfermeiros. Outro fator apontado pelos enfermeiros como condicionante prende-se com a metodologia de trabalho centrada na execução de tarefas, com os enfermeiros de uma determinada área responsáveis por todos os doentes: “resumimos muito a informação porque também não é fácil na última hora do turno compilar toda a informação de todos os doentes, devíamos ter os doentes atribuídos por enfermeiro. Aí sim, isso seria possível…” (E9). Kwok et al. (2020) referem que os doentes em contexto de urgência são frequentemente atendidos por vários profissionais de saúde, resultando num risco de transferência de informação inadequada entre profissionais de saúde. O nosso estudo evidenciou três fatores que parecem condicionar a segurança da transição de cuidados, relacionados com o número de doentes que estão à responsabilidade dos enfermeiros, com o emissor da informação e com a própria metodologia de trabalho implementada no serviço de urgência. A possibilidade de perda de informação encontra-se, de certo modo, condicionada pelo facto de ser transmitida apenas verbalmente, não existindo um documento escrito que a sistematize: “Há sempre o risco de alguma informação não ser passada porque a passagem de turno é sempre verbal, não existindo nenhum documento escrito” (E4). Segundo The Joint Commission International (2014), a transição de cuidados deve ser verbal, mas simultaneamente complementada na forma escrita, eventualmente com recurso a uma ferramenta eletrónica. A Direção Geral da Saúde (2017) destaca a transição de cuidados de saúde como um dos momentos críticos para a segurança do doente, cuja complexidade envolve um maior risco de erro na transferência de informação, tal como acontece nas mudanças de turno na mesma instituição. A perceção acerca do predomínio da informação relatada para assegurar a continuidade dos cuidados, assim como da sua importância no sentido de colmatar eventuais falhas na informação documentada em sistema informático, integra a categoria “continuidade dos cuidados de saúde”. A informação partilhada é decisiva para garantir a continuidade de cuidados, evitando decisões erradas: “a continuidade dos cuidados penso que está diretamente ligada com a informação que é referida na passagem de turno, é através dessa informação que se for adequada vamos ter cuidados sem quebras, sem decisões erradas.” (E8). Por outro lado, os enfermeiros alertam que podem existir falhas na documentação escrita dos cuidados, na medida em que há informação que não é registada no processo do doente, ou pelo menos não é suficientemente percetível, fazendo com que a informação oral partilhada seja efetivamente importante: “a passagem de turno é decisiva para a continuidade dos cuidados até porque há muita informação que não está registada no processo clínico, no diário medico ou de enfermagem” (E7). A este respeito, a Ordem dos Enfermeiros (2017) realça esta importância e adverte que a passagem de informação, realizada de forma oral e complementada com informação escrita, não substitui o registo de enfermagem. A categoria “valorização da autonomia” retrata a perceção acerca de o modelo biomédico nortear, ou não, a conceção dos cuidados de enfermagem de urgência, e sobre a importância de um plano de cuidados de enfermagem. Os achados demonstram a dominância do modelo biomédico na informação relatada, remetendo para segundo plano as intervenções autónomas dos enfermeiros: “A passagem de turno é muito centrada no modelo biomédico e deixa de parte os aspetos relacionados com as intervenções autónomas dos enfermeiros.” (E7). Subjacente a esta visão, torna-se por vezes complexo percecionar um plano de cuidados de enfermagem, estando mais patente um plano médico: “é muito difícil percecionar um plano de cuidados de enfermagem. No entanto, é sempre mais percetível um plano médico” (E6). Mesmo o conteúdo da informação centra-se em torno dos aspetos médicos. Os enfermeiros, numa tentativa de justificação destas práticas, apontam uma perspetiva de que o modelo biomédico é inevitável num serviço de urgência, dada a natureza do serviço ser vocacionada para resolver um problema de saúde pontual, desenquadrado de outras necessidades inerentes à condição do doente:
“muitas vezes os enfermeiros são cumpridores de prescrições médicas e claramente existe uma desvalorização das intervenções de enfermagem…isso está mal, porque os nossos idosos precisam muito mais de um enfermeiro do que de um médico que não lhe vai resolver o fim de vida que está próximo…talvez tenha a ver com a noção de que a urgência é para resolver aquele problema pontual, e olhamos para o doente desenquadrado da família, de outras necessidades que não têm a ver com a situação que motivou vir à urgência.” (E10).
Existe, não obstante, também da parte dos enfermeiros a consciência de que deveria existir uma maior valorização da autonomia, uma vez que diversas intervenções fazem a diferença na vida dos doentes, sobretudo na população idosa, contribuindo, assim, para a humanização dos cuidados. Apesar do caminho já percorrido a este nível, a literatura destaca que a perceção de que o modelo biomédico é ainda dominante na profissão e que há dificuldade em introduzir aspetos característicos dos modelos de enfermagem, derivado do desenvolvimento disciplinar (Ribeiro et al., 2019). Da análise do discurso, emerge, ainda, a importância que a transição de cuidados assume enquanto momento de análise e reflexão da prática dos enfermeiros, plasmada na categoria “papel formativo da transição de cuidados”. Os participantes refletem acerca da importância de discutir a prática profissional, no contexto da transição de cuidados e do seu contributo para a melhoria contínua dos cuidados de enfermagem:
“Deveríamos aproveitar a passagem de turno para discutir o doente e a prática, até porque temos colegas muito novos. Valia a pena mudar esses comportamentos” (E6)
“deveria ser um momento de aprendizagem e de discussão, até porque a equipa tem enfermeiros muito jovens e podíamos ter essa componente” (E8)
Constatámos que o momento de transição de cuidados deve assumir um papel formativo, permitindo a discussão da situação clínica do doente, mas também das práticas de enfermagem. Esta perspetiva é justificada na medida em que a equipa é bastante jovem, sendo esta prática importante no processo de crescimento profissional. Estes resultados corroboram o entendimento da Ordem dos Enfermeiros (2017), que destaca a passagem de turno como um momento de análise das práticas e de formação em serviço. Embora a importância da transição dos cuidados seja reconhecida pelos enfermeiros, há constrangimentos e especificidades do serviço de urgência, que a tornam crítica, plasmados na categoria “confidencialidade da informação”. Na opinião dos enfermeiros que participaram no presente estudo, a confidencialidade da informação clínica encontra-se inquestionavelmente ameaçada pela estrutura física do serviço ser assente no conceito de espaços abertos e pelo facto da transição de cuidados se efetuar junto do doente:
“a confidencialidade da informação num serviço de urgência é sempre complicada, trabalhamos em espaços abertos…devíamos passar a informação num local central, com visão dos doentes, mas sem estar tão próximo, porque também é importante esse contato visual” (E3)
Bakon et al. (2017) defendem que esse momento deve ser efetuado junto do doente, de modo a que possa participar na gestão de cuidados e na tomada de decisões, salvaguardando, no entanto, que podem ser levantadas questões no âmbito da confidencialidade da informação. Como forma de contornar este constrangimento, alguns enfermeiros sugerem que a transição de cuidados seja efetuada num local central, com visão dos doentes, permitindo encontrar um equilíbrio entre o ganho resultante do contacto visual e a obrigação legal do direito à confidencialidade da informação clínica.
4.Considerações Finais
O presente estudo de investigação desenvolveu-se com o intuito de compreender a perceção dos enfermeiros de um serviço de urgência acerca da transição de cuidados entre equipas de enfermagem no final do turno. Constatámos a consciência da relevância que a transição de cuidados deve ter enquanto momento de reflexão e discussão da prática, bem como para garantir a continuidade de cuidados. Do mesmo modo, percebemos que a informação partilhada evidencia invariavelmente aspetos resultantes de uma visão dos cuidados assente no modelo biomédico, em detrimento de um plano de cuidados de enfermagem. No que se refere às opções metodológicas, acreditamos que uma abordagem qualitativa permitiu explorar a temática em profundidade, compreendendo conceções acerca deste momento de transição de cuidados para a promoção da segurança dos próprios cuidados e da sua continuidade. Num serviço de urgência, pela dinâmica inerente ao próprio serviço, a transição de cuidados deve ser alvo de preocupação, configurando-se um risco para a segurança dos cuidados prestados. Torna-se essencial repensar algumas condicionantes que o serviço de urgência apresenta, nomeadamente em termos de metodologia de trabalho centrada na execução de tarefas e do local escolhido para a transição de cuidados, que pode colocar em causa a confidencialidade da informação clínica, assim como desenvolver esforços para que a transição de cuidados não seja apenas verbal, mas complementada com um documento escrito. Tratando-se de um estudo qualitativo, podemos apenas remeter os resultados para a realidade contextual, não sendo possível a sua generalização. Apontamos também como limitação o facto de o investigador principal exercer funções no contexto do estudo. Sugerimos que em investigações futuras se possa detalhar/aprofundar a informação considerada relevante por parte dos enfermeiros, de modo a ser possível a construção de uma metodologia estruturada de transição de cuidados, adaptada ao contexto de urgência, promotora da segurança e da visibilidade das intervenções autónomas de enfermagem.